Pela proposta de Fonteles, aprovada sem qualquer discussão pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados na quarta-feira (24/4), as decisões do Supremo que declarem a inconstitucionalidade de emendas à Constituição não gerarão efeito até que o Congresso Nacional se manifeste sobre sua legitimidade. No caso de os parlamentares rejeitarem a decisão, ela será submetida à consulta popular.
O texto em tudo se assemelha à regra prevista no artigo 96, parágrafo único, da Constituição de 1937, outorgada por Vargas em 10 de novembro daquele ano.
A Carta fixava o seguinte: “Só por maioria absoluta de votos da totalidade dos seus juízes poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou de ato do presidente da República. Parágrafo único — No caso de ser declarada a inconstitucionalidade de uma lei que, a juízo do presidente da República, seja necessária ao bem-estar do povo, à promoção ou defesa de interesse nacional de alta monta, poderá o presidente da República submetê-la novamente ao exame do Parlamento: se este a confirmar por dois terços de votos em cada uma das Câmaras, ficará sem efeito a decisão do tribunal”.
Na prática, contudo, quem tinha o poder de rever as decisões do Poder Judiciário, mesmo com base em critérios bastante subjetivos, era o presidente da República. Isso porque o artigo 180 da mesma Constituição dava estes poderes a Vargas. De acordo com a regra, “enquanto não se reunir o Parlamento nacional, o presidente da República terá o poder de expedir decretos-leis sobre todas as matérias da competência legislativa da União”.
Sem o Parlamento ativo, Getúlio Vargas usou da prerrogativa de cassar decisões do Supremo em, pelo menos, duas ocasiões. Uma delas por meio do Decreto-Lei 1.564, de 5 de setembro de 1939 — clique aqui para ler o decreto. O Supremo havia declarado inconstitucional lei que sujeitou à incidência de imposto de renda os vencimentos pagos pelos cofres públicos estaduais e municipais.
Para derrubar a decisão do Supremo, Vargas considerou que “a decisão judiciária não consulta o interesse nacional e o princípio da divisão equitativa dos poderes”. A decisão do presidente foi publicada no Diário Oficial da União em 8 de setembro de 1939, Seção 1, página 21.525.
Voltemos ao país de hoje, onde as instituições caminham em franco processo de amadurecimento sob a proteção da Constituição de 1988 que, apesar de prolixa, garantiu o Estado Democrático de Direito e a estabilidade que o país vivencia há 25 anos. O que está em jogo na discussão é nada menos do que a cláusula pétrea insculpida do artigo 2ª da Constituição Federal: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.
Há uma clara tensão — que não é sinônimo de crise — entre os poderes Legislativo e Judiciário, instalada por decisões contramajoritárias do Supremo. Existem vários exemplos. Desde decisões que, na prática, fazem a reforma política pela via judicial — caso da declaração de inconstitucionalidade da cláusula de barreira e da instituição da fidelidade partidária — àquelas que provocam avanços sociais por conta de impasses morais no Congresso — permissão de interrupção de gravidez em caso de fetos anencéfalos e a equiparação da união homoafetiva à união estável entre casais formados por um homem e uma mulher.
O julgamento da Ação Penal 470, o processo do mensalão, foi apenas o ápice do acirramento dessa tensão. De qualquer maneira, a aprovação pela CCJ da Câmara da PEC 33, como lembrou o ministro Marco Aurélio, soa como retaliação. “Eu não imagino essa virada de mesa que pretendem, e muito menos em cima de um julgamento como foi o da Ação Penal 470”, disse o ministro, ao ser questionado sobre a possível motivação da aprovação da proposta. “Eu não posso imaginar o que haveria como móvel dessa proposta. Agora, já diziam os filósofos materialistas gregos há 2,5 mil anos: nada surge sem uma causa. Não posso bater palmas para os integrantes da comissão”, afirmou Marco Aurélio.
Não faltam críticas, algumas muito bem embasadas, ao chamado ativismo judicial. Até ministros do próprio Supremo já admitiram que é tempo de o tribunal começar a formar uma jurisprudência de autocontenção para não avançar demais em assuntos políticos. Mas, justiça seja feita, o Supremo não age espontaneamente. Tem de ser provocado para que decida. E no caso de decisões políticas, como a que foi tomada nesta quarta-feira pelo ministro Gilmar Mendes (clique aqui para ler STF suspende tramitação de projeto que inibe criação de partidos políticos), o Judiciário é provocado pelos próprios membros do Congresso.
Pelo texto da proposta assinada por Nazareno Fonteles, as súmulas vinculantes aprovadas pelo Supremo Tribunal Federal também deveriam ser submetidas à análise do Congresso antes de surtirem efeitos. E sua aprovação, assim como a declaração da inconstitucionalidade de quaisquer leis, teria de se dar por votação de quatro quintos dos integrantes do tribunal. Trocando em miúdos, com os votos de nove dos 11 ministros que compõem a Corte.
O quórum poderia inviabilizar o trabalho do Supremo ou gerar situações tragicômicas, como uma votação em que oito ministros consideram determinada lei inconstitucional, mas ela continua em vigor porque três dos juízes votaram por sua constitucionalidade. A principal atribuição do Supremo fixada no artigo 102 da Constituição de 1988, de guardar a Carta Cidadã, estaria comprometida e entregue ao Poder Legislativo.
O Poder Legislativo se tornar o guardião da Constituição não seria necessariamente uma novidade — era assim há 200 anos. A Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824, fixava, em seu artigo 15, que cabia à Assembleia Geral, formada pela Câmara e pelo Senado, interpretar as leis, “velar na guarda da Constituição e promover o bem geral da nação”.
Mais fácil, neste caso, seria entregar ao Congresso a chave do Supremo Tribunal Federal, como observaram muitos juízes e advogados após as notícias da aprovação da PEC 33 pela CCJ da Câmara. Os mesmos críticos que estranharam o silêncio de entidades da sociedade civil, como a Ordem dos Advogados do Brasil, sobre o assunto.
27 de abril de 2013
Rodrigo Haidar é editor da revista Consultor Jurídico em Brasília.