"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



segunda-feira, 10 de junho de 2013

SEM AULAS, CRIANÇAS DEIXAM DE FAZER O DEVER PARA BUSCAR ÁGUA

Seca prejudica funcionamento das escolas, que encerram turno mais cedo

Como se não bastasse o empobrecimento dos pais, por causa da morte dos animais e de lavouras perdidas, as crianças do semiárido enfrentam outro drama que, embora silencioso, pode deixar marcas profundas em suas vidas: uma educação deficiente. Isso porque a seca que assola o Nordeste prejudica duplamente a escola.
 
Nesse período, as faltas aumentam, já que grande parte dos alunos perde tempo procurando água ou esperando a chegada do caminhão-pipa. Quando comparecem, são liberados até duas horas antes do horário convencional, porque muitas escolas municipais alegam não ter condições de funcionar sem água. Há relato de casos em que a merenda não foi servida por não haver água para preparar os alimentos.
 
— Caiu uma chuvinha, e a situação até melhorou, porque as cisternas abasteceram. Mas até maio vivemos um grande colapso no abastecimento. Dependíamos de água que vinha de outros municípios, e os caminhões-pipa que chegavam não eram suficientes para atender a nossas 50 escolas, seis delas na área urbana.
 
Só recebíamos dois por dia para a rede municipal. Não dava. As prateleiras estavam cheias de comida para a merenda, mas faltava água para prepará-la. Tivemos inclusive que suspender as aulas, porque na área rural a situação ficou caótica. Acredito que alguns colégios chegaram a passar dez dias sem aula — afirma Rosângela Chaves Gomes, secretária de Educação do município de Panelas, a 201 quilômetros da capital pernambucana.
 
Famosa pela sua corrida de jericos, Panelas nem pôde comemorar os 40 anos da festa. O evento, tradicionalmente em 1º de maio, foi suspenso pelo prefeito Sérgio Miranda (PTB) porque, com as torneiras secas, não havia condições de receber os 70 mil forasteiros que costumam ir à cidade torcer pelos jumentos.
 
Secretária de Educação de Águas Belas, cujo abastecimento entrou em colapso e só começa a melhorar agora, com as primeiras chuvas, Roseana Pereira Nunes relata problemas idênticos.
 
— Parte do que se consome em Águas Belas vem do município de Inajá, a cem quilômetros. Ficamos sem água potável de qualidade e muitas crianças chegaram a adoecer — conta Roseana. — O problema é que os caminhões levam a água de dia, mas à noite as pessoas invadem a escola e retiram a água.
Quando os alunos chegam de manhã, está tudo seco de novo. Não suspendemos as aulas, mas liberamos muitas vezes antes do horário porque não tinha água para beber nem para preparar a merenda.
 
Elias Félix de Souza, de 14 anos, e João Lucas da Silva, de 11, sabem o que é isso. O primeiro chega a passar três horas na fila de espera do carro-pipa, na periferia de Águas Belas, a 314 quilômetros de Recife. Quando o caminhão não chega, ele vai até a serra do Comunaty buscar água para a família.
 
— Vou de jumento ou de carona em moto, com tambores de 30 litros. Hoje deixei de fazer o dever, como quase todo dia. Ou espero o carro-pipa ou tem que rodar para achar água — conta Elias, estudante do ensino fundamental do colégio João Rodrigues Cardoso.
 
João Lucas também espera pelo caminhão. Se este não chega, ele faz a mesma coisa que o amigo:
 
— Na serra tem uma minação (olho d’água). E, quando preciso ir até lá, não faço o dever mesmo. Passo muitos dias sem fazer. Ou estudo ou procuro água para a casa — afirma o menino, com naturalidade.
 
A 20 quilômetros dali, no sítio Caldeirão, também em Águas Belas, Valdivan Gama dos Santos, de 9 anos, enfrenta a mesma saga. Tangendo a dupla de bois Formoso e Formado, ele levava água para casa. Passava das 11h, e suas aulas começavam ao meio-dia.
 
— Vou devagarzinho, para os bichos não cansarem — diz Valdivan, lembrando que, em casa, três irmãos esperavam pela água.
 
Matriculado na escola municipal São Bento, Valdivan conta que só se dedica aos deveres escolares depois de conseguir água para sua casa. Outras 20 crianças, que aguardavam a chegada do caminhão-pipa em Águas Belas, relataram o mesmo problema. Até as pequeninas, como Joelma Calino, de 4 anos.
Há alguns dias, ela faltou à creche para guardar um lugar para a mãe na fila de espera do carro-pipa, às margens da BR-423, que liga Águas Belas e Garanhuns. Segundo sua mãe, Josefa da Silva Melo, de 29 anos, que vive dos R$ 102 do Bolsa Família, não houve condições de enviar a menina para a creche:
 
— Tem jeito não. Só tem ela. Fazia um mês que o carro-pipa não vinha aqui. A gente tem que aproveitar. A menina ajuda olhando os baldes enquanto carrego outros para casa.
 
Calendário escolar organizado segundo chegada de carros-pipa
ÁGUAS BELAS (PE) Não é só por falta de água que as crianças são liberadas nas escolas. O diretor do Instituto Cidadania do Nordeste, Givanilson Porfírio da Silva, explica que muitas prefeituras organizam os calendários das escolas de acordo com a chegada dos carros-pipa e liberam as crianças no dia de abastecer. O instituto presta assistência técnica a lavradores de todo o semiárido:
 
— As perdas na educação são consideráveis, sim.
 
Que o diga Antônia dos Santos do Nascimento, presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Tacaimbó, a 169 quilômetros de Recife, no agreste:
— As crianças estão cheias de vontade de ir à escola. Mas já aconteceu aqui de os meninos passarem dias sem aula, porque não tinha água nas escolas. Em outros casos, voltam duas horas mais cedo, não só na zona rural, como também na cidade.
 
10 de junho de 2013
LETICIA LINS - O Globo

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