Há uns bons dez anos, escrevi que
quem viu muito bem o vazio de fé que assolaria o Ocidente foi o cineasta
italiano Nanni Moretti, em Palombella Rossa. O filme é de 89,
significativamente o ano em que caiu o Muro de Berlim. A história tem como
personagem principal um deputado comunista que, do dia para a noite, perdeu a
memória.
A cena final é emblemática: em uma auto-estrada, centenas de
jovens correm para saudar o sol. Está inaugurada a nova religião, o culto da
natureza. Não por acaso, o interlocutor privilegiado do Dalai-lama - palavra que
modestamente significa Oceano de Sabedoria - no Brasil é Fernando Gabeira,
ex-guerrilheiro marxista que trocou sua fé na História pela militância
ecológica. Gyatso intuiu rapidamente esta virada ocidental e sempre insiste, do
alto de seus parangolés, na defesa do meio ambiente.
Leio no El
País de hoje: "O câmbio climático mobilizou cientistas que o estudam,
engenheiros que buscam soluções tecnológicas e economistas que as medem. E
começa também a tomar uma dimensão espiritual que o está convertendo, na opinião
de alguns, na nova religião do século XXI. Uma nova espiritualidade ecológica. A
linguagem messiânica e os instrumentos quase religiosos que se utilizam rompem
os esquemas discursivos e calam em uma opinião pública mais cética ante causas
do passado".
Que o digam os ornitólogos que me bicam. Seu zelo é
religioso. Ante a hipótese de extinção do macuquinho do banhado, brandem o
apocalipse. Sem pretender analisar o tal de aquecimento global - já que não
tenho instrumentos para tanto - desconfio do dito. Pois é pregado com a mesma
ira sagrada de João de Patmos. Apostar no apocalipse é aposta confortável. Pois
apocalipse não é pra já. É sempre mais adiante. Assim, enquanto não ocorre, seus
profetas não são desmentidos.
Em fins do anos passado - conta o jornal -
Al Gore desembarcou em Sevilha para falar de seu movimento contra o câmbio
climático. Em seu afã de chegar aos interlocutores, Gore, que é profundamente
religioso, usa frases como: "A Noé foi dito que salvasse as espécies vivas e
isto hoje continua sendo nossa obrigação. Antes de pregar aos embaixadores ou
discípulos que fazem parte de seu movimento, 1.700 em todo o planeta, lhes pede
uma "conexão espiritual".
Para o biólogo Miguel Delibes de Castro, "a
estrutura que Gore organizou é quase religiosa, com discípulos que transmitem a
boa nova, como Jesus Cristo". Para Miguel Ferrer, biólogo, "as correntes
ecologistas integristas têm muitas características comuns com escolas baseadas
em crenças religiosas. Cada vez se ouve mais o discurso de que o homem é o ser
malvado que provoca destruição e deve ser expulso dos últimos
paraísos".
Um dos 200 embaixadores de Al Gore na Espanha é Juan Negrillo.
Interrogado sobre a conexão entre seu discurso e o sentir religioso, disse:
"Todas as religiões têm suas raízes na fé, e nesse sentido se pode confundir a
mensagem ecologista e a defesa do clima como uma mensagem religiosa, porque como
não podemos tocar, cheirar, pesar ou ver o CO2, é quase uma questão de fé na
comunidade científica". Quem não ouviu falar da hipótese Gaia, de James Lovelock
**, que considerava a Terra como um ser vivo? Aqui no Brasil, tivemos um
maluco que ganhou fama como ecologista, o José Lutzenberger, que acreditava
profundamente nessa teoria mística.
"Mas o que vamos fazer primeiro:
desvendar esta Maravilha, ou vamos continuar como um câncer no organismo de
Gaia, devastando, fazendo extinções em massa, toxificando até que não haja
volta?" - escreveu Lutzenberger - . E continuou:
"Quando daquela ameaça
mortal que foi a crise da poluição do oxigênio, que quase extinguiu as formas de
vida então existentes, Gaia, em vez de sucumbir, soube tirar proveito.
Transformou um inimigo feroz em poderoso aliado, fator de mais vida, de vida
mais complexa, mais perfeita, mais diversificada, mais harmônica - uma
estonteante transcendência!"
Claro que não podia faltar a ameaça do
apocalipse, com uma esperança de redenção para o ser humano: "Entretanto, a
continuar a cacofonia atual, o desastre será total. Para nós! Talvez nem tanto
para Gaia. Gaia tem muitos recursos, tem muito tempo. Com novas formas de vida
encontrará saída. Sobram-lhe ainda uns cinco bilhões de anos até que o Sol, em
sua penúltima fase evolutiva, ao tornar-se "gigante vermelho", venha expandir-se
até aqui, antes de apagar-se lentamente. Gaia será recirculada nos gases
incandescentes do Sol, assim como cada um de nós seremos recirculados no
solo".
A maluquice dos ecologistas chegou a tal ponto que houve quem
visse na Internet - talvez o próprio Lutzenberger, agora não lembro - a
consecução da existência de Gaia. A Web seria Gaia estabelecendo sua rede de
neurônios.
Volto à reportagem do El País. Para o escritor José
Antonio Marina, "a segunda metade do século XX contemplou o auge de múltiplos
movimentos religiosos, espirituais e espiritistas, caracterizados por uma
mistura de elementos diversos. Um deles prolongou o fervor ecológico dos últimos
decênios. Nasceu possivelmente do movimento hippy, de sua volta à natureza,
uniu-se com um certo panteísmo, que se voltava para a Terra como um ser vivo,
com o qual se estabelecia uma relação mística. Admirou-se a relação com a
natureza das antigas culturas, a Pacha Mama, o respeito das tribos americanas.
Teorias como a Deep Ecology exaltaram o valor do mundo vegetal, a ponto de
comparar o corte de um bosque com o assassinato de judeus em um campo de
concentração".
Decididamente, o ser humano não tem cura. Deus morto, Deus
posto. Se um deus está em declínio, criam-se outros. Explorando sempre aqueles
elementos constitutivos de toda religião, o medo da morte e a esperança de
salvação. Para amedrontar os novos crentes, brande-se o apocalipse.
Nada
de novo sob o sol.
* Quinta-feira, fevereiro 14, 2008
** Em
recente entrevista ao site Msnbc.com - 23 de abril - Lovelock diz ter sido
alarmista: "cometi um erro". Os devotos de Al Gore e Lutzenberg podem retirar os
santos do andor.
05 de maio de 2012
janer cristaldo