Lúcio Flávio, de 32 anos, é filho da Dilma, uma diarista, xará da presidente da República. No início, Dilma não acreditou no que o filho contou por telefone. Ela passou mal no sofá da sala, queimou a mão no forno de tanto nervosismo, chamou o filho de “burro”, mas disse depois que se arrependeu. Talvez porque a falta de sorte tenha tornado Lúcio Flávio famoso.
Os colegas ricos sumiram, com medo de sequestro, e até agora não deram um tostão de consolo ao “Bomba”. É o apelido de Lúcio Flávio, uma referência a seu braço musculoso, onde sobressai uma tatuagem em caligrafia desenhada, com o nome exótico da filha de 8 anos, Eyshila. “Poxa, papai, e a minha festa de 9 anos?”, perguntou Eyshila. Ela sonhava com uma festa grande, animada pela banda Rebeldes.
De uniforme e boné, posando na frente do bar ou atrás do balcão, Lúcio Flávio ouviu muita gozação. Orgulhoso, disse que não telefonou para nenhum colega pedindo dinheiro, mas que, no lugar deles, teria oferecido uma grana ao perdedor. Aproveita seus 15 minutos de fama para martelar na imprensa e nos programas de televisão sua fé em Deus, sua determinação (“Sou um brasileiro, não desisto nunca”) e seus sonhos – caso algum ricaço se apiede dele e resolva ajudá-lo. Por enquanto, espera que o patrão entenda o assédio que o faz chegar atrasado ao trabalho e, quem sabe, o promova. O Cervantes é um bar-restaurante de mais de meio século de idade. Os donos são espanhóis. Serve até as 3 horas da madrugada generosos sanduíches. O carro-chefe é o de filé, queijo e abacaxi. Lúcio Flávio trabalha na filial da Barra da Tijuca, que abriu há sete anos e é bem menos tradicional que a sede na Prado Júnior, em Copacabana, rua movimentada e rodeada de inferninhos.
“Não existe azar, existe destino”, diz Lúcio Flávio, ainda traumatizado com a história. “Eu cheguei a colocar os R$ 10 no bolão da Quina, mas peguei de volta porque estava sem dinheiro para a passagem de volta para casa e não sabia ainda como seria o movimento do bar naquele dia.” Lúcio Flávio tinha acabado de receber R$ 10 que um colega lhe devia por uma outra aposta, sobre a semifinal da Copa do Brasil. Ele não consegue responder à pergunta que todo mundo faz. Mas por que, Lúcio, logo você, um dos apostadores mais militantes da casa, desistiu agora? “Não sei o que me deu, mas um dia vai chegar minha vez, Deus está aprontando alguma coisa para mim. E nunca mais deixo de apostar em nada.” Duro dizer a ele que é remotíssima a probabilidade de que ele enriqueça com outro bolão.
Penso em como Lúcio Flávio se sente ao deitar e ao acordar. O dia é mais fácil, sempre cheio de trabalho, ainda mais agora que o bar perdeu repentinamente dez garçons, seis copeiros, dois caixas e um gerente, todos premiados pela Quina de São João. Mas há os momentos consigo mesmo e com a família. A cara mal-humorada da mãe, fazendo-se de vítima na televisão, sugere que ele deve ter passado maus bocados com dona Dilma. Tomara que se recupere das cobranças em casa. Na última sexta-feira, ganhou ao vivo, no Encontro com Fátima Bernardes, uma camisa autografada do Ronaldo Fenômeno e ouviu conselhos de quem já enfrentou derrotas e adversidades.
Não adianta chegar para Lúcio Flávio e dizer que esses R$ 635 mil não seriam garantia de felicidade para ele, seus pais, sua filha Eyshila e seu filho João Vítor, de 12 anos. Muitos milionários de loteria já perderam tudo, ficaram endividados, perderam o rumo, as amizades, a família e até a vida, assassinados ou estressados. Em poucos dias, ele aprendeu que a derrota tem um lado bom num país que se solidariza com os perdedores. Enquanto os colegas receiam ser sequestrados e são xingados de egoístas por amigos e parentes, ele virou o protagonista da história e comoveu o Brasil.
Está a caminho de virar o chato de galocha, a figurinha mais batida dos programas populares de rádio e de auditório. Resista com dignidade ao assédio, Lúcio Flávio. Continue a apostar, se é seu vício, mas mude de santo, por precaução.
RUTH DE AQUINO é colunista de ÉPOCA
03 de julho de 2012