Em minha adolescência, quando vivia em Dom Pedrito – início dos anos 60 – fui disputado pelas duas filosofias então vigentes na cidade: católicos e comunistas.
Quanto aos primeiros, fui jogado na doutrina por uma catequista uruguaia, que nos pedia para rezar ao bom Deus para parar a chuva, para que seu marido pudesse levar a safra de lã à cidade. Fiz carreira na Igreja.
Aos 15 anos, era presidente da Congregação Mariana. Foi mais ou menos nessa época que me libertei dos grilhões de Roma. Como cachorro que sacode a água para secar-se, deixei de crer em Deus e senti uma extraordinária sensação de liberdade. Era como se minha vida começasse de novo a partir dali.
In illo tempore, como dizem os evangelistas, nas pequenas cidades do interior havia três instituições onipresentes: uma guarnição do Exército, a Igreja... e o Partido Comunista. Os camaradas, mal viram a ovelha desgarrada do rebanho, tentaram conduzi-la a um novo redil.
Um dos líderes do Partido era o Gerson Prabaldi, operário e militante, um dos raros comunistas que até hoje merece meu respeito. Funileiro, patrão de si próprio, lutava por uma sociedade mais justa, nada a ver com os filhos da classe média que fizeram carreira e fortuna montados nos ideais socialistas. Final de tarde, fechava a funilaria, pegava uma bicicleta e saía a fazer seu apostolado, o porta-cargas repleto de ideologia. Líamos as revistas China e Unión Soviética, em espanhol, mais aquele catecismo em edições mensais do PC, a revista Problemas, e muita imprensa de esquerda.
O funileiro acreditava na utopia e dedicava suas horas de lazer à construção do socialismo. Homem de uma era pré-televisiva, na qual mesmo os jornais que eventualmente chegavam a Dom Pedrito desconheciam o que se passava no mundo soviético, Gérson acreditava piamente nos panfletos vindos de Pequim ou Moscou.
Fosse um dia ao paraíso que louvava, ou tivesse melhores fontes de informação, tenho certeza de que faria marcha à ré. Era homem desinformado, mas honesto. Em sua oficina, rodeado de pneus e aros de bicicletas, recebi minhas primeiras aulas de marxismo, baseadas em um livrinho de Georges Politzer, Curso de Filosofia - Princípios Fundamentais.
Primeiras e primárias: sua argumentação simplória não me convencia. No entanto, este divulgador menor foi bastante significativo. Em sua tentativa de trocar em miúdos o marxismo para um público operário, Politzer despe a doutrina de sua retórica e a exibe em sua indigência.
Eu já lia filosofia e a doutrina me pareceu por demais tosca. Mas não foi propriamente a leitura de Politzer que me afastou dos camaradas. E sim o muro de Berlim. Naqueles dias, já nos chegavam algumas notícias das pessoas que eram fuziladas ao tentar escapar da Alemanha Oriental. Sabíamos que os cidadãos da União Soviética eram proibidos de sair de seus países. Porque não voltavam mais. Havia então algo de errado naqueles paraísos anunciados pelas revistas do Gérson.
Se saímos do paraíso, temos pressa em voltar. Se alguém sai e não volta mais, é porque não era paraíso. Não é preciso maior argúcia para entender isto. E quando pessoas arriscam a própria vida – e mesmo morrem – na tentativa de sair, é porque o paraíso está mais para inferno. Assim, já em minha adolescência, pus no lixo qualquer veleidade comunista.
Ferreira Gullar rides again. Eu também. Em entrevista para as páginas amarelas da Veja, José Ribamar Ferreira – seu nome de pia – discorre sobre sua conversão, depois de velho, ao capitalismo. Ao falar de Cuba, declara:
- Não posso defender um regime sob o qual eu não gostaria de viver. Não posso admirar um país do qual eu não possa sair na hora que quiser. Não dá para defender um regime em que não se possa publicar um livro sem pedir permissão ao governo. Apesar disso, há uma porção de intelectuais brasileiros que defendem Cuba, mas, obviamente, não querem viver lá de jeito nenhum. É difícil para as pessoas reconhecer que estavam erradas, que passaram a vida toda pregando uma coisa que nunca deu certo.
Falei há poucas semanas desta cortesã, que depois de velha decidiu trabalhar do outro lado do balcão. Filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro no dia 1º de abril de 1964, 28 anos após a denúncia das primeiras purgas de Stalin em 1936, quinze anos após a denúncia dos gulags por Viktor Kravchenko em Paris, em 1949, nove anos após a denúncia dos crimes de Stalin por Nikita Kruschev, em 1956, no XX Congresso do PCUS. Isto é, o Ribamar atroz aderiu ao partido quando a nenhum cidadão honesto era mais permissível ignorar os crimes do regime soviético.
Mas digamos que o Ribamar tenha vivido boa parte de sua vida afastado da imprensa burguesa. Pelo jeito, só este ano descobriu que os cubanos não podem sair de Cuba. Em fevereiro passado, escreveu na Folha de São Paulo:
- Nenhum defensor do regime cubano desejaria viver num país de onde não se pode sair sem permissão. É com enorme dificuldade que abordo este assunto: mais uma vez – a 19ª – o governo cubano nega permissão a que Yoani Sánchez saia do país.
Ó, santa credulidade! Ribamar então não sabia que os berlinenses orientais eram fuzilados se tentassem atravessar o Muro? Morou em Moscou e não sabia que os russos estavam proibidos de sair do próprio país? Não terá visto, nas últimas décadas, cidadãos do mundo socialista tentando escapar do inferno pelas fronteiras mais elásticas da Iugoslávia? Não terá ouvido falar, nos dias que antecederam a queda do Muro, de milhares de alemães fugindo para o Ocidente por uma porteira aberta na Hungria? Será que nunca ouviu falar nos cubanos que durante décadas morreram afogados no mar do Caribe, tentando chegar a Miami?
A conversão da prostituta decrépita não convence. Mas é significativa. Indica que até os mais ferrenhos stalinistas já se envergonham do próprio passado. Agora é tarde. Nos anos 60 já era tarde. Ribamar – poeta que escreveu um poema dizendo que uma moça “era quase tão bonita quanto a revolução cubana” - mentiu e caluniou durante toda sua vida. Foi cúmplice de gulags, massacres, prisão e execução de dissidentes. E agora, aos 80 e lá vai pedrada, quer redimir-se.
Quando congregado mariano, fiz a promessa dos cinco sábados. Se assistisse a missa durante cinco sábados seguidos em homenagem à Maria, teria a graça da redenção final. Isto é, um pouquinho antes de morrer, me arrependeria de meus pecados e iria direto ao paraíso. Por isso, tenho pecado tranqüilamente até hoje.
Mas a promessa de Maria não era extensiva a comunistas.
24 de setembro de 2012
janer cristaldo