"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quarta-feira, 24 de outubro de 2012

JÁ NÃO PODEMOS DIZER NADA!

 

Em 14 de de abril de 1930, aos 36 anos, Vladimir Maiakóvski, o maior poeta russo da era contemporânea, deu um fim trágico à sua atormentada vida. Matou-se porque perdeu toda a esperança e se viu diante de uma estrada sem saída. 
 
Sua obra é absolutamente revolucionária, como revolucionárias eram as suas idéias. Mas o poeta, dizia ele, por mais revolucionário que seja, não pode perder a alma!

Ele acreditou piamente na Revolução Russa e pensou que um mundo melhor surgiria de toda aquela brusca e violenta transformação. Aos poucos, porém, foi percebendo que seus líderes haviam perdido a alma. 
 
A brutalidade crescia. A impunidade era a regra. O desrespeito às criaturas era a norma geral. Toda e qualquer reação resultava em mais iniqüidades, em mais violência. Um stalinismo brutal assolou a pátria russa. Uma onda avassaladora de horror e impotência tomou conta de seu espírito, embora ainda tentasse protestar. Mas foi em vão. Rendeu-se e saiu de cena. 
 
Em 1936, escreveu Eduardo Alves da Costa o poema No caminho com Maiakóvski, que resume sua desoladora tragédia.

"... Na primeira noite eles se aproximam/ e roubam uma flor/ de nosso jardim./ E não dizemos nada./ Na segunda noite, já não se escondem:/ pisam as flores,/ matam nosso cão,/ e não dizemos nada./ Até que um dia,/ o mais frágil deles/ entra sozinho em nossa casa,/ rouba-nos a luz e,/ conhecendo nosso medo,/ arranca-nos a voz da garganta./ E já não podemos dizer nada." 
 
Nestes tristes tempos, muitos estão vivendo as angústias desabafadas neste poema. Também acreditaram em líderes milagrosos, tiveram esperanças em dias mais serenos, esperaram por oportunidades melhores e sonharam com paz e alegria. Nunca imaginaram que, em seu lugar, viriam a impunidade, a violência, o rancor e a cobiça. Os que chegaram ao poder, sem nenhuma noção de servir ao povo, logo revelaram a sua verdadeira face. 
 
O País está vivendo uma fase de completo e total desrespeito às leis. A Lei Maior, aquela que o País aprovou por meio de seus representantes, não existe. Para uns, todas as leniências. Para outros, todos as violências. Nas grandes cidades, dois governos, duas autoridades: a tradicional e a dos marginais.

No campo, ausência de direitos e deveres. Uma malta de desocupados, chefiados por líderes atrevidos e até debochados, está conseguindo levar o desassossego e a insegurança aos milhões de trabalhadores rurais que ali se esforçam para sobreviver. Isso já vem acontecendo há muito tempo e não há sinal de que alguma autoridade pretenda submetê-los às penas da lei. Ao contrário. Eles gozam de imenso prestígio junto ao presidente, que não se acanha em lhes dar cobertura e agir com a maior cumplicidade. 
 
A ausência das autoridades tem sido o grande estímulo para que esses grupos, e outros que vão surgindo, venham conseguindo, num crescendo de audácia e desrespeito, levar o pânico aos que vivem do trabalho no campo. A mesma audácia impune garante também a expansão das quadrilhas de narcotraficantes em todo o País. A cada dia que passa eles chegam mais perto de nós. Se examinarmos com atenção os acontecimentos destes últimos dois anos, dá para entender o nosso medo. 
 
Quando explodiu o caso do Waldomiro Diniz, as autoridades estavam na obrigação de investigar tudo e dar uma punição exemplar. O que se viu? Uma porção de manobras para encobrir os fatos e manter os esquemas intocáveis. E qual foi a reação do povo? Nenhuma.
Roubaram uma flor de nosso jardim, a flor da decência, da dignidade, da ética, e nós não dissemos nada!

Quando, da noite para o dia, dezenas de deputados largaram suas legendas e se bandearam para as hostes do governo, era preciso explicar tão misteriosa adesão. O que se viu? Uma descarada e desafiadora alegria no alto comando do País! E qual foi a reação do povo? Nenhuma.
Eles nem se esconderam. Pisaram em nossas flores, mataram o cão que nos podia defender. E nós não dissemos nada!

Quando um parlamentar, que integrava a tal maioria, veio denunciar o uso de recursos públicos, desviados de forma indecente, com a conivência dos altos ocupantes do governo, provando que a direção do PT e do governo sabiam de tudo e de tudo se haviam aproveitado, qual foi a reação do povo? Nenhuma. 
 
Eles nem se importaram com o fato de terem sido descobertos. O mais frágil deles entrou em nossa vida, roubou a luz de nossas esperanças e, conhecendo o nosso medo, ainda se deu ao luxo de arrancar a nossa voz da garganta! 
 
Será que vamos aceitar? Não vamos dizer nada? Será que o povo brasileiro perdeu de vez a sua capacidade de se indignar? A sua capacidade de discernir? A sua capacidade de punir?

Acho que não. Torço para que isso não esteja acontecendo. Sinto, por onde ando e por onde vou, que lá no mar alto uma onda de nojo está crescendo, avolumando-se, preparando-se para chegar e afogar esses aventureiros. Não se trata, simplesmente, de uma questão eleitoral. Não se cuida apenas de ganhar uma eleição. O importante é não perder a alma. O direito de sonhar. A vontade de viver melhor. 
 
Colocar este momento como uma simples luta entre governo e oposição é muito pouco. E derrotá-los, simplesmente, também é muito pouco, diante do crime que eles praticaram contra as esperanças de um povo de boa-fé. 
 
O que vai hoje na alma das pessoas é o corajoso sentimento de que é preciso vencer o pavor e o pânico diante da audácia dessa gente, não permitindo que eles nos calem para sempre. Se não forem enfrentados, se não forem punidos, se seus métodos e processos não forem repudiados, nosso futuro terá sido roubado. Nossa voz terá sido arrancada de nossa garganta. 
 
E já não poderemos dizer nada.
Sandra Cavalcati, Estadão
segunda-feira, março 27, 2006

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