"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quinta-feira, 10 de maio de 2012

IMAGINÁRIOS DE DESTRUIÇÃO - PARTE 3

c. O estudo do cinema nazista

No ensaio “Estilo e meio do filme” (1947), Erwin Panofsky observou: “Queiramos ou não, os filmes é que moldam, mais do que qualquer outra força isolada, as opiniões, o gosto, a linguagem, a vestimenta, a conduta e até mesmo a aparência física de um público que abrange mais de 60% da população da Terra. Se todos os poetas líricos, compositores, pintores e escultores sérios fossem obrigados a cessar suas atividades, uma fração bem pequena do público em geral tomaria conhecimento do fato e outra ainda menor iria lamentá-lo seriamente. Se a mesma coisa acontecesse com o cinema, as conseqüências sociais seriam catastróficas”.

Essa constatação de Panofsky sempre me pareceu apenas parcialmente verdadeira. Se, de fato, o cinema modelava mais de 60% da população do planeta, as conseqüências sociais catastróficas do que Theodor Adorno e Max Horkheimer conceituaram como “indústria cultural” em Dialética do Esclarecimento (1947) não eram mais uma hipótese virtual, a se cumprir caso se operasse a interrupção de suas atividades, mas uma realidade produzida há décadas, diariamente, por sua emulação ininterrupta. O controle do clima psicológico de nações inteiras tornou-se possível graças ao monopólio das mídias.

Refletido sobre o mundo atual, Anita Novinsky observou: “Pode-se hoje transformar qualquer povo em qualquer coisa, pode-se criar um abismo em poucos meses com os meios de comunicação de massa, a técnica, a televisão.”[14] De fato, não podemos sequer imaginar o poder devastador que se acumula no universo das comunicações contemporâneas, e que permanece em posição de ameaça permanente à liberdade.

Basta observar como as mídias do neocapitalismo dito democrático conseguem integrar até o último homem na sociedade de consumo, com suas incitações às compras, seus programas digestivos, jogos, loterias, lançamento de modas e manias, seu ininterrupto bombardeio de sucessos. As mídias tornaram-se uma espécie de válvula condutora da vida, o imprescindível universo portátil, o espaço exterior domesticado em gadgets. Essa assustadora realidade não surgiu de repente, mas foi se formando ao longo de todo o século passado. O momento mais devastador dessa realidade em perigosa progressão foi, sem dúvida, a Segunda Guerra Mundial, durante a qual todos os meios de comunicação conhecidos na época se voltaram para a propaganda.

Na Revolução Russa de 1917, o jornal, o rádio e o cinema haviam sido largamente utilizados como instrumento de propaganda O uso propagandístico do cinema atingiu a perfeição estética nos anos de 1920, nos filmes mudos de Sergei Eisenstein, Alexander Dovjenko, Grigori Kozintzev, Lev Koulechov, Vsevolod Pudovkin, Leonid Trauberg, Dziga Vertov, que empregavam, para difundir a mensagem revolucionária, o exagero e a farsa, elementos do vaudeville e do teatro de revistas, estilemas do surrealismo e do expressionismo, e até mesmo as piadas obscenas

Em 1931, cumprindo uma ordem do Comissariado de Transportes do Povo que decretava a necessidade de usar o cinema “para mobilizar as massas trabalhadoras em torno das tarefas da construção socialista e da renovação do transporte ferroviário”, Alexander Medvedkin montou uma equipe cinematográfica dentro de um trem, percorrendo o país e realizando e projetando filmes contra os “elementos malvados” e “nocivos à revolução”, numa estética ainda livre à experimentação. A ditadura estética do realismo socialista seria imposta apenas em 1934, com Chapaiev, dos irmãos Vasiliev, encerrando a fase vanguardista do cinema soviético [15].

Na República de Weimar, o cinema alemão, nascido como fruto de interesses propagandísticos durante a Primeira Guerra Mundial, foi o palco de grandes experimentações estéticas até transformar-se, no fim dos anos 20, num campo de batalha ideológico entre os partidários da democracia e os simpatizantes dos movimentos comunista e nazista. Com a ascensão de Hitler ao poder, todos os meios de comunicação de massa foram progressivamente controlados e monopolizados pelo Estado.

Na Itália fascista, desde 1925-1926 o Estado assegurou o monopólio da produção dos filmes documentários e de atualidades, enquanto um decreto ordenava a projeção de cinejornais informativos visando desenvolver uma constante e intensa ação de ensino civil, propaganda e cultura [16]. Com a ascensão de Hitler ao poder, todos os meios de comunicação de massa foram coordenados pelo Estado nazista, inspirando Mussolini a fundar a Cinecittà em 1937.

Criada em 1922, a televisão alemã atingiu, em 1933, 180 linhas: desde então, foram realizadas emissões cotidianas e, em 1936, durante os Jogos Olímpicos em Berlim, sua imagem foi, pela primeira vez, diretamente projetada num telão para milhares de espectadores.

Em 1934, Goebbels ordenou a fabricação de aparelhos de rádio acessíveis a todos os bolsos e já em 1935 ele estimava que, com o receptor do engenheiro Otto Griesing e os alto-falantes colocados em escolas, fábricas e lugares, cada discurso do Führer atingia mais entre 5 e 6 milhões de ouvintes: “Com o rádio nós aniquilamos o espírito da rebelião” [17]. Em 1938, o número de ouvintes passou a 9,5 milhões e, em 1939, com a comercialização de um aparelho novo e menor, o rádio atingiu praticamente toda a população da Alemanha.

Contudo, no mundo entre guerras, o meio que representou a indústria cultural como um todo foi, sem divida, o cinema. Ao contrário do jornal e do rádio, o caráter “artístico” do cinema encobriu seu caráter de instrumento de modelagem e as polemicas em torno da indústria cultural só ganharam relevância após a guerra, quando a massificação da TV substituiu o cinema na modelagem de um contingente ainda maior da população do planeta.

No século XX, a superpopulação, a unificação tecnológica do planeta e os confrontos ideológicos em torno do “capitalismo” reconduziram a humanidade a um estágio de barbárie semelhante ao das tribos primitivas, através de revoluções, guerras mundiais e totalitarismos que restauraram a necessidade, característica dos povos arcaicos, de uma modelagem direta dos corpos através de novos instrumentos técnicos capazes de atingir e arregimentar milhões de indivíduos.

Beneficiadas pelos meios técnicos de comunicação, as tiranias do século XX adquirem uma especificidade toda sua, totalitárias na medida em que, à diferença dos regimes de forca do passado, podem apresentar, graças à propaganda, a evidência de uma popularidade. Os líderes revolucionários e totalitários não teriam podido mobilizar populações radicalizadas e fanatizadas pela fome, pelo ódio, pelo medo ou pela fé sem uma propaganda audiovisual massiva e altamente organizada. O controle do clima psicológico de nações inteiras tornou-se finalmente possível graças ao monopólio dos meios de comunicação de massa.

Através de todos os meios de comunicação conhecidos, estímulos psicológicos são produzidos enquanto se trabalha na remodelação total dos valores humanos. A propaganda eficaz é ininterrupta e onipresente. Nos regimes totalitários, dia e noite, o cidadão é informado e esclarecido sobre os acontecimentos e seus significados. No café da manha, os jornais apresentam-lhe fatos selecionados e comentados. Durante o dia, no trabalho, conversas com colegas confirmam suas idéias. Nos momentos de lazer, no cinema, no teatro, na leitura de revistas, sua visão de mundo consolida-se através de formas variadas, sublimadas e atraentes. À noite, antes de dormir, a última transmissão de notícias prepara-o para uma nova etapa de esclarecimento. A esfera privada é totalmente preenchida pela propaganda, multiplicada por centenas de vozes distintas, mas coordenadas por uma mesma e única fonte.

Antes do estabelecimento da indústria cultural, quando o poder era tomado à forca, por um grupo que impunha sua vontade ao resto da população, era possível que esta, mesmo conformada, não aceitasse, intimamente, o governo “ilegítimo”. No seu dia-a-dia, a população sofria a ditadura, silenciava ante a violência e até “tolerava” a opressão, porque, interiormente, subsistia uma vaga esperança de libertação. Já a ditadura totalitária moderna, com seus instrumentos técnicos de modelagem, penetra no âmago de cada cidadão.

No seu dia-a-dia, a população participa da tirania, da violência e da opressão, porque ressente, interiormente, sua participação nessa dominação como sua única possibilidade de escapar-lhe, sua esperança de libertação. Quando uma mente maniqueísta reflete sobre as circunstâncias que frustram seu bem-estar, toma o acaso que lhe acarreta prejuízos como o próprio Mal. Da mesma forma, a propaganda cria todo um coletivo maniqueísta, que se vê perseguido pelo Mal, ao mesmo tempo em que prepara o extermínio daqueles que aos seus olhos encarnam esse Mal.

A manipulação da paranóia fora originalmente uma ocupação dos xamãs, que se alimentavam do terror metafísico que dominava os selvagens. Seduzidos pelo “carisma” do xamã, que lhes apresentava soluções mágicas para a cura da incurável angústia provocada pela contingência, os selvagens unificavam-se num coletivo paranóico (a tribo) que não admitia qualquer dissensão.

O processo arcaico de transferência revela como foi possível reduzir, na Europa civilizado do século XX, o espaço mental de coletividades inteiras, através das mídias, aos elementos mais primitivos do pensamento. A paranóia coletiva projeta o Mal no mundo, e ao mesmo tempo em que se vê por ele perseguido, prepara o extermínio daqueles que, a seu ver, encarnam o Mal.

A passagem de certos homens pela Terra, capazes de mobilizar a paranóia coletiva, canalizando sua energia destrutiva para seus próprios fins delirantes, prova que, a par de sua significação religiosa, o Mal possui uma existência política. O ditador totalitário é o xamã do século XX, oferecendo à coletividade desintegrada pela técnica a panacéia do maniqueísmo, que satisfaz a psicose da massa, necessitada de acreditar em planos diabólicos tramados pelo Inimigo – por indivíduos e grupos que possam encarnar o Mal, para serem enfrentados concretamente, através de uma política de perseguição e extermínio.

Ao projetar toda carga destrutiva da paranóia coletiva sobre os judeus, Hitler chegou ao poder não como um político comum, mas como o profeta de uma nova religião monstruosa, que não apenas assimilou a tradição milenar do antissemitismo ocidental, como a radicalizou até a mais inconcebível utopia de destruição, que foi tornando verdadeira numa escala apenas factível com o auxílio da indústria cultural e da tecnologia moderna.

Analisando a cinematografia nazista fora do contexto da política biológica que a gerou, os historiadores consideraram que apenas 22 ou 24 dos 1.094 longas-metragens de ficção produzidos no ‘Terceiro Reich’ continham propaganda antissemita. Um número ínfimo de propaganda antissemita num meio em que o regime tanto investia. Haveria alguma discrepância entre a essência do nazismo e o cinema que ele produziu? Sendo o antissemitismo a essência do regime, desdobrado numa política, propagada totalitariamente, como explicar que o antissemitismo tenha ocupado um lugar tão modesto no seu principal veículo de propaganda, sob a coordenação direta de Goebbels?

Na verdade, em primeiro lugar, e antes de qualquer análise de seu conteúdo, esse cinema deve ser considerado como inteiramente antissemita. Não se pode omitir na análise da produção do cinema nazista que uma das primeiras medidas do regime, logo após a tomada do poder, em 1933, foi a supressão dos judeus da indústria cinematográfica.

O cinema alemão fora substancialmente edificado por empresários e artistas de ascendência judaica, num modo de produção que permitia a experimentação estética, gerando um expressionismo cinematográfico que marcou a cinematografia mundial [18]. Já o cinema nazista foi produzido por uma indústria cultural antissemita desde as bases “biológicas” de sua organização.

Iniciada em 1933 por Goebbels, como primeira medida do regime, assim que Hitler tomou o poder, a “arianização” promoveu o expurgo, a proibição de trabalho e o exílio de mais de 1500 artistas, produtores e técnicos de ascendência judaica, levados a fugir para a Áustria, a França, a Inglaterra, e depois para os EUA. Enquanto na Alemanha o nazismo censurava suas produções, a menção de seus nomes, a lembrança de seus feitos, controlando ao mesmo tempo as ascendências, relações sexuais e consangüíneas dos produtores culturais alemães, habilitados através de fichas de inscrição obtidas no Ministério da Cultura e da Propaganda, Hollywood via-se beneficiada com um influxo sem precedentes de talentos de tradição expressionista, revolucionando o realismo do cinema americano no filme noir, no thriller psicológico, no filme de espionagem, no terror atmosférico.

Após a “arianização” do cinema alemão, considerada completa em 1937, Goebbels elaborou para ele uma estética que associava os valores nacional-socialistas a formas narrativas consagradas, associando as deformações plásticas às deformações mentais; cultivando a saúde, o corpo, a natureza, o nudismo; professando o respeito cego à autoridade, à nobreza, à honra; adotando valores patrióticos, militaristas, racistas. Os artistas deviam seguir um padrão realista de narrativa, inspirado na literatura do naturalismo. Goebbels pôs fim ao sobrenatural, ao fantástico, ao horror, que haviam marcado o cinema alemão. Desenvolveu o filme histórico, o filme de guerra, o documentário cultural e o melodrama biológico. O racismo transformou-se em pano de fundo para comédias românticas, dramas policiais, operetas e musicais.

David Stuart Hull considerou como antissemitas apenas 4 filmes produzidos sob o Terceiro Reich: Robert und Bertram (1939), The Rotschilds (1940), Jud Süß (1940) e o documentário The Eternal Jew (1940). Em Antisemitische Filmpropaganda, Dorothea Hollstein aprofundou a superficial pesquisa de Hull e constatou a existência de 22 filmes e 2 projetos não realizados que considerou antissemitas. Desde então, pouco foi acrescentado. Na tese An Analytical Study of the Nazi Treatment of the Jews in Three Films, Wilhelm Bleckmann analisou três daqueles filmes. Régine Mihal-Friedman, em L’image et son Juif, concentrou-se em Jud Süß, sem modificar o quadro estabelecido por Dorothea Hollstein.

Em The Nazi Antissemitic Film: A Study of its Productional Rhetoric, Baruch Gitlis analisou outros daqueles mesmos filmes, observando com razão: “É surpreendente que, até 1938, filmes explicitamente antissemitas não tenham sido produzidos e exibidos publicamente” [19]. Mesmo constatando a existência de cenas antissemitas “sutilmente insinuadas e integradas” em filmes como Hitlerjunge Quex (1933) ou Hans Westmar (1933), Gitlis voltou a notar: “Por razoes políticas que ainda permanecem não esclarecidas, não houve filmes antissemitas alemães produzidos antes de 1938” [20].

Ora, 22 ou 24 filmes antissemitas, isto é, nos quais a imagem do judeu é apresentada de maneira detestável, numa produção de 1.097 filmes de ficção [21] não refletem a essência de um sistema político que preparava administrativamente a morte de milhões de judeus em toda a Europa. Era preciso que me lançasse ao fundo da questão: ou a essência do nazismo não era o antissemitismo (o que seria como colocar a realidade entre parênteses) ou a propaganda antissemita no cinema nazista não havia sido revelada pelos seus estudiosos em toda a extensão. Teria o cinema nazista desempenhado outro papel que não o de reforço ideológico? Estaria a massa de filmes nazistas limpa de um racismo concentrado em outros veículos? Mas, então, qual a necessidade de montar uma gigantesca indústria cultural ligada ao Ministério da Propaganda?

Apostando na hipótese lógica, passei a assistir a todos os filmes nazistas que eram programados em seminários, exibições especiais, cinematecas, etc. Engajado nesta busca, eu me transformei numa espécie de Simon Wiesentahl do cinema – enquanto ele caçava criminosos nazistas, onde quer que eles se refugiavam, eu caçava filmes nazistas, onde quer que eles fossem projetados…

Logo observei nesse cinema algo de inusitado, que não havia sido até então analisado. Um fenômeno que se repetia em diversos filmes de “entretenimento”: a presença de uma doença misteriosa que atingia personagens principais ou secundários, uma doença que se assemelhava a uma peste, e que era mesmo muitas vezes apresentada como a própria peste. Reatando esse fenômeno à propaganda antissemita retórica, expressa em artigos de jornal, manuais de eugenia e livros de doutrinação, concluí que a doença era um dos grandes leit-motivs do cinema nazista e, num paralelo com o papel do judeu na propaganda geral do sistema nazista, poderia ser interpretada como uma metáfora do judeu. Haveria, então, toda uma dramaturgia antissemita na própria linguagem do filme nazista, o núcleo da propaganda refletindo, finalmente, a essência do sistema.

De fato, o que diferenciaria filmes “mórbidos” em sua própria estrutura como Ein Volksfeind, La Habanera, Robert Koch, Verwehte Spuren, Ewiger Rembrandt, Kleider machen Leute, Das Herz muß schweigen, Opfergang ou Paracelsus dos filmes normalmente identificados como antissemitas pelos historiadores do cinema, como Robert und Bertram, Jud Süß, Die Rotschilds ou Der ewige Jude é que a propaganda antissemita no primeiro grupo de filmes é neles embutida numa dimensão cinematográfica, fluindo integrada à narrativa, sem a necessidade de um discurso verbal a explicitá-la.

Numa ação subconsciente, o primeiro grupo de filmes difunde o próprio pathos antissemita, em conexão com suas imagens, previamente disseminadas e assimiladas através de outros discursos. Essa constatação requeria uma série de provas, e um recuo de perspectiva até as origens da metáfora. Foi preciso examinar a organização do cinema nazista e seu papel dentro da estrutura geral e do conjunto significante do sistema de propaganda, e as diversas maneiras pelas quais a propaganda antissemita foi disseminada no filme nazista.
10 de maio de 2012

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