Mas, claro, não era nada disso. Apesar de apreensivo com as condenações no
Supremo, que ameaçam seus planos de pôr em funcionamento o Instituto Político de
Corrupção Aplicada, ele continuava a botar fé em seus projetos e não contara a
ninguém aonde iria porque ele mesmo não sabia, tinha sido uma viagem cheia de
improvisos e imprevistos.
As condenações o preocupavam um pouco, sim, porque,
para os mais impressionáveis, podia sugerir que a corrupção, há tão pouco tempo
uma carreira onde o céu era o limite, agora oferecia um destino sombrio a seus
profissionais.
Mas, embora acreditasse que haveria condenações, elas não
passariam de declarações e papelório, pois que ninguém é maluco de abrir o
precedente e botar um graudete desses na cadeia, cadeia mesmo e não alguma
solução para o perlustrar de britânicos, como falava o finado filósofo Walter
Ubaldo, querendo dizer "para inglês ver".
- Em primeiro lugar - disse ele - vai haver recursos. Estive conversando com
Lulu Adevogado, é cada recurso retado, é embargo pra lá, agravo pra cá, uma
festa. Se soltarem eles mesmo, a primeira sentença definitiva sai em 2089, na
comemoração do bicentenário de República.
Em segundo lugar, cadeia mesmo não vai
haver, porque nesses casos não se usa, nunca se usou, é contra as tradições
nacionais. Vai haver uns serviços comunitários, umas proibiçõezinhas que não
atingem o dinheiro roubado, uma ou outra bobagem.
E ainda vão promover
desagravos para eles, manifestações de solidariedade e assim por diante. E,
finalmente, nada disso importa, diante da vocação histórica de nosso povo e da
força da nossa cultura.
Ah, nem queiram saber, o que ele viu era coisa para um narrador fruto da
cruza genética de Euclides da Cunha mais Gilberto Freire, o ladrão neurastênico
luso-tropical é antes de tudo um forte, resistirá a qualquer ataque. Todo mundo
sabe que as câmaras de vereadores são a preparação para voos mais altos.
É comum
e muito compreensível para um jovem ambicioso que o ladrão municipal almeje vir
a tornar-se ladrão estadual e - por que não sonhar? - ladrão federal.
Os
exemplos mais que abundam, praticamente todos os que se elegeram se deram bem na
vida e continuarão a dar-se.
- O pessoal parece que já nasce qualificado - explicou ele. - Eu conheci
várias famílias onde todo mundo está colocado desde a primeira vez em que um
deles se elegeu. O mais novinho de uma delas fez 18 agora, já é candidato e,
quando fala em ser vereador, não se aguenta, esfrega as mãos como um faminto
diante de uma mesa de comida e os olhos se acendem, chega a ser comovente, devia
ser filmado. Aquela fome, sabe como é, aquela sede que não se mata nunca, quanto
mais se bebe, mais se quer. Esse aí nem pretende fazer parte do êxodo rural como
muitos colegas dele, vai querer ser vereador até o fim da vida, até porque
pretende comprar e administrar mais umas duas fazendas, entre as muitas que a
família já comprou, desde que o velho bisavô dele foi eleito, ainda no tempo de
Getúlio.
- Mas não é possível que você não tenha visto nenhum candidato que merecesse
confiança, inclusive candidatos realmente idealistas.
- Encontrei, encontrei. Mas é muito relativo. Na verdade, a maioria desses
até pensa sinceramente que merece confiança. Mas ninguém passa na prova da
fruta. Provou a fruta, não quer mais ficar sem ela. Não se vê nenhuma exceção,
talvez algum anormal, que hoje deve estar internado a pedido da família. E
outros são casos claros de idealismo funcional, conheço isso bem, é um fenômeno
adaptativo, já vi centenas de casos.
- Não entendi nada.
- É o seguinte. O jovem político se dá melhor, na única turma que suporta sua
convivência, com o pessoal idealista. Aí entra o fenômeno adaptativo. A opinião
dele, opinião sincera mesmo, é essa, possibilita sua sobrevivência no meio a que
está adaptado. Aí se elege e o meio muda. No começo deve haver um traumazinho,
mas o fenômeno adaptativo vai fazendo seu papel e, depois de uns três mandatos e
uns dois cargos públicos, a sobrevivência dele no novo nicho ecológico está
garantida, ele já é um ladrão completo. E muitos deles continuam se apresentando
como idealistas, faz parte.
- E o povo, você não tem achado que o povo está mais esclarecido?
- Está, está. Me contaram que já dá para comprar e vender votos pela
internet, já bolaram vários métodos e o pagamento pode ser por boleto bancário
ou cartão. Oficialmente, sai em nome de alguma caridade. E, por outro lado, eu
estive num lugar em que um candidato disse que tinha espírito público e o
concorrente está tirando votos dele, porque a maior parte do povo pensa que isso
quer dizer que o candidato recebe uma entidade assombrada no meio da praça. Está
tudo a mesma coisa e deixe de botar no jornal que eu quero profissionalizar os
corruptos, antes que roubem minha ideia, se já não roubaram.
16 de setembro de 2012
João Ubaldo Ribeiro - O Estado de S.Paulo