Esquerda, direita: há coisas mais importantes na vida. Vamos lendo, vamos vivendo. E então percebemos que a distinção fundamental não é entre esquerda e direita. Até porque existem várias esquerdas e várias direitas.
A diferença resume-se em duas palavras: liberdade individual. Ou estamos dispostos a ceder essa liberdade a um poder político único e centralizado; ou, simplesmente, não estamos.
Deve ser por isso que George Orwell tem lugar eterno na minha estante. Evelyn Waugh também. E, ao lado deles, prometo colocar um livro notável sobre ambos: "O Mesmo Homem" (Difel), de David Lebedoff. Chegou com três anos de atraso ao Brasil. Chegou a tempo. Lebedoff foi sagaz. Partiu de uma coincidência biográfica -o esquerdista Orwell e o conservador Waugh nasceram em 1 903- para mostrar como ambos foram, na verdade, "o mesmo homem". Confrontaram-se com os mesmos problemas da modernidade. Responderam a eles alicerçados na mesma posição moral.
Mas, antes dos problemas modernos, convém visitar um problema especificamente britânico. Anos atrás, em Oxford, um velho professor dizia-me que não havia nada mais cruel do que ter nascido na classe média antes da Segunda Guerra Mundial. Era o caso dele. Numa sociedade rigidamente estratificada, como a inglesa, habitar o meio da tabela era levar por tabela. Era viver na angústia de poder cair no fundo da ladeira. Era viver na angústia de desejar subir até ao topo.
Orwell e Waugh, produtos do meio, experimentaram pressões dos extremos. Responderam a eles como Disraeli e Marx, numa interpretação de Isaiah Berlin, responderam ao seu judaísmo um século antes: procurando suplantar o "defeito" de origem pela identificação com os de cima (aristocracia) e os de baixo (proletariado).
Para Orwell, os anos de terror na "escola pública" ("pública", na Inglaterra, significa "privada") imprimiram-lhe um sentido inapagável de marginalização e injustiça que definiu um percurso: o percurso descendente de quem prefere descer a escala social para lhe roubar todos os seus terrores. O estoicismo de Orwell; a sua pobreza autoimposta; o seu recuo estratégico para as favelas de Paris ou Londres são marcas de uma opção. A opção pela queda.
Evelyn Waugh optou pela ascensão: se existia o mesmo "pecado de classe", era necessário redimi-lo casando bem e vivendo melhor. Waugh agiu em conformidade e, ainda antes dos 40, era a encarnação perfeita, alguns dirão caricatural, do "squire" inglês. David Lebedoff narra com mestria a história desses percursos. Mas o melhor do livro está nas aproximações entre eles: na forma como Orwell, a partir de baixo, e Waugh, a partir de cima, foram respondendo aos desafios sombrios do tempo.
E respondendo de igual forma: não apenas elegendo a literatura, e a clareza inegociável da língua inglesa, como instrumento de reflexão e transformação social. Mas vislumbrando na modernidade a presença insidiosa do relativismo moral -uma sombra de irracionalismo que, ao viciar o pensamento (e até a linguagem), permitia o abandono de um sentido primordial de decência comum e abria as portas para os totalitarismos do século 20.
George Orwell acabaria por morrer em 1950. Tinha 46 anos. E, meses antes do fim, receberia no hospital a visita de Evelyn Waugh. Sabemos pouco sobre o conteúdo dessa visita -e Lebedoff não acrescenta muito. Daria o meu dedo mindinho para recuar no tempo e ser uma mosca no quarto daquele hospital de Londres.
Mas sabemos que ela foi antecedida por cartas de admiração mútua. Verdade: o católico Waugh nunca entendeu como era possível a um ateu, como Orwell, defender posições morais absolutas.
Mas o mistério talvez se possa resolver com uma suprema ironia: o fato de Orwell e Waugh terem abandonado a "classe média" não significa que a "classe média" os tenha abandonado a eles.
No gosto de ambos pela moderação e pela prudência; e na defesa "burguesa" da liberdade individual face aos autoritarismos dos extremos, Orwell e Waugh não foram apenas "o mesmo homem"; foram também esse homem que, depois de todas as viagens, nunca realmente saiu do mesmo lugar.
João Pereira Coutinho, Folha de S. Paulo
Um painel político do momento histórico em que vivem o país e o mundo. Pretende ser um observatório dos principais acontecimentos que dominam o cenário político nacional e internacional, e um canal de denúncias da corrupção e da violência, que afrontam a cidadania. Este não é um blog partidário, visto que partidos não representam idéias, mas interesses de grupos, e servem apenas para encobrir o oportunismo político de bandidos. Não obstante, seguimos o caminho da direita. Semitam rectam.
"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)
"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)
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