c. O estudo do cinema nazista
No ensaio “Estilo e meio do filme” (1947), Erwin
Panofsky observou: “Queiramos ou não, os filmes é que moldam, mais do que
qualquer outra força isolada, as opiniões, o gosto, a linguagem, a vestimenta,
a conduta e até mesmo a aparência física de um público que abrange mais de 60%
da população da Terra. Se todos os poetas líricos, compositores, pintores e
escultores sérios fossem obrigados a cessar suas atividades, uma fração bem
pequena do público em geral tomaria conhecimento do fato e outra ainda menor
iria lamentá-lo seriamente. Se a mesma coisa acontecesse com o cinema, as
conseqüências sociais seriam catastróficas”.
Essa constatação de Panofsky sempre me pareceu
apenas parcialmente verdadeira. Se, de fato, o cinema modelava mais de 60% da
população do planeta, as conseqüências sociais catastróficas do que Theodor
Adorno e Max Horkheimer conceituaram como “indústria cultural” em Dialética
do Esclarecimento (1947) não eram mais uma hipótese virtual, a se cumprir
caso se operasse a interrupção de suas atividades, mas uma realidade produzida
há décadas, diariamente, por sua emulação ininterrupta. O controle do clima
psicológico de nações inteiras tornou-se possível graças ao monopólio das
mídias.
Refletido sobre o mundo atual, Anita Novinsky
observou: “Pode-se hoje transformar qualquer povo em qualquer coisa, pode-se
criar um abismo em poucos meses com os meios de comunicação de massa, a
técnica, a televisão.”[14] De fato, não podemos sequer
imaginar o poder devastador que se acumula no universo das comunicações
contemporâneas, e que permanece em posição de ameaça permanente à liberdade.
Basta observar como as mídias do neocapitalismo
dito democrático conseguem integrar até o último homem na sociedade de consumo,
com suas incitações às compras, seus programas digestivos, jogos, loterias,
lançamento de modas e manias, seu ininterrupto bombardeio de sucessos. As
mídias tornaram-se uma espécie de válvula condutora da vida, o imprescindível
universo portátil, o espaço exterior domesticado em gadgets. Essa
assustadora realidade não surgiu de repente, mas foi se formando ao longo de
todo o século passado. O momento mais devastador dessa realidade em perigosa
progressão foi, sem dúvida, a Segunda Guerra Mundial, durante a qual todos os
meios de comunicação conhecidos na época se voltaram para a propaganda.
Na Revolução Russa de 1917, o jornal, o rádio e o
cinema haviam sido largamente utilizados como instrumento de propaganda O uso
propagandístico do cinema atingiu a perfeição estética nos anos de 1920, nos
filmes mudos de Sergei Eisenstein, Alexander Dovjenko, Grigori Kozintzev, Lev
Koulechov, Vsevolod Pudovkin, Leonid Trauberg, Dziga Vertov, que empregavam,
para difundir a mensagem revolucionária, o exagero e a farsa, elementos do vaudeville
e do teatro de revistas, estilemas do surrealismo e do expressionismo, e até
mesmo as piadas obscenas
Em 1931, cumprindo uma ordem do Comissariado de
Transportes do Povo que decretava a necessidade de usar o cinema “para
mobilizar as massas trabalhadoras em torno das tarefas da construção socialista
e da renovação do transporte ferroviário”, Alexander Medvedkin montou uma
equipe cinematográfica dentro de um trem, percorrendo o país e realizando e
projetando filmes contra os “elementos malvados” e “nocivos à revolução”, numa
estética ainda livre à experimentação. A ditadura estética do realismo
socialista seria imposta apenas em 1934, com Chapaiev, dos irmãos
Vasiliev, encerrando a fase vanguardista do cinema soviético [15].
Na República de Weimar, o cinema alemão, nascido
como fruto de interesses propagandísticos durante a Primeira Guerra Mundial,
foi o palco de grandes experimentações estéticas até transformar-se, no fim dos
anos 20, num campo de batalha ideológico entre os partidários da democracia e
os simpatizantes dos movimentos comunista e nazista. Com a ascensão de Hitler
ao poder, todos os meios de comunicação de massa foram progressivamente
controlados e monopolizados pelo Estado.
Na Itália fascista, desde 1925-1926 o Estado
assegurou o monopólio da produção dos filmes documentários e de atualidades,
enquanto um decreto ordenava a projeção de cinejornais informativos visando
desenvolver uma constante e intensa ação de ensino civil, propaganda e cultura
[16]. Com a ascensão de Hitler ao poder, todos os meios de comunicação de massa
foram coordenados pelo Estado nazista, inspirando Mussolini a fundar a
Cinecittà em 1937.
Criada em 1922, a televisão alemã atingiu, em 1933,
180 linhas: desde então, foram realizadas emissões cotidianas e, em 1936,
durante os Jogos Olímpicos em Berlim, sua imagem foi, pela primeira vez, diretamente
projetada num telão para milhares de espectadores.
Em 1934, Goebbels ordenou a fabricação de aparelhos
de rádio acessíveis a todos os bolsos e já em 1935 ele estimava que, com o
receptor do engenheiro Otto Griesing e os alto-falantes colocados em escolas,
fábricas e lugares, cada discurso do Führer atingia mais entre 5 e 6
milhões de ouvintes: “Com o rádio nós aniquilamos o espírito da rebelião” [17].
Em 1938, o número de ouvintes passou a 9,5 milhões e, em 1939, com a
comercialização de um aparelho novo e menor, o rádio atingiu praticamente toda
a população da Alemanha.
Contudo, no mundo entre guerras, o meio que
representou a indústria cultural como um todo foi, sem divida, o cinema. Ao
contrário do jornal e do rádio, o caráter “artístico” do cinema encobriu seu
caráter de instrumento de modelagem e as polemicas em torno da indústria
cultural só ganharam relevância após a guerra, quando a massificação da TV
substituiu o cinema na modelagem de um contingente ainda maior da população do
planeta.
No século XX, a superpopulação, a unificação
tecnológica do planeta e os confrontos ideológicos em torno do “capitalismo”
reconduziram a humanidade a um estágio de barbárie semelhante ao das tribos
primitivas, através de revoluções, guerras mundiais e totalitarismos que
restauraram a necessidade, característica dos povos arcaicos, de uma modelagem
direta dos corpos através de novos instrumentos técnicos capazes de atingir e
arregimentar milhões de indivíduos.
Beneficiadas pelos meios técnicos de comunicação,
as tiranias do século XX adquirem uma especificidade toda sua, totalitárias na
medida em que, à diferença dos regimes de forca do passado, podem apresentar,
graças à propaganda, a evidência de uma popularidade. Os líderes
revolucionários e totalitários não teriam podido mobilizar populações
radicalizadas e fanatizadas pela fome, pelo ódio, pelo medo ou pela fé sem uma
propaganda audiovisual massiva e altamente organizada. O controle do clima
psicológico de nações inteiras tornou-se finalmente possível graças ao
monopólio dos meios de comunicação de massa.
Através de todos os meios de comunicação
conhecidos, estímulos psicológicos são produzidos enquanto se trabalha na
remodelação total dos valores humanos. A propaganda eficaz é ininterrupta e
onipresente. Nos regimes totalitários, dia e noite, o cidadão é informado e
esclarecido sobre os acontecimentos e seus significados. No café da manha, os
jornais apresentam-lhe fatos selecionados e comentados. Durante o dia, no
trabalho, conversas com colegas confirmam suas idéias. Nos momentos de lazer,
no cinema, no teatro, na leitura de revistas, sua visão de mundo consolida-se
através de formas variadas, sublimadas e atraentes. À noite, antes de dormir, a
última transmissão de notícias prepara-o para uma nova etapa de esclarecimento.
A esfera privada é totalmente preenchida pela propaganda, multiplicada por
centenas de vozes distintas, mas coordenadas por uma mesma e única fonte.
Antes do estabelecimento da indústria cultural,
quando o poder era tomado à forca, por um grupo que impunha sua vontade ao
resto da população, era possível que esta, mesmo conformada, não aceitasse,
intimamente, o governo “ilegítimo”. No seu dia-a-dia, a população sofria a
ditadura, silenciava ante a violência e até “tolerava” a opressão, porque,
interiormente, subsistia uma vaga esperança de libertação. Já a ditadura
totalitária moderna, com seus instrumentos técnicos de modelagem, penetra no
âmago de cada cidadão.
No seu dia-a-dia, a população participa da
tirania, da violência e da opressão, porque ressente, interiormente, sua
participação nessa dominação como sua única possibilidade de escapar-lhe, sua
esperança de libertação. Quando uma mente maniqueísta reflete sobre as
circunstâncias que frustram seu bem-estar, toma o acaso que lhe acarreta prejuízos
como o próprio Mal. Da mesma forma, a propaganda cria todo um coletivo
maniqueísta, que se vê perseguido pelo Mal, ao mesmo tempo em que prepara o
extermínio daqueles que aos seus olhos encarnam esse Mal.
A manipulação da paranóia fora originalmente uma
ocupação dos xamãs, que se alimentavam do terror metafísico que dominava os
selvagens. Seduzidos pelo “carisma” do xamã, que lhes apresentava soluções
mágicas para a cura da incurável angústia provocada pela contingência, os
selvagens unificavam-se num coletivo paranóico (a tribo) que não admitia
qualquer dissensão.
O processo arcaico de transferência revela como foi
possível reduzir, na Europa civilizado do século XX, o espaço mental de
coletividades inteiras, através das mídias, aos elementos mais primitivos do
pensamento. A paranóia coletiva projeta o Mal no mundo, e ao mesmo tempo em que
se vê por ele perseguido, prepara o extermínio daqueles que, a seu ver,
encarnam o Mal.
A passagem de certos homens pela Terra, capazes de
mobilizar a paranóia coletiva, canalizando sua energia destrutiva para seus
próprios fins delirantes, prova que, a par de sua significação religiosa, o Mal
possui uma existência política. O ditador totalitário é o xamã do século XX,
oferecendo à coletividade desintegrada pela técnica a panacéia do maniqueísmo,
que satisfaz a psicose da massa, necessitada de acreditar em planos diabólicos
tramados pelo Inimigo – por indivíduos e grupos que possam encarnar o Mal, para
serem enfrentados concretamente, através de uma política de perseguição e
extermínio.
Ao projetar toda carga destrutiva da paranóia
coletiva sobre os judeus, Hitler chegou ao poder não como um político comum,
mas como o profeta de uma nova religião monstruosa, que não apenas assimilou a
tradição milenar do antissemitismo ocidental, como a radicalizou até a mais
inconcebível utopia de destruição, que foi tornando verdadeira numa escala
apenas factível com o auxílio da indústria cultural e da tecnologia moderna.
Analisando a cinematografia nazista fora do
contexto da política biológica que a gerou, os historiadores consideraram que
apenas 22 ou 24 dos 1.094 longas-metragens de ficção produzidos no ‘Terceiro
Reich’ continham propaganda antissemita. Um número ínfimo de propaganda
antissemita num meio em que o regime tanto investia. Haveria alguma
discrepância entre a essência do nazismo e o cinema que ele produziu? Sendo o
antissemitismo a essência do regime, desdobrado numa política, propagada
totalitariamente, como explicar que o antissemitismo tenha ocupado um lugar tão
modesto no seu principal veículo de propaganda, sob a coordenação direta de
Goebbels?
Na verdade, em primeiro lugar, e antes de qualquer
análise de seu conteúdo, esse cinema deve ser considerado como inteiramente
antissemita. Não se pode omitir na análise da produção do cinema nazista
que uma das primeiras medidas do regime, logo após a tomada do poder, em 1933,
foi a supressão dos judeus da indústria cinematográfica.
O cinema alemão fora substancialmente edificado por
empresários e artistas de ascendência judaica, num modo de produção que
permitia a experimentação estética, gerando um expressionismo cinematográfico
que marcou a cinematografia mundial [18]. Já o cinema nazista foi produzido por
uma indústria cultural antissemita desde as bases “biológicas” de sua
organização.
Iniciada em 1933 por Goebbels, como primeira medida
do regime, assim que Hitler tomou o poder, a “arianização” promoveu o expurgo,
a proibição de trabalho e o exílio de mais de 1500 artistas, produtores e
técnicos de ascendência judaica, levados a fugir para a Áustria, a França, a
Inglaterra, e depois para os EUA. Enquanto na Alemanha o nazismo censurava suas
produções, a menção de seus nomes, a lembrança de seus feitos, controlando ao
mesmo tempo as ascendências, relações sexuais e consangüíneas dos produtores
culturais alemães, habilitados através de fichas de inscrição obtidas no
Ministério da Cultura e da Propaganda, Hollywood via-se beneficiada com um
influxo sem precedentes de talentos de tradição expressionista, revolucionando
o realismo do cinema americano no filme noir, no thriller
psicológico, no filme de espionagem, no terror atmosférico.
Após a “arianização” do cinema alemão, considerada
completa em 1937, Goebbels elaborou para ele uma estética que associava os
valores nacional-socialistas a formas narrativas consagradas, associando as
deformações plásticas às deformações mentais; cultivando a saúde, o corpo, a
natureza, o nudismo; professando o respeito cego à autoridade, à nobreza, à
honra; adotando valores patrióticos, militaristas, racistas. Os artistas deviam
seguir um padrão realista de narrativa, inspirado na literatura do naturalismo.
Goebbels pôs fim ao sobrenatural, ao fantástico, ao horror, que haviam marcado
o cinema alemão. Desenvolveu o filme histórico, o filme de guerra, o
documentário cultural e o melodrama biológico. O racismo transformou-se em pano
de fundo para comédias românticas, dramas policiais, operetas e musicais.
David Stuart Hull considerou como antissemitas
apenas 4 filmes produzidos sob o Terceiro Reich: Robert und Bertram
(1939), The Rotschilds (1940), Jud Süß (1940) e o documentário The
Eternal Jew (1940). Em Antisemitische Filmpropaganda, Dorothea
Hollstein aprofundou a superficial pesquisa de Hull e constatou a existência de
22 filmes e 2 projetos não realizados que considerou antissemitas. Desde então,
pouco foi acrescentado. Na tese An Analytical Study of the Nazi Treatment of
the Jews in Three Films, Wilhelm Bleckmann analisou três daqueles filmes.
Régine Mihal-Friedman, em L’image et son Juif, concentrou-se em Jud
Süß, sem modificar o quadro estabelecido por Dorothea Hollstein.
Em The Nazi Antissemitic Film: A Study of its
Productional Rhetoric, Baruch Gitlis analisou outros daqueles mesmos
filmes, observando com razão: “É surpreendente que, até 1938, filmes
explicitamente antissemitas não tenham sido produzidos e exibidos publicamente”
[19]. Mesmo constatando a existência de cenas antissemitas “sutilmente
insinuadas e integradas” em filmes como Hitlerjunge Quex (1933) ou Hans
Westmar (1933), Gitlis voltou a notar: “Por razoes políticas que ainda
permanecem não esclarecidas, não houve filmes antissemitas alemães produzidos
antes de 1938” [20].
Ora, 22 ou 24 filmes antissemitas, isto é, nos
quais a imagem do judeu é apresentada de maneira detestável, numa produção de
1.097 filmes de ficção [21] não refletem a essência de um sistema político que
preparava administrativamente a morte de milhões de judeus em toda a Europa.
Era preciso que me lançasse ao fundo da questão: ou a essência do nazismo não
era o antissemitismo (o que seria como colocar a realidade entre parênteses) ou
a propaganda antissemita no cinema nazista não havia sido revelada pelos seus
estudiosos em toda a extensão. Teria o cinema nazista desempenhado outro papel
que não o de reforço ideológico? Estaria a massa de filmes nazistas limpa de um
racismo concentrado em outros veículos? Mas, então, qual a necessidade de
montar uma gigantesca indústria cultural ligada ao Ministério da Propaganda?
Apostando na hipótese lógica, passei a assistir a
todos os filmes nazistas que eram programados em seminários, exibições
especiais, cinematecas, etc. Engajado nesta busca, eu me transformei numa espécie
de Simon Wiesentahl do cinema – enquanto ele caçava criminosos nazistas, onde
quer que eles se refugiavam, eu caçava filmes nazistas, onde quer que eles
fossem projetados…
Logo observei nesse cinema algo de inusitado, que
não havia sido até então analisado. Um fenômeno que se repetia em diversos
filmes de “entretenimento”: a presença de uma doença misteriosa que atingia
personagens principais ou secundários, uma doença que se assemelhava a uma
peste, e que era mesmo muitas vezes apresentada como a própria peste. Reatando
esse fenômeno à propaganda antissemita retórica, expressa em artigos de jornal,
manuais de eugenia e livros de doutrinação, concluí que a doença era um dos
grandes leit-motivs do cinema nazista e, num paralelo com o papel do
judeu na propaganda geral do sistema nazista, poderia ser interpretada como uma
metáfora do judeu. Haveria, então, toda uma dramaturgia antissemita na
própria linguagem do filme nazista, o núcleo da propaganda refletindo,
finalmente, a essência do sistema.
De fato, o que diferenciaria filmes “mórbidos” em
sua própria estrutura como Ein Volksfeind, La Habanera, Robert
Koch, Verwehte Spuren, Ewiger Rembrandt, Kleider machen
Leute, Das Herz muß schweigen, Opfergang ou Paracelsus
dos filmes normalmente identificados como antissemitas pelos historiadores do
cinema, como Robert und Bertram, Jud Süß, Die Rotschilds
ou Der ewige Jude é que a propaganda antissemita no primeiro grupo de
filmes é neles embutida numa dimensão cinematográfica, fluindo integrada à
narrativa, sem a necessidade de um discurso verbal a explicitá-la.
Numa ação subconsciente, o primeiro grupo de filmes
difunde o próprio pathos antissemita, em conexão com suas imagens,
previamente disseminadas e assimiladas através de outros discursos. Essa
constatação requeria uma série de provas, e um recuo de perspectiva até as
origens da metáfora. Foi preciso examinar a organização do cinema nazista e seu
papel dentro da estrutura geral e do conjunto significante do sistema de
propaganda, e as diversas maneiras pelas quais a propaganda antissemita foi
disseminada no filme nazista.
08 de maio de 2012
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