"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quinta-feira, 8 de setembro de 2011

HOMENS DE CLASSE

Esquerda, direita: há coisas mais importantes na vida. Vamos lendo, vamos vivendo. E então percebemos que a distinção fundamental não é entre esquerda e direita. Até porque existem várias esquerdas e várias direitas.
A diferença resume-se em duas palavras: liberdade individual. Ou estamos dispostos a ceder essa liberdade a um poder político único e centralizado; ou, simplesmente, não estamos.
Deve ser por isso que George Orwell tem lugar eterno na minha estante. Evelyn Waugh também. E, ao lado deles, prometo colocar um livro notável sobre ambos: "O Mesmo Homem" (Difel), de David Lebedoff. Chegou com três anos de atraso ao Brasil. Chegou a tempo. Lebedoff foi sagaz. Partiu de uma coincidência biográfica -o esquerdista Orwell e o conservador Waugh nasceram em 1 903- para mostrar como ambos foram, na verdade, "o mesmo homem". Confrontaram-se com os mesmos problemas da modernidade. Responderam a eles alicerçados na mesma posição moral.
Mas, antes dos problemas modernos, convém visitar um problema especificamente britânico. Anos atrás, em Oxford, um velho professor dizia-me que não havia nada mais cruel do que ter nascido na classe média antes da Segunda Guerra Mundial. Era o caso dele. Numa sociedade rigidamente estratificada, como a inglesa, habitar o meio da tabela era levar por tabela. Era viver na angústia de poder cair no fundo da ladeira. Era viver na angústia de desejar subir até ao topo.
Orwell e Waugh, produtos do meio, experimentaram pressões dos extremos. Responderam a eles como Disraeli e Marx, numa interpretação de Isaiah Berlin, responderam ao seu judaísmo um século antes: procurando suplantar o "defeito" de origem pela identificação com os de cima (aristocracia) e os de baixo (proletariado).
Para Orwell, os anos de terror na "escola pública" ("pública", na Inglaterra, significa "privada") imprimiram-lhe um sentido inapagável de marginalização e injustiça que definiu um percurso: o percurso descendente de quem prefere descer a escala social para lhe roubar todos os seus terrores. O estoicismo de Orwell; a sua pobreza autoimposta; o seu recuo estratégico para as favelas de Paris ou Londres são marcas de uma opção. A opção pela queda.
Evelyn Waugh optou pela ascensão: se existia o mesmo "pecado de classe", era necessário redimi-lo casando bem e vivendo melhor. Waugh agiu em conformidade e, ainda antes dos 40, era a encarnação perfeita, alguns dirão caricatural, do "squire" inglês. David Lebedoff narra com mestria a história desses percursos. Mas o melhor do livro está nas aproximações entre eles: na forma como Orwell, a partir de baixo, e Waugh, a partir de cima, foram respondendo aos desafios sombrios do tempo.
E respondendo de igual forma: não apenas elegendo a literatura, e a clareza inegociável da língua inglesa, como instrumento de reflexão e transformação social. Mas vislumbrando na modernidade a presença insidiosa do relativismo moral -uma sombra de irracionalismo que, ao viciar o pensamento (e até a linguagem), permitia o abandono de um sentido primordial de decência comum e abria as portas para os totalitarismos do século 20.
George Orwell acabaria por morrer em 1950. Tinha 46 anos. E, meses antes do fim, receberia no hospital a visita de Evelyn Waugh. Sabemos pouco sobre o conteúdo dessa visita -e Lebedoff não acrescenta muito. Daria o meu dedo mindinho para recuar no tempo e ser uma mosca no quarto daquele hospital de Londres.
Mas sabemos que ela foi antecedida por cartas de admiração mútua. Verdade: o católico Waugh nunca entendeu como era possível a um ateu, como Orwell, defender posições morais absolutas.
Mas o mistério talvez se possa resolver com uma suprema ironia: o fato de Orwell e Waugh terem abandonado a "classe média" não significa que a "classe média" os tenha abandonado a eles.
No gosto de ambos pela moderação e pela prudência; e na defesa "burguesa" da liberdade individual face aos autoritarismos dos extremos, Orwell e Waugh não foram apenas "o mesmo homem"; foram também esse homem que, depois de todas as viagens, nunca realmente saiu do mesmo lugar.

João Pereira Coutinho, Folha de S. Paulo

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