"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



domingo, 4 de novembro de 2012

PETISTA

 



Como eu não estava nos meus dias normais, onde sou sempre gentil, depois de passar o arrepio na coluna, disse-lhe:

 – Você ainda vai me fazer perder as bolas. Ela voltou para o balcão com aquele sorriso maroto. Aí o cara que falava com o Pi saiu e ele veio para minha mesa. A minha pergunta foi imediata:
– Quem é aquele cara? Não se fez de rogado e respondeu em tom meio alto:
– É o filho da puta do petista que é meu vizinho. O cara é um vagal de primeira. Não faz porra nenhuma na vida. É apadrinhado do prefeito da cidade vizinha, foi nomeado para um cargo qualquer e não aparece nem para receber. O din din é depositado todo mês na conta dele. Comecei a rir e ele disse:
 – Estás a rir, é? Não sabes da pior. Outro dia acordei no fim da madrugada. Ainda estava escuro. Não conseguindo dormir mais, tirei o pijama, vesti uma roupa meia velha e resolvi ir dar comida para a minha vaca. Enchi um balde de mistura da máquina onde pico capim, milho, resto da cana e o caralho a quatro e fui até o cocho. Nesse momento, estava começando a amanhecer. E o meu galo trepou na cerca e começou a cantar. Eu estava passando na cerca e olhei para o quintal do vizinho. O viado do galo dele é mais petista do que ele.

Eu não entendi, e perguntei:
– O que você quer dizer com isso?
– Eu sabia que você não ia acreditar. O filho da puta do galo do vizinho fica olhando meu galo cantar e não faz porra nenhuma, mais vagabundo que o dono. Fica olhando meu galo cantar apenas concordando com a cabeça.


04 de novembro de 2012
Magu

COERÇÃO SOCIAL

 

A confirmação de que a presidente Dilma nunca levou em conta a sugestão de não comparecer à posse do relator do mensalão, ministro Joaquim Barbosa, na presidência do Supremo Tribunal Federal, dada por Jorge Bastos Moreno na sua coluna de ontem, é um alívio para quem se preocupa com os avanços de certas áreas petistas sobre a institucionalidade democrática.
Não comparecer à posse seria, ao ver desses setores, uma maneira de demonstrar a insatisfação do governo com as condenações do mensalão. Há indicações de que o próprio ex-presidente Lula estaria insistindo nessa atitude por parte da presidente, o que, se confirmado, demonstraria um total descontrole.

Na verdade, esse “protesto” seria transformar questão de Estado em partidária, prática comum entre setores petistas, mas já superada pelo menos em termos oficiais desde que Lula, em seu primeiro mandato, desistiu de andar com uma estrela do PT na lapela e trocou-a por um escudo da República.

A estrela vermelha do PT plantada nos jardins do Alvorada por dona Marisa Leticia foi outra afronta, aos princípios do republicanismo e ao trabalho de Burle Marx, que também foi superada.

Paralelamente, esses setores radicais do PT empenhados em confrontar a democracia estão sempre dando uma ajuda à imagem institucional da presidente, que sai desses embates com a figura engrandecida.

Diante de tanta insensatez, uma atitude sensata passa a ser elogiável. Suspeito que tudo não passe de uma jogada bolada pelo João Santana.

Passado o primeiro choque, vai o PT retornando à normalidade democrática onde sua atuação está circunscrita às normas da lei, ficando ultrapassada a tentativa de emparedar o STF e a liberdade de imprensa.

A condenação de todo o alto comando partidário petista é ao mesmo tempo a condenação de uma forma de fazer política que a democracia abomina, como ressaltou o ministro Ayres Britto em uma das suas intervenções durante o julgamento do mensalão.

A consequência é o estreitamento da margem de manobra do grupo petista que parece ainda insistir na prática agora condenada, como se o que está acontecendo não tenha nenhuma consequência no comportamento do eleitor médio brasileiro.

O PT alegar que a vitória nas eleições municipais, da qual emergiu como a sigla mais votada e com a prefeitura de São Paulo, seria uma absolvição das urnas, é não apenas admitir que necessita de uma absolvição para pagar seus pecados, como transformar cada derrota que teve em uma condenação.

Nada disso aconteceu, o PT não foi absolvido pelas urnas e precisa dar à sua vitória eleitoral a verdadeira dimensão: um passo adiante na organização partidária, sem dúvida nenhuma a estrutura mais azeitada entre todas as que estão na disputa do eleitorado.

Se o partido continuar atrelado a esse passado que já foi condenado e ainda não foi totalmente revelado, insistindo em se colocar acima da lei, afrontando os poderes da República, estará marcado pela imagem que ainda é predominante, a de um partido de tendência autoritária.

A renovação do partido, tese que o ex-presidente Lula defendeu com méritos na campanha paulistana, tem que corresponder a atitudes renovadas, o que não acontece na mesma São Paulo, onde um vergonhoso acordo pós-eleitoral une o prefeito Gilberto Kassab, caça preferencial da campanha, ao caçador, numa prática nefasta que permitiu a Paulo Maluf cantar o jingle lulista.

Do jeito que vai, com a defesa dos mensaleiros e a prática política de perverso pragmatismo, a tese de renovação não passa de uma tática marqueteira imediatista.

Como também disso não passa a insistência com que esses setores, inconformados com o que classificam de distorções do STF, exigem que o mesmo tratamento seja dado ao mensalão tucano.
Ora, se veem nas condenações de agora injustiças, como desejam que o mesmo “julgamento de exceção” se repita? Seria uma contradição se não fosse uma mera tática de disputa política.

O adiamento de uma suposta nota de protesto contra a “mídia golpista” e o STF é uma demonstração de que, mesmo a contragosto, esses setores ainda têm juízo suficiente para saber suas limitações.
Mesmo que o tenham feito com receio de exacerbar os ânimos antes da definição das penas, é uma demonstração de que a coerção social funciona.

04 de novembro de 2012
Merval Pereira, O Globo

VALÉRIO, O FIEL


 

Discreto, fiel, um túmulo. Marcos Valério se comportou assim desde sempre. Na CPI dos Correios, que acabou por revelar o esquema de compra de votos engendrado pelo PT, ou diante do Ministério Público.

Revelou nomes dos que receberam dinheiro sujo, mas, jamais, em hora alguma, apontou o dedo para o mandante. Manteve-se leal, um túmulo.

Mas não é trouxa.

Desde que percebeu a inevitabilidade de sua condenação, contrariando o que lhe fora prometido, Valério faz saber que tem bala, que não cairá calado. Como em um trailer, conta em pedacinhos o que diz saber. Assusta seus companheiros de crime, tenta confundir a Justiça.

Deixa vazar que tem uma gravação trancafiada em um cofre em que detalha o mensalão tintim por tintim. Mais grave: nome por nome. Que o esquema é infinitamente maior - somava R$ 350 milhões. Que Lula sempre soube de tudo.

Teria ainda, de acordo com o jornal O Estado de S. Paulo, solicitado regalias da delação. Para tal, contaria mais: a participação de Lula e do ex-ministro Antonio Palocci e até sobre a morte do prefeito Celso Daniel, caso escabroso que há uma década assombra o PT.

Curiosamente, o novo depoimento de Valério ao MP, feito em setembro, veio à tona só agora, na semana seguinte aos 40 anos de prisão que o STF lhe imputou, três dias depois das eleições. Com o gesto, ele aumentou seu crédito junto ao PT, desta vez por não azedar o jogo das urnas.

Ao mesmo tempo, com xilindró à vista, informou aos seus contratantes os limites de sua fidelidade. Se for para passar o resto de seus dias na cadeia, o fará com barulho. Muito barulho.


No PT, a reação foi quase burocrática. O presidente da Câmara Marcos Maia (PT-RS) considerou “lamentável” Valério envolver Lula. E Jilmar Tatto (SP), líder do PT, desqualificou o denunciante.

Lula nada disse. Palocci, sumido desde o flagrante de seu enriquecimento relâmpago de R$ 20 milhões, também ficou calado. Mandou seu advogado dizer que era “insanidade” e pronto.

Sobre Celso Daniel, nenhum pio.

Ninguém duvida que Marcos Valério saiba muito mais. Que, de alguma maneira, deve ter documentado e se protegido. Seria tolo se não o fizesse.

Acuado e sem poder resgatar as garantias de impunidade que o PT de Lula lhe deu, ele solta acusações em pílulas que podem até não ter lastro. Só não é prudente fazer-lhe ouvidos moucos. Será preciso esmiuçá-las.

Afinal, o que aconteceria se a voz do então deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) não fosse investigada? O país continuaria refém do mais sofisticado esquema para surrupiar o Estado e sua representação popular. Pior: o mensalão continuaria não existindo, como tanto sonha o PT.

04 de novembro de 2012
Mary Zaidan é jornalista, trabalhou nos jornais O Globo e O Estado de S. Paulo, em Brasília.

FHC DIZ QUE BIGODE DE MERVAL PEREIRA PRECISA DE RENOVAÇÃO

 

AMSTERDÃ - Ao participar de uma reunião do grupo The Elders, ao lado de Desmond Tutu, Nelson Mandela e Bill Clinton, entre outros líderes mundiais, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse que há mais coisas no Brasil, além do PSDB, que devem ser recicladas. "O bigode do Merval Pereira, por exemplo, precisa de renovação. É um caso típico de fadiga do material", disse, arrancando aplausos de senhoras de cabelo roxo azulado sentadas na primeira fila do auditório.

"Imortal que se preze está sempre adiante do seu tempo, lançando tendências", completou, citando a si mesmo como exemplo. Animado com a repercussão de suas palavras, FHC exigiu a atualização imediata do penteado de Miriam Leitão e da coleção de polainas do blogueiro Reinaldo Azavessas, segundo ele a pena mais aguda da República Velha.


FHC também pediu a renovação imediata do guarda-roupas do Faustão

Depois do encontro, envolto numa nuvem de fumaça, cercado por jovens loiras e universitárias no coffee shop Bulldog, FHC pediu um papel de seda para escrever um manifesto pela "Renovação da caretice universal", enquanto devorava com muito charme e elegância brigadeiros recheados com doce de leite.

O texto, segundo o colunista da revista Avon, Luiz Felipe Pondé, "é um soco na cara, no estômago e no saco do Brasil mensaleiro, mas, infelizmente, não será compreendido pelas mulheres, pela classe C e por outras minorias intelectualmente prejudicadas".

Depois de ler o texto de FHC, José Serra disse em nota oficial que se sente revigorado.

04 de novembro de 2012
The i-piauí Herald

SEM JORNAL GRANDE, ESTAMOS FRITOS

Confesso: morro de medo de sermos daqui a pouco como a Argentina. Por Sérgio Vaz

 
“Vendeme un diario con noticas, canillita, / Clarín o Crónica, La Prensa o La Razón. / Si el mundo fue ya no será una porquería, / porque en el mundo vivimos vos y yo.” (“Preludio para un canillita”, Astor Piazzola e Horacio Ferrer.)

Não sei se Crónica, La Prensa e La Razón sobrevivem. Os jornais morrem, como morreu, poucos dias atrás, o Jornal da Tarde, em que comecei no jornalismo, em que tive o privilégio de trabalhar ao longo de 14 anos, de 1970 a 1984.

O que sei é que, se depender de Cristina Kirchner, o Clarín vai desaparecer.
Por uma coincidência grande, como tantas que acontecem na vida, li hoje a entrevista do diretor do La Nación à revista Veja. La Nación está para o Clarín mais ou menos como O Estado de S. Paulo está para a Folha de S. Paulo. São competidores, rivais. Me lembro, embora vagamente, de ter lido muitos anos atrás uma entrevista com o Otavinho, Otávio Frias Filho, hoje, e já há algum tempo, diretor editorial da Folha, dizendo que na cidade de São Paulo não cabem dois grandes jornais, e que só um sobreviveria – o dele, é claro.

Acho estranho um dono de jornal torcer pelo fechamento de um jornal. Acho estranho jornalistas detestarem a existência de jornais, como se vê nas redes sociais tantos jornalistas – lulo-petistas, é claro – vociferando contra a existência de jornais e revistas, a tal da grande imprensa, como eles chamam. Mas tudo bem. A vida é cheia de coisas estranhas.

Na entrevista à Veja, o diretor do La Nación, Bartolomé Mitre, trisneto do fundador do jornal, que foi também presidente da Argentina entre 1862 e 1868, faz veemente defesa de seu concorrente direto, o Clarín. Ao contrário do Otavinho, que expressava seu desejo de que o concorrente morresse, desaparecesse, Bartolomé Mitre entende que ele e seu rival estão no mesmo barco.


Os jornais independentes dos governos, os jornais que irritam o governante de plantão, estão no mesmo barco. Eles são a garantia da democracia.

A grande diferença entre um regime democrático e um regime totalitário, ou filo-totalitário, está na existência, ou não, de uma imprensa livre, independente.

Ou, para citar pela milionésima vez a frase brilhante, genial, do editorial de Millôr Fernandes na edição de número 300 do Pasquim, “imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e molhados”.
Os jornais e revistas que sobrevivem à custa de anúncios do governo e suas empresas – Caixa, Petrobrás, Banco do Brasil, Correios, etc, etc -, tipo Carta Capital, Caros Amigos, Brasileiros – são armazém de secos e molhados. Não são imprensa.

“Cerca de 80% dos canais de televisão, dos jornais e das rádios já estão a mando do governo”, diz Bartolomé Mitre na entrevista à Veja. “Hoje, apenas o La Nación e o Clarín e uns poucos jornais podem dizer o que querem. Os veículos do interior, menores, não têm mais essa mesma capacidade. Eles não conseguem, como nós, sobreviver apenas com os anunciantes privados. Nós temos zero de publicidade oficial. Somos independentes. No interior, infelizmente, os jornais agora são todos bancados por anúncios do estado. Não podem escrever sobre uma série de temas. Servem como meros porta-vozes do governo.”
***
No auge da mais recente ditadura brasileira, a dos milicos de 1964 a 1986, o então vice-rei da Bahia, Antônio Carlos Magalhães, fez com um jornal que lhe fazia oposição o mesmo que a horrenda Cristina Kirchner está fazendo agora com o Clarín. Acho que era o Jornal da Bahia, mas já não tenho certeza do nome, e uma busca rápida no Google não me deu garantias.

ACM, governador indicado pelos milicos mais de uma vez, depois ministro dos milicos, asfixiou o jornal que fazia oposição a ele. Cortou toda a publicidade do Estado, das estatais, e usou mafiosament
e sua influência sobre as grandes empresas para que elas não anunciassem mais no jornal.
O jornal fechou.

(Parênteses: na época, o Estadão fazia a defesa firme, rija, do Jornal da Bahia. A Folha dava ajuda aos milicos, aos torturadores, como bem mostra o documentário Cidadão Boilesen. Seu jornal popular, a Folha da Tarde, era assim uma espécie de Diário Oficial do Doi-Codi.)

Os métodos são parecidos. Cristina, tida como “de esquerda” (na verdade uma populista idiota, como todos os populistas, de Vargas a Lula, de Perón ao falecido Néstor Kirchner), faz tudo igualzinho a ACM ou Hugo Chávez. São todos iguais nesta noite latino-americana.

“Direita” e “esquerda” são conceitos antigos, velhos, caquéticos. Muitas vezes gente de “direita” e “esquerda” parecem gêmeos univitelinos – basta lembrar do pacto entre Hitler e Stálin pouco antes da eclosão da Segunda Guerra.
***
Os lulo-petistaas devem, com toda razão, sentir imensa inveja do que a horrenda Cristina está fazendo.
Ah, que maravilha los Hermanos argentinos que estão destruindo a Grande Imprensa! Que maravilha isso de sindicalistas impedirem que cheguem às ruas La Nación e Clarín! Já pensou, meu, um país sem Veja, O Globo, Rede Globo, Estadão!!!
Ah, como seria maravilhoso este país só com a Carta Capital, Caros Amigos, Brasileiros, mais a TV Lula! Bem, pode até ter a Record e o SBT, que esses mamam nas nossas tetas!

***
Estamos cercados por governos populistas ditos “de esquerda” por todos lados. Venezuela, Equador, Bolívia, Argentina.
Muitas vezes me pergunto por que, raios, nuestra América Latina virou o lixo da História, o único lugar do mundo onde países ainda teoricamente democráticos namoram tanto essa coisa defunta que é o comunismo.
Mas isso não importa.
O que de fato assusta é pensar que pode acontecer também aqui.
Por que não?
Se está acontecendo na civilizadíssima Argentina, o país da classe média forte, do povo educado, leitor de jornais, por que não poderia amanhã acontecer aqui também, neste paisão em que só 1% lêem jornais?
Por que não?
O que faz uma pessoa como Dilma Rousseff fingir que esqueceu seu passado de luta pela implementação de um regime comunista e dizer, fingindo que candidamente, que a melhor censura é o zapeador do controle remoto?
Falava-se do Efeito Orloff: o que acontecia lá, acontecia depois aqui.
Olha, é o seguinte: eu tenho um imenso medo do que pode acontecer a este país.

04 de novembro de 2012

LONGE DOS OLHOS

 

Os votos das eleições municipais ainda estavam sendo apurados quando um político, que além de governista é ministro, em conversa reservada chamou atenção para o detalhe: "Vocês (jornalistas) não estão percebendo a jogada".

Ele se referia ao noticiário sobre a possível candidatura à Presidência da República do governador de Pernambuco, Eduardo Campos, saudado como liderança emergente na política nacional.

O ministro falava mais especificamente da leitura que se faz do afastamento de Campos do ex-presidente Lula e seu provável alinhamento ao campo da oposição mais adiante, se a economia e os humores do eleitorado criarem dificuldades para a reeleição da presidente Dilma Rousseff. Segundo ele, não é assim que o panorama é visto em algumas rodas de governo.

Nelas se conversa o seguinte: Lula estaria adorando e de alguma maneira até incentivando os festejos em torno de Eduardo Campos.

Marketing petista: o velho e o novo


Quem conhece bem os anseios e o modo de agir do ex-presidente aposta que o plano dele é realmente tentar voltar ao Palácio do Planalto em 2014.

A primazia é a recandidatura de Dilma que Lula, no entanto, não teria dificuldade de afastar. Mas, ponderam os analistas palacianos, faria isso muito melhor se tivesse uma boa justificativa. É aí que entra em cena o fortalecimento da figura do governador. Quanto mais viável ele se apresentar como alternativa ao campo governista, mais argumentos Lula e o PT terão para alegar que só a volta do ex-presidente seria capaz de assegurar a vitória e a preservação do projeto de poder.

Nesse caso, consideram aqueles autores, ofereceria o lugar de vice para o pernambucano e reforçaria a presença do PMDB no Ministério como forma de compensação. É o que vai acontecer? Não necessariamente, mas é o que os observadores engajados no processo entendem que Lula engendra.
E também o que alguns espectadores da oposição acham provável partindo do princípio de que seria muito difícil Eduardo Campos, um situacionista, mudar radicalmente o discurso para buscar votos na condição de oposicionista.

Moto próprio. O PT tem autonomia para aplicar seu estatuto como bem entender. Nisso o presidente do partido, Rui Falcão, diz o óbvio ao justificar a decisão de não punir os condenados pelo Supremo: "Quem aplica o estatuto somos nós".

O PT só não pode insistir em dizer que o partido não se confunde com os crimes cometidos "por alguns" quando os protege alegando que a previsão de expulsão para condenados "por crime infamante ou práticas administrativas ilícitas" nesse caso "não se aplica". A interpretação é discricionária e casuística. Se de um lado evidencia uma unidade rara - senão inexistente - em outros partidos, de outro elimina a possibilidade de qualquer separação entre a ação de um grupo e o pensamento do coletivo, neste aspecto representado pelo presidente. Com a agravante de autorizar a conclusão de que para o PT as leis e regras não requerem obediência irrestrita. Dependem da conveniência.

Meia volta. Se arrependimento matasse não sobraria um deputado federal do PT para contar a história do acordo de rodízio na presidência da Câmara firmado com o PMDB.

É grande a inquietação na bancada, que não acha a menor graça em ficar de fora do comando do Congresso, ainda mais em ano de sucessão.

Na Câmara o acerto é em prol do líder pemedebista Henrique Eduardo Alves e no Senado vale o critério da escolha de um representante do maior partido. No caso, o PMDB.

Os deputados petistas alegam que não foram ouvidos sobre o acordo, cujos termos estão bem postos por escrito, assinados e devidamente guardados na gaveta do vice-presidente Michel Temer.

04 de novembro de 2012
DORA KRAMER - O Estado de S.Paulo

IMAGEM DO DIA

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  • Avenida ao longo da praia de Cape May, New Jersey (EUA), ficou inundada por causa da passagem do furacão Sandy, que se encontra no Atlântico
    Avenida ao longo da praia de Cape May, New Jersey (EUA), ficou inundada por causa da passagem do furacão Sandy, que se encontra no Atlântico - Mark Wilson/Getty Images/AFP
     
    04 de novembro de 2012

    CHEGOU A HORA DE ESCLARECER DE VEZ O ASSASSINATO DO PREFEITO CELSO DANIEL

     


    “Os executores de Celso Daniel começaram a ser castigados. Chegou a hora de identificar e punir os mandantes do assassinato”, informa o título do post de 18 de novembro de de 2010. Passados dois anos, as ameaças de Marcos Valério exigem a republicação do texto.
    Ao escapar da merecidíssima punição pela quebra do sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa, o ex-ministro Antonio Palocci inventou o estupro sem estuprador. Quase 11 anos depois da morte do prefeito de Santo André, gente que se acha muito esperta continua tentando inventar o crime encomendado sem mandante.

    Com o silencioso aval da oposição e o endosso explícito do governo, o PT decidiu que o assassinato de Celso Daniel foi um crime comum. Esqueceram de combinar com a imprensa, que continuou investigando o caso, com a família da vítima, que desafiou as pressões dos interessados em enterrar a história, e sobretudo com o Ministério Público, comprovou em novembro de 2010 o julgamento de Marcos Roberto Bispo dos Santos no foro de Itapecerica da Serra.
    O promotor Francisco Cembranelli provou que o crime foi político e acusou o réu de participação no sequestro seguido de assassinato encomendado pela quadrilha de políticos corruptos que agia na prefeitura de Santo André.

    Os jurados avalizaram a argumentação de Cembranelli e condenaram Bispo dos Santos, foragido, a 18 anos de reclusão em regime fechado. O Ministério Público não está sob o controle do Executivo, reiteraram o destemor e a objetividade de Cembranelli. Não são poucos os brasileiros capazes de enxergar as coisas como as coisas são, reafirmou a decisão do júri. E ainda há juízes no Brasil, mostrou Antonio Augusto Galvão de França Hristov, que determinou a duração do castigo imposto ao homicida.

    O país que presta espera que seja só o começo. Bispo dos Santos foi o motorista de um dos dois carros mobilizados para a captura de Celso Daniel. Faltam os outros integrantes da milícia formada por assassinos de aluguel. E faltam os mandantes.
    Por enquanto, o único formalmente acusado de figurar entre os autores da encomenda é Sérgio Gomes da Silva, vulgo Sombra, ex-assessor e segurança do prefeito executado, que aguarda o julgamento em liberdade.

    Em janeiro de 2002, os supostos amigos voltavam do jantar num restaurante em São Paulo quando ─ segundo o relato de Sombra ─ um grupo de bandidos interceptou o carro blindado que dirigia e arrancou Celso Daniel do banco ao lado. Horas depois, o corpo foi encontrado numa estrada de terra no município de Itapecerica da Serra, desfigurado por marcas de tortura e inúmeras perfurações a bala.

    O depoimento de Sombra na delegacia deixou intrigada a mais crédula das carmelitas descalças. Ele diz que não tentou escapar porque o câmbio hidramático emperrou. O fabricante do veículo desmontou a versão malandra.
    Nem o depoente nem os policiais que o interrogaram decifraram outro enigma: por que os sequestradores permitiram que uma testemunha ocular sobrevivesse ─ e para contar uma história muito mal contada?

    Por que Sombra e Celso Daniel, por exemplo, não permaneceram no interior do carro blindado? Como foi destravada a porta do passageiro, que só poderia abrir por dentro? Por que Sombra não pediu socorro assim que os bandidos se afastaram? Se aquilo não passara de um assalto, por que nenhum dinheiro, nada de valioso foi levado? Por que Celso Daniel foi torturado antes da morte? O que os torturadores desejavam saber? O que procuravam?

    Logo se juntaram as peças do mosaico. Na segunda metade dos anos 90, empresários da área de transportes e pelo menos um secretário municipal, todos vinculados ao PT, haviam forjado em Santo André o embrião do esquema do mensalão. Recorrendo a extorsões ou desvios de dinheiro público, a quadrilha infiltrada na administração municipal garantia parte da gastança com as campanhas do partido. A multiplicação das boladas aguçou a cobiça de alguns quadrilheiros, que começaram a embolsar quantias de bom tamanho. Escolhido para o papel de coordenador da candidatura de Lula na disputa presidencial de 2002, Celso Daniel achou melhor desativar o esquema criminoso. Foi punido com a morte.

    Em julho de 2005, a TV Bandeirantes divulgou o escabroso conteúdo de conversas telefônicas entre Sombra, Gilberto Carvalho, secretário particular de Lula, e o advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, encarregado pelo PT de impedir que as investigações avançassem. Feitas por solicitação do Ministério Público, as gravações pilharam o trio em tratativas destinadas a enterrar a história de vez.

    Na hipótese menos inquietante, comprovam que Altos Companheiros tentaram obstruir a ação da polícia e da Justiça quando o cadáver do prefeito de Santo André ainda esfriava na sepultura.
    Numa das fitas, Gilberto Carvalho procura amainar a inquietação de Sombra. “Marcamos às três horas na casa do José Dirceu”, informa o secretário do presidente da República. “Vamos conversar um pouco sobre nossa tática da semana, né? Porque nós temos que ir para a contra-ofensiva”. A voz de Sombra revela que o suspeito ficou menos intranquilo ao saber da movimentação fraternal. “Vou falar com meus advogados amanhã, nossa ideia é colocar essa investigação sob suspeição”. Carvalho concorda com a manobra: “Acho que é um bom caminho”.

    Em outra conversa, a inquietação de Sombra fora berrada ao parceiro Klinger Oliveira, secretário de Assuntos Municipais de Santo André. “Fala com o Gilberto aí, tem que armar alguma coisa!”, exalta-se o último companheiro a ver o prefeito vivo. “Só quero que as coisas sejam resolvidas!” Além do nervosismo de Sombra, causava preocupação à equipe especializada em socorrer suspeitos o comportamento do médico João Francisco Daniel, irmão do assassinado.

    Como o caçula Bruno, João Francisco sempre afirmou que Celso se condenou à morte ao resolver desmontar a máquina de fazer dinheiro que ajudara a instalar nos porões da prefeitura. Ao notar que fora longe demais, Celso contou ao irmão que decidira entregar a dirigentes do PT um dossiê que detalhava as patifarias. E transformou o irmão numa testemunha de alto risco para os padrinhos de Sombra. Como neutralizar o homem-bomba?

    A interrogação aquece uma das conversas entre Gilberto Carvalho e Greenhalgh. “Está chegando a hora do João Francisco ir depor!”, alerta o advogado do PT. “Antes do depoimento preciso falar com você para ele não destilar ressentimentos lá!”.
    Gilberto se alarma com o perigo iminente. “Pelo amor de Deus, isso vai ser fundamental! Tem que preparar bem isso aí, cara, porque esse cara vai… Tudo bem”. Os donos das vozes nas fitas recitam desde 2002 que houve um crime comum. Se foi assim, por que tirou o sono de tantos figurões da política brasileira?

    O promotor Francisco Cembranelli provou que Celso Daniel foi vítima de uma conspiração tramada por bandidos vinculados ao PT de Santo André e consumada por um grupo de matadores profissionais.
    O Brasil quer ver esclarecidas tanto a eliminação de Celso Daniel quanto a sequência de mortes misteriosas que silenciou nove testemunhas. E quer ver na cadeia todos os culpados ─ incluídos os mandantes. As gravações podem ajudar a identificá-los. As conversas entre Sombra, Greenhalgh e Carvalho não se limitam a escancarar uma mobilização política. Documentam a movimentação de comparsas.

    Crimes que envolvem muita gente sempre são esclarecidos. Até Marcos Valério acabou entrando na história. Chegou a hora de esclarecer de vez o caso insepulto.



    04 de novembro de 2012
    Augusto Nunes

    MARCOS VALÉRIO, "HOMEM-BOMBA ENJAULADO"

     
    Mesmo depois de condenado e preso, Marcos Valério continuará sendo um homem-bomba, sem compromissos partidários com o PT e pronto a explodir as bases do governo Lula e a aura do próprio Lula. Será, aliás, ainda mais perigoso: um homem-bomba enjaulado. Resta apenas distinguir o quanto ele, de fato, sabe e o quanto ele só chuta.

    Um dado fundamental de todo o processo do mensalão é que acaba o julgamento no STF, mas a possibilidade de delação premiada continua valendo. Pela lei, um dos réus, ressentido, infeliz da vida -e Valério é o exemplo mais estridente-, pode muito bem abrir a boca antes, depois e durante a execução da pena. Ou seja, diretamente da prisão.

    Novembro chegou e nada de conclusão do julgamento. A dosimetria será retomada nesta semana e, até o fim do mês, Britto sai da presidência do STF, Joaquim Barbosa assume, Teori Zavascki chega e discute-se intensamente quem será o novo ministro na vaga de Britto.

    As entradas em cena de Teori e do futuro ministro ganham enorme relevância, possivelmente coincidindo com a fase dos embargos declaratórios (basicamente de forma) e infringentes (que pedem revisão de votos).

    O caso do deputado João Paulo Cunha é um bom exemplo. Há controvérsias internas quanto a uma de suas condenações -por lavagem de dinheiro- e os ministros se dividiram. Quase um empate. Vem aí votação de embargo infringente.

    Com a viagem do relator e futuro presidente Joaquim, para tratamento de saúde, e dois feriados em novembro, o mês fica bem curto. Depois, vem o recesso do Judiciário e para tudo. O que empurra o processo para 2013 e as prisões para o segundo semestre do ano, sabe-se lá quando.

    Depois, vem o julgamento do mensalão mineiro, que pega o PSDB. Apesar de ter sido antes do petista, só chegou ao STF dois anos após. Mas não perde por esperar. O principal ponto em comum entre os dois mensalões, aliás, é o explosivo Valério.

    04 de novembro de 2012
    Eliane Cantanhêde

    "MENTE E COSMO"


    Ele é um homem de impecáveis credenciais acadêmicas e ateias. Um dos mais respeitados filósofos dos EUA, orientando de John Rawls, professor da Universidade de Nova York, autor de inúmeros textos em que declara sua descrença, Thomas Nagel vem causando alvoroço com a publicação de "Mind and Cosmos", que saiu em setembro. O subtítulo esclarece as razões da celeuma: por que a concepção materialista neodarwinista da natureza é quase certamente falsa.

    É um livro gostoso de ler, embora denso, e que levanta pontos importantes. Para Nagel, num eco do problema mente-corpo, as explicações científicas para questões como consciência, intencionalidade e valor são necessariamente incompletas, o que cobra uma mudança de paradigma.

    Minha impressão, porém, é a de que o autor errou na mão. Não é de hoje que o filósofo trava uma batalha contra o reducionismo científico (o termo "reducionista" não é pejorativo em epistemologia; significa só a crença de que a parte explica o todo). O problema aqui é que alguns dos argumentos utilizados para baixar o estatuto do darwinismo são fracos.

    No exemplo mais gritante, ele diz rejeitar a noção de que forças cegas da natureza produziram vida porque isso vai contra o "senso comum". Ora, quase tudo em ciência, da relatividade à mecânica quântica, ofende o senso comum, mas nem por isso descartamos essas disciplinas.

    Outro ponto delicado é que Nagel não tem nada para pôr no lugar do darwinismo. Numa retomada de Aristóteles, o autor sugere que as explicações científicas incorporem uma teleologia, isto é, acatem a noção de propósito ou direção entre as leis da natureza. Com isso, a alegada improbabilidade da vida e o processo de evolução por meio de mutações aleatórias deixariam de ser um problema. Pode ser, mas receio que criaríamos outro ainda maior, à medida em que as portas da ciência estariam escancaradas para a metafísica.

    04 de novembro de 2012
    Hélio Schwartman, Folha de São Paulo

    "A MURALHA DE ÁVILA"


    Aquele caos em Nova York, aquela perplexidade desamparada, só pode render uma extraordinária sensação de humildade e impotência, lembrete ríspido de nossas limitações
    Não tenho certeza, mas acho que já me queixei aqui de não vivermos mais no tempo de Marco Polo ou, melhor ainda, no tempo do grande Fernão Mendes Pinto, lembrado por portugueses ingratos como “Fernão, Mentes”. Os mentirosos ilustres, que empolgavam a Europa com a narração dos perigos e portentos encontrados pelo mundo afora, hoje não poderiam soltar sua imaginação e legar aos contemporâneos tantas histórias empolgantes, narrativas sobre monstros marinhos capazes de engolir caravelas de uma só bocada, árvores falantes, rios de mel ou leite, ilhas de queijo, pássaros encantados que furtavam as almas dos homens que escutassem seu canto e tiranos orientais com haréns de milhares de mulheres.

    Perdeu a graça, todo mundo já viu tudo e as coisas se complicaram, a começar pela circunstância de que os maiores mentirosos agora não são os viajantes, mas os políticos, concorrência imbatível. Se eu contar que testemunhei um monstro antropófago circulando e devorando passantes aqui em Madri, não somente ninguém vai acreditar, como poderei ser processado pelas autoridades turísticas espanholas, por espalhar lorotas cuja consequência seria afastar visitantes de outros países.

    No quarto do hotel em que fiquei antes de ir a Salamanca, havia um retrato de Torquemada, o temível Grande Inquisidor. Em matéria de fantasmas, Madri não tem tanta tradição quanto, por exemplo, Londres, mas contar uma boa historinha sobre aparições de Torquemada bem que podia quebrar o galho. Postei-me diante do retrato, pensando em como faria para puxar conversa, mas acabei decidindo não facilitar. Por algum desses azares do destino, quem sabe se ele não apareceria mesmo, decidido a me transformar em churrasco, depois de cortar minha língua, para que eu não blasfemasse, na hora em que acendessem a fogueira?

    Sem monstros e sem fantasmas, nada do que posso contar sobre Madri e a Espanha em geral será novidade, mesmo para quem nunca esteve aqui. E então, como todo repórter que precisa mandar seu relato para a redação, resta-me sair pelas veneráveis ruas e praças do centro de Madri e lá colher observações agudas e judiciosas sobre a Espanha de nossos dias. Tomado de novo brio, preparo-me para sair, resolvido a não voltar antes de ter notado alguma coisa que venha a interessar o leitor. Mas que ouço? Que barulhinho suave é esse, que entra pela janela e noto somente agora?

    Si, es la lluvia, como me esclarece, ao ver minha cara desapontada, um funcionário do hotel. É a chuva e, assim, ironicamente, se algum velho conhecedor de Madri me lesse, pensaria que agora, sim, se trata de uma grossa mentira. Em Madri, como sabe quem a conhece bem, quase nunca chove, mas está prevista chuva para os próximos dias.

    Ligo a televisão e confirmo a previsão, chuva e mais chuva. Bem, neste caso pode-se talvez transformar o limão numa limonada. Talvez cole eu alegar que sou o mandachuva de Madri, porque tenho certeza de que essa água toda que despenca na cidade foi desencadeada pela minha presença. Por alguns instantes, fantasio ser contratado pela municipalidade para regular o regime pluvial de Madri, talvez até de toda a Espanha, mas o devaneio passa logo e volto à fria realidade.

    E chega finalmente o dia em que devo ir a Salamanca. São pouco mais de 200 quilômetros de Madri até lá, mas a chuva me acompanha. Lembro um personagem das histórias em quadrinhos só conhecido dos mais velhos Ferdinando, de Al Capp. Na cidade de Brejo Seco, onde morava Ferdinando, havia um sujeito tão azarado que tinha sempre uma nuvenzinha chuvosa, bem em cima de sua cabeça, acompanhando-o aonde quer que ele fosse.

    O mesmo destino me cabia na Espanha, pois também não chove tanto em Salamanca, mas minha chuva não falhou e assim me instalei resignadamente no hotel, para ver de longe a venerável cidade, que já era um centro universal de cultura uns quatro séculos antes de o Brasil ser achado pelos portugueses.

    E, no hotel, os noticiários de tevê só falavam na catástrofe causada por um furacão sem precedentes, nos Estados Unidos. Já estive, algumas vezes, nas regiões mais atingidas pela calamidade e até as conheço relativamente bem. E, mesmo que não conhecesse, não faria muita diferença.

    Ver toda a devastação causada pela tempestade e sua conjugação mortífera de ventos, chuvas, inundações e nevascas, no país mais poderoso do mundo, onde o homem está acostumado a achar que doma a Natureza e que dispõe da tecnologia necessária para vencer qualquer obstáculo, de repente nos apequena e nos traz de volta à nossa precária condição.

    Aquela sucessão de acontecimentos contra a qual não havia força humana capaz de fazer qualquer coisa além de rezar, aquele caos na cidade de Nova York, aquelas pessoas assustadas e bestificadas por fatos que aprenderam a ignorar, aquela perplexidade desamparada, tudo isso só pode render uma extraordinária sensação de humildade e impotência, um lembrete ríspido de nossas limitações.

    A caminho de Salamanca, tínhamos parado em Ávila, cidade conhecida dos católicos através de Santa Teresa. Uma de suas paisagens mais conhecidas é sua sólida muralha antiga, erguida há séculos, para conter invasores inimigos. Seus construtores acreditavam que ela, como as pedras de que é feita, duraria para sempre.

    Durou e dura, mas há muito é inútil para qualquer defesa, permanece apenas como monumento. E não um monumento para celebrar a obra humana, mas, se pensarmos bem, para mostrar sua fragilidade. Como os construtores de muralhas invencíveis, erguemos cidades invencíveis, das quais Nova York é símbolo. Mas, num instante, vemos como tudo isso não passa de ilusão voluntarista. Foi bom ver a muralha de Ávila, é sempre uma lição.

    04 de novembro de 2012
    João Ubaldo Ribeiro, O Globo

    O BANCO CENTRAL E O EXTRAORDINÁRIO MUNDO DAS FRAUDES

    Autoridade monetária aperta fiscalização para tentar se antecipar à criatividade de banqueiros fraudadores. Mas a batalha ainda é inglória: em dois anos, mais de R$ 8 bilhões foram desviados em operações ilegais

    Alexandre Tombini, presidente do Banco Central
    Alexandre Tombini, presidente do Banco Central (Eduardo knapp/Folhapress)

    Sob o comando de Alexandre Tombini, o Banco Central do Brasil tem sido alvo de críticas e afagos. Ao mesmo tempo em que desagrada o mercado por aceitar as pressões do governo federal, arranca elogios pelo pulso firme com que tem conduzido a fiscalização de instituições financeiras.

    Desde o escândalo do PanAmericano, revelada em novembro de 2010, a autoridade monetária reforçou procedimentos internos e colocou em prática novas políticas para tentar coibir a atuação fraudulenta de banqueiros. Contudo, um ano e meio depois, um novo rombo de tamanho semelhante ao do banco fundado pelo empresário e apresentador Silvio Santos veio à luz: o do Cruzeiro do Sul.

    A sensação de déjà-vu evidencia que, apesar da melhoria regulatória, há ainda um longo caminho a ser percorrido para impedir que fraudes aconteçam e prejudiquem clientes.

    Muitas das mudanças adotadas pelo BC em sua área de risco de crédito remontam a 2008 – ano em que começou a mais recente crise financeira internacional. Não é à toa que o foco do aperto ocorre justamente nesse segmento, pois é ele que mais atrai a ação de fraudadores. Afinal, é das operações de financiamento que os bancos, sobretudo os pequenos e médios, tiram a maior parte de seus ganhos.

    “Crédito não tem preço unitário. Não é igual a um título, ou seja, não tem preço de mercado. E isso abre espaço para muita criatividade por parte dos fraudadores”, explica o ex-diretor do BC e economista-chefe da Confederação Nacional do Comércio (CNC), Carlos Tadeu de Freitas Lopes.

    No PanAmericano, as tais ações “criativas” consistiam, entre outras coisas, em contabilizar carteiras de crédito que já haviam sido vendidas a outras instituições como parte de seu patrimônio. Vender e adquirir carteiras são operações corriqueiras e os grandes bancos, os maiores compradores.

    Neste mercado, o PanAmericano inovou ao não “dar baixa” em ativos que havia repassado a outrem ou até mesmo contabilizá-los, em alguns casos, de forma duplicada.

    Avanços – Para evitar incidentes semelhantes, o BC passou a monitorar as carteiras de crédito das instituições financeiras por meio da Central de Cessão de Crédito, a C3, instalada em janeiro de 2012. Trata-se de um sistema eletrônico operado pela Câmara Interbancária de Pagamentos (CIP) em que os bancos devem registrar todas as vendas e aquisições de carteiras, tão logo elas ocorram.

    Desta forma, a CIP consegue detectar, por exemplo, se um mesmo ativo é repassado a mais de um banco, como faziam os fraudadores do banco fundado por Sílvio Santos. “Houve uma pressão da própria Federação dos Bancos, a Febraban, para que a C3 fosse criada. Eles argumentaram com o BC que era inimaginável voltar a acontecer no Brasil uma fraude como a do PanAmericano”, afirma o diretor de uma instituição financeira que preferiu não ter seu nome revelado.

    Ainda que a venda irregular de carteiras de crédito, de fato, não tenha voltado a acontecer, o sistema financeiro sofreu outro golpe de fraudadores, revelado em junho deste ano. Dirigentes do banco Cruzeiro do Sul encontraram nos empréstimos de baixo valor uma forma intrigante de drenar ilegalmente recursos da instituição.

    Cientes de que o BC não acompanhava de forma detalhada e com maior frequência os empréstimos inferiores a 5 mil reais, os diretores da instituição financeira da família Índio da Costa criaram um esquema para faturar, ao longo de seis anos, em cima desta falha.

    Segundo o inquérito da Polícia Federal, eles chegaram a fazer empréstimos não autorizados de baixo valor em nome de mais de 300 mil clientes bancários – inclusive pessoas que nem tinham conta na instituição. Essa infração, e outras tantas, levaram o rombo do Cruzeiro do Sul ao patamar de 4 bilhões de reais, valor semelhante ao que foi apurado no PanAmericano em 2010.

    Cerca de um mês antes de o BC decretar intervenção no Cruzeiro do Sul, a autoridade monetária mudou as regras e passou a exigir mais detalhes sobre empréstimos de baixo valor. A saída foi reduzir o limite mínimo para registro no BC para mil reais.

    Aperto intensificado – No final de outubro, o BC veio a público afirmar, mas sem dar muitos detalhes, que ampliará a área de controle de ações ilícitas e fiscalizará questões que vão além dos balanços das instituições. Segundo a autoridade monetária, a análise vai abranger o comportamento dos bancos e compará-los entre si.

    “Vamos incrementar a área de supervisão de conduta, aperfeiçoar a capacidade de avaliar as instituições financeiras, mesmo nas situações em que não há problemas econômicos”, informou o órgão ao site de VEJA. Ainda de acordo com o BC, novas ferramentas estão em desenvolvimento para aprofundar as avaliações de banco de dados e detecção de fraudes. O banco, contudo, não quis detalhar quais ferramentas são essas.

    As fraudes bancárias tão presentes na história do Brasil – sobretudo antes da estabilidade econômica – são tropeços que fizeram, de certo modo, bem à regulação. A partir delas o Banco Central pôde aperfeiçoar seu trabalho e construir um conjunto de normas que transformaram o Sistema Financeiro Nacional (SFN) em um dos mais sólidos do mundo. Bancos como Bradesco, Itaú e Banco do Brasil são hoje instituições das mais confiáveis no que se refere ao cumprimento do índice de Basileia – o principal indicador de risco financeiro que existe.

    “No que se refere à fiscalização, nenhum banco central que eu conheça é tão minucioso como o brasileiro”, afirmou um alto executivo de um banco estrangeiro com presença no Brasil, que não quis ter seu nome citado.

    Elogios à atuação do BC vêm também de ninguém menos que o Fundo Monetário Internacional (FMI). Em relatório divulgado em julho, a entidade avaliou que, graças ao trabalho da autoridade, os bancos brasileiros são sólidos e têm nível elevado de capital e liquidez, além de boa lucratividade.

    Eles também passaram com notas altas em todos os testes de stress, isto é, simulações feitas em supercomputadores que buscam antecipar como os bancos reagiriam em situações de turbulência econômica – mesmo no cenário possível de uma grande recessão global. Em uma avaliação feita pela revista americana Global Finance, que dá ao desempenho dos BCs mundiais notas que variam de A a F, a autoridade monetária brasileira figura com nota B, acima do Banco Central Europeu (BCE) e do Banco da Inglaterra (BoE).

    Aperfeiçoamento – Assim, a despeito das críticas de que tenha deixado para trás o foco no controle inflacionário, não se pode afirmar que o Banco Central não esteja cumprindo seu papel de fiscalizador. Contudo, aperfeiçoamentos são sempre bem-vindos – ainda mais quando do outro lado do jogo estão agentes sempre prontos a “inovar”.

    O site de VEJA conversou com economistas, banqueiros e outros participantes do mercado para colher opiniões sobre a atuação do BC. Todos concordam com a competência a autoridade, mas colocaram em evidência alguns pontos que podem ser aprimorados.

    O BC criou sua estrutura de controle com base em probabilidades. Isso significa que as instituições que oferecem maior risco são as grandes, ou seja, aquelas que detêm maior poder de ferir a credibilidade do sistema financeiro nacional ou causar problemas que podem levá-lo a entrar em colapso (risco sistêmico).

    É por isso que as maiores instituições possuem equipes exclusivas de técnicos do banco para acompanhar suas operações. Já as menores, de tamanho semelhante ao PanAmericano e ao Cruzeiro do Sul, são fiscalizadas por meio de sistemas eletrônicos e equipes que se revezam em grupos.

    Em bancos pequenos e médios, por exemplo, uma fiscalização completa do BC – na qual são atribuídas notas de classificação para as instituições – é feita apenas uma vez a cada dois anos e não existe um técnico exclusivo para acompanhá-los individualmente. Nesse caso, um grupo liderado por um supervisor acompanha mais de uma instituição.

    O executivo de um banco especializado em crédito para veículos reconheceu ao site de VEJA que o aperto na regulação ocorreu de forma sistemática nos últimos dez anos. Contudo, admitiu que uma presença mais efetiva de técnicos do BC poderia evitar maiores problemas.

    “O ideal seria que as pessoas não cometessem fraudes. Mas como isso depende da índole de cada um, o BC tem a possibilidade de aumentar sua presença”, diz o diretor. Segundo ele, se houvesse um ou dois técnicos direcionados exclusivamente para uma instituição, rombos poderiam ser mitigados – ou até mesmo evitados.

    “Com uma pessoa acompanhando de perto, diariamente, cria-se um histórico. E, com esse histórico, é possível detectar irregularidades de maneira mais rápida. Pode ser que a pessoa não impeça a ação do fraudador, mas a perceba muito antes”, afirmou.

    Segundo dados da ONG Contas Abertas, o número de funcionários ativos no BC caiu de 6 205 em 1995 para 4 604 em 2011. Já os ativos que compõem o SFN, passaram de 598,3 bilhões de reais para 5,13 trilhões de reais (dado relativo a junho de 2012) no mesmo período. Ainda de acordo com o BC, 1 055 técnicos trabalham atualmente para supervisionar 1 952 instituições financeiras, entre bancos múltiplos, cooperativas de crédito, bancos de investimento e outros atores do SFN. Os bancos múltiplos e comerciais – principal alvo de fiscalização – somam 137.

    “Eles ficaram dez anos sem contratar pessoas. Mas não dá para dizer que é erro do BC. Foi, sim, imposição do governo”, afirma o economista Alberto Borges Matias, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FEA-RP/USP).

    Brecha – Outro ponto obscuro, na avaliação de especialistas, é a fiscalização dos Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDCs), que são compostos por carteiras de crédito de bancos e empresas. Nas rodas de economistas, os FIDCs são apelidados de ‘subprime brasileiro’ – uma alusão aos derivativos “podres” que originaram a crise americana em 2008.

    Como se trata de um fundo, a fiscalização não está no escopo do Banco Central – e sim da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Entretanto, como a expertise do órgão regulador do mercado de capitais não é fiscalizar operações de crédito, sua composição tampouco é controlada de maneira eficaz pela CVM. “A discussão sobre o acompanhamento do risco de crédito dos FIDCs ainda está no começo, mas precisa ser levada adiante. A CVM não precisa formar gente para isso. Ela pode decidir credenciar auditorias externas para avaliar o risco desses fundos”, afirma Matias, da FEA-USP.


    Para Carlos Tadeu, ex-BC, a fiscalização feita por meio de critérios mais subjetivos, como o acompanhamento de bônus de executivos ou do padrão de vida que levam, é outra forma de a autoridade não ser surpreendida por rombos bilionários que terão de ser saldados com dinheiro do Fundo Garantidor de Créditos (FGC) e dos correntistas.

    O economista acredita que comparar os bônus de diretores de bancos de um mesmo porte pode ser um caminho para encontrar situações suspeitas. “Sempre vai existir o desonesto, o fraudador. Por isso, o papel do BC será, cada vez mais, tentar antecipar o comportamento dos bancos”, afirma Lopes. Para chegar a esse ato extremo, contudo, seria talvez preciso que a autoridade monetária mudasse sua concepção sobre o sistema financeiro – e partisse do pressuposto de que todos cometem delitos. Isso, até o momento, não se mostrou necessário.


    Em três anos, país vê seqüência de bancos com problemas

    Desde 2010, bancos pequenos e médios sofreram intervenções do BC e foram liquidados, como, por exemplo, o Cruzeiro do Sul, o Prosper e o Morada. Outros foram comprados por instituições financeiras. Irregularidades administrativas ou fraudes no balanço aparecem em todos os casos.

     
    Fraudes com registro de carteiras de crédito marcaram o caso PanAmericano
    Com um rombo inicialmente estimado em 2,5 bilhões de reais, o banco fundado pelo empresário e apresentador Silvio Santos sofreu intervenção do Banco Central em novembro de 2010.
     
    Depois de mais de um ano de investigações, o rombo chegou a 4,3 bilhões de reais. No total, 22 pessoas envolvidas foram indiciadas por formação de quadrilha, lavagem de dinheiro, gestão fraudulenta e crimes financeiros. O PanAmericano inflava seus balanços por meio do registro de carteiras de créditos que haviam sido vendidas a outras instituições.
     
    Em janeiro de 2011, o banco de investimento BTG Pactual adquriu o PanAmericano. Com um pagamento de 450 milhões de reais por 37,64% do capital social da instituição (51% das ações ordinárias e 21,97% das preferenciais), o BTG hoje detém o controle da empresa junto com a Caixa Econômica Federal (CEF), que possui 36,6% das ações.
     
    04 de novembro de 2012
    Ana Clara Costa e Talita Fernandes - Veja Online

    "BRASIL SEM MISÉRIA" É ANTRO DE CORRUPÇÃO


    Marca do governo Dilma, Brasil Sem Miséria é alvo de fraudes pelo país. No Pará, prefeito é investigado por entregar casas a pessoas fora da faixa dos beneficiados

    
Moradores de Sapé, Marineide, o marido e os filhos se apertam na casa onde só dá para comer em pé, enquanto esperam por imóvel com obras atrasadas na cidade
Foto: O Globo / Hans Von Manteuffel
    Moradores de Sapé, Marineide, o marido e os filhos se apertam na casa onde só dá para comer em pé, enquanto esperam por imóvel com obras atrasadas na cidadeO Globo / Hans Von Manteuffel

    “Não queria luxo, não. Só sair do aluguel. Aluguel vence muito ligeiro”, diz Maria do Socorro Ribeiro, de 31 anos, inscrita no programa Minha Casa Minha Vida, no município de Redenção, no Pará, e não contemplada com uma das 500 casas entregues em 29 de março deste ano.
    Socorro vive com os filhos de 9 e 14 anos e o marido, servente de pedreiro que luta contra um glaucoma que já cegou um olho. Com problema crônico nos rins, ela deve mais de R$ 500 de aluguel e só não foi despejada porque a proprietária do imóvel tem “pena de botar para fora”.
    O Bolsa Família de R$ 134 por mês é o que sustenta os quatro. E a pouca comida chega à mesa graças às cinco galinhas que cria.
     
    — A casa ia mudar tudo. Não é que a gente ia ter mais dinheiro. Ia ter sossego — diz.

    Enquanto Socorro sonha com a casa própria, o primeiro empreendimento do Minha Casa Minha Vida em Redenção é alvo de investigação da Polícia Federal (PF) e do Ministério Público Federal (MPF). A suspeita é que as casas foram usadas como moeda eleitoral pelo prefeito Wagner Fontes (PTB), que tentou se reeleger, mas perdeu no primeiro turno para Vanderlei Coimbra Noleto (PRP).

    O Minha Casa Minha Vida, para famílias que recebem de 0 a 3 salários mínimos, é um dos programas voltados para o público-alvo do Brasil Sem Miséria, plano lançado em 2011 como carro-chefe do governo Dilma Rousseff e que reúne ações como o Bolsa Família, o Programa de Aquisição de Alimentos e o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil.

    Em todo o Brasil, até 15 de outubro, mais de 300 mil unidades foram entregues nessa faixa de renda. Mas o plano — criado para tirar 16,2 milhões de pessoas que ainda vivem abaixo da linha de pobreza extrema, isto é, com renda mensal inferior a R$ 70 — enfrenta uma série de fraudes investigadas por MP, PF, Controladoria Geral da União (CGU) e Tribunal de Contas da União (TCU), como mostra levantamento do GLOBO nos órgãos de controle.

    País afora, o Brasil Sem Miséria é alvo de fraudes comandadas por pessoas que deveriam zelar pela boa execução do programa — mas se transformaram em exploradores da miséria e não se constrangem em ludibriar os que estão no extremo da pobreza, para quem falta até comida.

    Na Paraíba, um esquema envolvendo o Programa do Leite desviou milhões, enquanto famílias recebiam leite adulterado. Em Mato Grosso do Sul, um gato recebeu o Bolsa Família. E, pelo país, são comuns casos em que pessoas sem o perfil dos programas foram neles incluídas, enquanto outras que realmente precisam estão de fora.

    Nos últimos seis meses, O GLOBO garimpou nas cinco regiões brasileiras exemplos dessas fraudes, que miram a verba pública do Brasil Sem Miséria mas atingem o brasileiro mais miserável. Elas são o tema da série de reportagens publicada a partir de hoje.

    Embora enfrente problemas, o Brasil Sem Miséria, que este ano teve orçamento de R$ 28,26 bilhões, tem sido a garantia de vida melhor para famílias como a de José Carlos Sousa, de 25 anos. Ele vive em Redenção, com a mulher e o filho de 5 anos, e viu a vida mudar desde que trocou um quartinho mofado por uma casa de dois quartos, sala, cozinha e banheiro no Jardim América II, onde estão as unidades do Minha Casa Minha Vida.

    Cunhada do prefeito ganha casa

    Na cidade paraense de Redenção, diz a PF, além de usar o Minha Casa como moeda eleitoral, a prefeitura entregou unidades para pessoas que não estavam na faixa de 0 a 3 salários mínimos. Por lá, até a cunhada do prefeito foi contemplada.

    — Levantamos, por meio de provas testemunhais e documentais, que o prefeito dividiu o número de casas financiadas pelo Minha Casa Minha Vida em cotas, distribuídas entre os secretários e os ocupantes de cargos da administração municipal. Eles encaminhavam e indicavam pessoas a serem beneficiadas, em troca de apoio político aos candidatos ligados ao prefeito — diz Luís Felipe da Silva, delegado da PF. — O inquérito já constatou que existem pessoas com vários imóveis e veículos próprios, com renda razoável, e ainda assim beneficiadas.

    Em fevereiro, a entrega das casas foi suspensa pela Justiça Federal, que decidiu a favor de representação do MPF. O juiz da 9ª Vara Federal de Redenção determinou que o prefeito não realizasse o sorteio, antes da entrega das chaves. Em março, no entanto, a Justiça Federal liberou a entrega dos imóveis.

    — As denúncias são falsas. É o grupo político adversário que fala que as casas foram entregues em troca de voto. Se aconteceu, eu não fiquei sabendo — diz o prefeito Wagner Fontes, que recebeu a equipe do GLOBO em seu gabinete e a coagiu e ameaçou quando soube o teor da reportagem.

    No encontro, Fontes chegou a dizer que “se (alguém) falar mal a fim de difamar, pode ser que amanhã ou depois esteja morto”, e contou a história de um blogueiro da região que “sumiu”. A ameaça foi registrada na PF de Redenção.

    Segundo o Ministério das Cidades, responsável pelo Minha Casa, a “escolha dos beneficiários é da responsabilidade da prefeitura, que estabelece os critérios aprovados pelo Conselho Municipal e está sujeito à fiscalização dos órgãos de controle”. O município é ainda o responsável pelo cadastramento, e “os dados dos candidatos são verificados pela Caixa Econômica Federal”. Em caso de “comprovada irregularidade, a Caixa requer a rescisão do contrato”.

    Em Redenção, a PF investiga se as pessoas encaminhadas por Elcir Lustosa, então chefe de gabinete, e contempladas com o imóvel podiam mesmo ser beneficiadas. À polícia, Jardel Teles, gestor do Bolsa Família no município, disse que alguns não se enquadravam no perfil exigido. Também à PF, servidores da prefeitura disseram que em 2011 o então secretário de Meio Ambiente, Lázaro Marinho, esteve no Departamento de Trânsito Municipal acompanhado de um funcionário da secretaria. Ele teria dito que Marinho “possuía cinco casas para serem distribuídas”.

    No inquérito, a PF investiga se Creuza de Jesus Lopes de Oliveira, cunhada de Wagner Fontes e nomeada por ele para a Comissão de Habitação (portaria 154/2011) — que tem como atribuição selecionar beneficiários do Minha Casa —, teria direito a um dos imóveis. A polícia já sabe que a servidora pública vive com Vanderlã Monteiro Fontes, irmão do prefeito, em uma casa cedida há oito anos por Wagner Fontes, no setor Santa Tereza, área central da cidade. E que, mesmo tendo recebido as chaves em 29 de março, até julho não havia se mudado.

    Segundo o ministério, os donos dos imóveis têm 30 dias para ocupar as casas. “A não ocupação no prazo implica rescisão de pleno direito do contrato de venda e compra. Quando comprovado que o beneficiário não ocupou por motivo alheio à vontade, o prazo pode ser estendido.”

    Procurada, Creuza não explicou por que não havia se mudado — “não é da sua conta” — e afirmou que “nunca” fez parte da Comissão de Habitação. O prefeito confirmou que a nomeou para a comissão. Disse que a “demitiu” e que nova comissão foi criada. O advogado da prefeitura e o assessor especial do gabinete ficaram de enviar esse documento, mas isso não ocorreu até o fechamento da edição.

    — Ela vive com meu irmão, com quem tem um filho, e eu dei a eles uma casa — diz Fontes. — Entregamos 500 casas e eu soube de duas ou três situações que me contrariaram. Creuza ganhou e fiquei contrariado. Eu não sabia que fez o cadastro.

    Segundo o ministério, servidores públicos podem ser beneficiados desde que estejam na faixa de renda determinada. A PF investiga se Creuza tem mesmo renda entre 0 e 3 salários.

    Mesmo investigado, Fontes, de olho na reeleição, determinou no segundo semestre o cadastramento de mais três mil pessoas no Minha Casa e prometeu mil casas. Não contou que o governo federal ainda analisa dois novos projetos, que somam 893 unidades. Por isso, seguindo determinação do MP Eleitoral, a PF instaurou novo inquérito em 28 de setembro. E apura suposto crime de corrupção eleitoral.

    — A investigação apura novas denúncias de uso do programa como instrumento para obter votos — conta o delegado Luís Felipe da Silva.

    04 de novembro de 2012
    Alessandra Duarte e Carolina Benevides - O Globo
     

    INVEJA DA SURDINHA

    Já fui fascinado pelo cinema. Ainda o sou, de certa forma. Mas permaneci em um cinema já passado: Chaplin, Bergman, Visconti, Louis Malle, Fellini, Kurosawa, Peckinpah, cineastas personalíssimos, cujas obras eram sempre esperadas com sofreguidão.

    Hoje, está difícil encontrar quem os substitua. Depois destes, vi obras interessantes - e mesmo genais -, dessas que jamais encherão várias salas ao mesmo tempo. Arte não é para massa. Quando se faz arte para multidões, não é mais arte.

    Cinema foi algo importante para minha geração. Em Porto Alegre havia um intenso movimento cinematográfico, impulsionado pelo Cineclube de Porto Alegre, tocado pelo P.F. Gastal. À meia-noite das sextas-feiras sempre havia a pré-estréia de algum filme de um diretor de renome, ainda que fossem chatos como Goddard ou Antonioni.


    No sábado, debatíamos os filmes na Rua da Praia ou Praça da Alfândega e no domingo, algum crítico iluminado, dava seu veredito nas páginas do Correio do Povo. Era uma época em que havia diretores, algo que hoje quase não mais se vê. Cada filme era esperado com certa ansiedade e cinema fazia parte da vida intelectual da cidade.

    O movimento cinematográfico era intenso em Porto Alegre. Podia não se fazer cinema no Rio Grande do Sul, mas havia uma crítica cinematográfica atuante, que não se furtava a opinar como os cineastas de Paris, Roma ou Califórnia deviam conduzir seus filmes.

    Cinéfilo contumaz, orientei minha correspondência em Paris um pouco para o cinema. Fiz a cobertura de três festivais de Cannes, dois de Berlim e um de Cartago, na Tunísia. Fora Apocalipse Now, acho que jamais comentei esses filmes que lotam salas. Sempre buscava o cinema menos conhecido, de pequeno público, de países como a Dinamarca, Finlândia, Iugoslávia, Grécia, Bulgária, Tunísia, Romênia. Nesses países sempre encontramos gratas surpresas, que raramente chegam ao Brasil.

    Escrevi muito tempo sobre cinema e estudei um ano de cinema na Stockholms Universitet. Em sua cinemateca, vi filmes desde os primórdios do cinema, que jamais foram vistos por estas bandas. Durante meus quatro anos de Paris, com minha credencial de jornalista, não pagava entrada em sala alguma. Foi uma festa. Um de meus critérios básicos: não ver filmes franceses. Com isto não quero dizer que os filmes franceses sejam ruins. Apenas que não gosto do jeito deles filmarem. São muito literários. O cômico francês Louis de Funès estabelecia uma diferença entre o cinema francês e o americano. Diante de uma porta, no cinema americano o personagem abre a porta e entra. No cinema francês, o personagem não abre a porta sem antes falar: "Voilà, la porte!" E só depois entra.

    Hoje, meu interesse pela dita sétima arte diminuiu um pouco. Acho que começou com a literatura. Há mais de vinte anos não leio ficção. Histórias inventadas me cansam. O real é sempre mais fascinante. Verdade que ainda restam ficções soberbas no cinema capazes de me fascinar. Falo de filmes como A Festa de Babete, de Gabriel Axe. Certamente, o mais belo e sensível filme que já vi. Mexeu muito comigo também The Map of Human Heart, de Vicent Ward, que creio não ter passado no Brasil. No fundo, a busca de uma filha pelo pai, um esquimó que, por circunstâncias da vida, tornou-se fotógrafo em um bombardeiro inglês durante a Segunda Guerra. Comovente. Ultimamente, os melhores que vi foram Adeus Lênin, do alemão Wolfgang Becker, e Slogans, do romeno Gjergj Xhuvani, uma sinistra comédia situada nos dias da ditadura de Nicolae Ceaucescu.

    Com o tempo e os novos hábitos, cansei até mesmo de ir a salas de cinema. Surgiu ultimamente um público inculto, que leva para a sala de cinema os vícios do cinema caseiro. Acostumados a ver cinema em casa, conversando uns com outros, levam para as salas públicas esta prática infame. Sem falar no ruído dos saquinhos de pipoca. Pior ainda, os filmes hoje tendem a ser dublados.

    Nunca suportei filme dublado. Ver um filme sueco ou italiano em português – ou mesmo em francês - destrói qualquer filme. Um Marcelo Mastroianni ou Liv Ullmann falando em carioquês chiado me faz doer o estômago. Ano passado, para meu conforto, comprei um televisor de 56 polegadas, se de plasma ou LED, não me perguntem: não sei. Assim, pensei, posso curtir algum cinema em tela confortável sem precisar entrar em filas ou enfrentar um público mal-educado. Assinei também TV a cabo, para escapar da miséria nossa.

    Com alguma sorte, encontrei bons filmes, que jamais chegaram ao Brasil. E sempre posso reaver algum faroestão de meus dias de guri, ou algum James Bond, que como entretenimento serve. Mas, de uns dois anos para cá, uma praga invadiu os canais estrangeiros, o filme dublado. Não está fácil encontrar um filme legendado na televisão. Os exibidores oferecem às vezes uma opção com legenda. Mas com diálogos em português. Você é tratado como um surdo. Já que se recusa a ouvir, vai legenda. Mas ver um filme legendado e dublado ao mesmo tempo é uma tortura só suportável por analfabetos. Acabo utilizando um recurso que não deixa de mutilar a obra: desligo o som. Tenho me dedicado, ultimamente, ao cinema mudo.

    Mas quem pediu filmes dublados? O público não há de ser. É óbvio que esta dublagem generalizada de filmes é fruto da guilda de dubladores. Que, para ganhar a vida, impõem suas mediocridades – não há dublagem brasileira que não seja ridícula – a um público que assinou televisão paga para ver televisão – ou melhor, cinema - inteligente.

    Leio na Folha de São Paulo de hoje que uma auxiliar de escritório surda, de Belo Horizonte, ganhou na Justiça o direito de receber indenização de um cinema que não exibia filmes legendados no dia em que ela queria comemorar o aniversário de dois anos de namoro.

    A sentença foi divulgada nesta semana. O cinema pode recorrer da decisão que o obrigou a pagar R$ 10 mil à jovem por danos morais e a doar outros R$ 10 mil a uma creche. Em agosto de 2010, K. R. C., 25, foi assistir ao filme Shrek para Sempre, no complexo de exibição do Cineart Multiplex, com o namorado I. V. R., 30, que também é surdo. Como o longa só era exibido dublado, o casal optou por ver outra animação, Meu Malvado Favorito, mas enfrentou o mesmo problema.

    Os dois, então, registraram um boletim de ocorrência. K. disse à Folha, em entrevista por e-mail, que tem direito de assistir a filme igual a todo mundo. "Tem mais filme dublado do que legendado. Fico olhando ouvintes entrando animados no cinema e eu nervosa, lá fora, com vontade de ver", afirmou.

    Na decisão, o juiz Fabrício da Cunha Araújo afirmou que o exibidor tem o dever de passar pelo menos um filme de cada gênero compreensível para surdos por dia. A televisão até que oferece legendas. Mas me empurra junto a dublagem. Como não posso reclamar que não entendo o filme, estou no mato sem cachorro. E meu belo televisor acabou perdendo sua utilidade.

    Qualquer dia, dublam até ópera. Melhor curtir algumas, antes que tal hora chegue. Enquanto isso, meus respeitos à surdinha. Pessoas assim, com uma rígida consciência de seus direitos, são moedas cada vez mais raras neste país onde se engole tudo que é servido.


    04 de novembro de 2012
    janer cristaldo