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(Criando uma celebridade (3) - arquivo do dia 03/AGO/12)
Após esse começo triunfal, que retrata o seu autor muito mais claramente do que a mim, ele qualifica de “pérola” a seguinte afirmativa que encontrou num artigo meu (www.olavodecarvalho.org/semana/081009dc.html): “O Islam... é a cultura mais escravagista dos últimos dois milênios.”
Essa afirmativa bastou para que o sr. Moreira acreditasse, ou fingisse acreditar, que via em mim um inimigo jurado da civilização islâmica. Como já expliquei, ele nem mesmo tentou confirmar essa impressão mediante a consulta a outros textos meus, que a desmentem frontalmente. Deduzir de uma afirmação isolada um perfil ideológico inteiro, caracterizando-o como uma tomada de posição unilateral e até fanática, é um procedimento típico de quem está, ele próprio, infectado de veneno ideológico ao ponto de nem de longe conseguir vislumbrar que a vítima de seus ataques pode ser um intelecto equilibrado, capaz de perceber aspectos contraditórios no seio da realidade e admitir, como no caso, que uma civilização possa ser ao mesmo tempo portadora de valores universais e autora de crimes abomináveis. O ódio do sr. Moreira à civilização cristã é que é inteiramente coerente consigo mesmo, um bloco sólido onde não há espaço para atenuantes e concessões. É evidente que ele me imagina à imagem e semelhança dele próprio, apenas com signo invertido.
Seguem-se várias páginas, nas quais, baseado em dados que Paul Lovejoy extraiu de estatísticas colhidas entre 1970 e 1979, o sr. Moreira conclui que o tráfico muçulmano e o ocidental fizeram aproximadamente onze milhões de escravos cada um, donde,
“na melhor das hipóteses para Olavo de Carvalho, o quadro seria de um tenebroso empate técnico.
Sim, seria, mas só se os estudos a respeito, como os conhecimentos que dele tem o sr. Moreira, tivessem parado em 1979. Desde então, descobriram-se algumas coisinhas. Vejamos algumas, só a título de amostras:
1. Os traficantes muçulmanos não levaram para seus países 11 milhões de escravos. Levaram entre 15 e 17 milhões.[4]
2. Sete séculos antes que os europeus chegassem à África, os muçulmanos foram os genuínos inventores do tráfico negreiro. Na África pré-islâmica sempre existiu escravidão – inclusive de brancos --, mas não no sentido que o termo tem vulgarmente hoje em dia. O que havia era um regime de servidão, semelhante ao do feudalismo europeu, onde o servo, malgrado a posição social inferior, tinha sua renda própria, estava vinculado ao seu senhor por um juramento de fidelidade mútua e em geral era considerado um membro da família. Os árabes não só introduziram ali a escravidão em larga escala, mas criaram todo um sistema comercial de dimensões continentais, devastando comunidades e nações, demolindo estruturas sociais milenares e infectando de espírito escravagista, primeiro alguns indivíduos e grupos locais, depois povos africanos inteiros, que com o decorrer do tempo acabaram aprendendo, como o malfadado reino de Oyos no século XVIII, a se tornar aprisionadores e vendedores de seus irmãos.
3. Pelo menos sete séculos antes que idéias semelhantes ocorressem aos europeus, os muçulmanos foram os primeiros a criar e disseminar, em todas as classes sociais, da intelectualidade ao povão, teorias da inferioridade racial dos negros para justificar a escravização em massa dos povos africanos. O sr. Moreira leu o artigo em que demonstro isso, já que o menciona numa de suas críticas. Mas, espertamente, desviou os olhos do assunto central ali abordado para concentrar-se numa observação de passagem que fiz sobre a invasão da Etiópia (voltarei ao assunto mais adiante). Ora, a simples prioridade temporal e ampla disseminação social do racismo antinegro nos países islâmicos já bastaria para demonstrar, mesmo sem os dados suplementares aqui fornecidos, que “o Islam foi a cultura mais escravagista dos últimos dois milênios”. O sr. Moreira fez bem em fugir do assunto, lendo do artigo só as partes que julgava poder contestar. Eis aqui os trechos dos quais ele se esquivou:
O terceiromundismo, que foi uma invenção de Stálin, acabou por se tornar - e é até hoje - uma das fontes maiores da autoridade do espírito revolucionário, instilando na alma da civilização ocidental um complexo de culpa inextinguível e obtendo dele toda sorte de lucros morais, políticos e financeiros. Subscrita pelos organismos internacionais, alimentada por fundações bilionárias e várias dúzias de governos, trombeteada por incansáveis tagarelas como Noam Chomsky e Edward Said, entronizada como doutrina oficial por toda a grande mídia da Europa e dos EUA, essa ideologia toda feita de mendacidade oportunista acabou por se impregnar tão profundamente na opinião pública que qualquer tentativa de contestá-la, mesmo em tom neutro e acadêmico, vale hoje como prova inequívoca de "racismo".
Um de seus dogmas principais é justamente a acusação de racismo, atirada genericamente ao rosto de toda a cristandade por incontáveis exércitos de intelectuais ativistas e, nas últimas décadas, por todos os porta-vozes do radicalismo islâmico. Imbuído da crença na inferioridade congênita dos negros, o homem branco europeu teria sido, segundo essa doutrina, o escravagista por excelência, dizimando a população africana e financiando, com a desgraça do continente negro, a Revolução Industrial que enriqueceu o Ocidente.
Tudo, nessa teoria, é mentira. A começar pela inversão da cronologia. Os europeus só chegaram à África por volta da metade do século XV. Muito antes disso o desprezo racista pelos negros era senso comum entre os árabes, como se vê pela palavra de alguns de seus mais destacados intelectuais. Extraio estes exemplos do livro de Bernard Lugan, Afrique, l'Histoire à l'Endroit (Paris, Perrin, 1989):
Ibn Khaldun, o historiador tunisino (1332-1406), assegura que, se os sudaneses são caracterizados pela "leviandade e inconstância", nas regiões mais ao sul "só encontramos homens mais próximos dos animais que de um ser inteligente. Eles vivem em lugares selvagens e grutas, comem ervas e grãos crus e, às vezes, comem-se uns aos outros. Não podemos considerá-los seres humanos".
O escritor egípcio Al-Abshihi (1388-1446) pergunta: "Que pode haver de mais vil, de mais ruim do que os escravos negros? Quanto aos mulatos, seja bom com eles todos os dias da sua vida e de todas as maneiras possíveis, e eles não lhe terão a menor gratidão: será como se você nada tivesse feito por eles. Quanto melhor você os tratar, mais eles se mostrarão insolentes; mas, se você os maltratar, eles mostrarão humildade e submissão."
Iyad Al-Sabti (1083-1149) escreve que os negros são "de todos os homens, os mais corruptos e os mais dados à procriação. Sua vida é como a dos animais. Não se interessam por nenhum assunto do mundo, exceto comida e mulheres. Fora disso, nada lhes merece a atenção."
Ibn Butlan, reconhecendo que as mulheres negras têm o senso do ritmo e resistência para os trabalhos pesados, observa: "Mas não se pode obter nenhum prazer com elas, tal o odor das suas axilas e a rudeza do seu corpo".
Em contrapartida, teorias que afirmavam a inferioridade racial dos negros não se disseminaram na Europa culta senão a partir do século XVIII (cf. Eric Voegelin, The History of the Race Idea. From Ray to Carus, vol. III das Collected Works, Baton Rouge, Louisiana State University Press, 1998). Ou seja: os europeus de classe letrada tornaram-se racistas quase ao mesmo tempo em que o tráfico declinava e em que eclodiam os movimentos abolicionistas, dos quais não há equivalente no mundo árabe, de vez que a escravidão é permitida pela religião islâmica e ninguém ousaria bater de frente num mandamento corânico.
O racismo antinegro é pura criação árabe e, na Europa, não contribuiu em nada para fomentar o tráfico negreiro.[5]
4. Dos escravos negros que vieram para a América, a quase totalidade não foi aprisionada por europeus, mas por muçulmanos. O escravo, quando é vendido, simplesmente troca de dono. A condição de escravo lhe advém desde o instante mesmo da sua captura. Antes de ser escravos de portugueses, espanhóis ou franceses, os africanos que eles compraram foram escravos de árabes. O total de escravos aprisionados e vendidos por muçulmanos sobe, portanto, para a casa dos 25 milhões, na mais branda das hipóteses. O equivalentismo numérico do sr. Moreira é, em toda linha, uma trapaça.
No arrebatamento da sua fúria anti-ocidental, o sr. Moreira exclama:
“A transferência de mais de 6 milhões de homens e mulheres da África para a América, somente no século XVIII, é um processo sem paralelo na História, que não pode ser minimizado ou justificado.”
Tem razão. Não pode ser minimizado ou justificado. Mas pode ser comparado. Afinal, o que o sr. Moreira propõe não é precisamente uma comparação, na qual o Ocidente sai com a pecha de malfeitor supremo, muito pior que os muçulmanos? Pois façamos a comparação.
É de fato uma crueldade abjeta jogar pessoas no fundo de um porão de navio, para que atravessem o oceano deitadas num chão de madeira, em condições de higiene abaixo de deploráveis. Mas que é isso, comparado ao crime hediondo de fazê-las caminhar milhares de léguas entre florestas e desertos, atravessar às vezes um continente inteiro com os pés sangrando, atadas umas às outras por ferros e cangas, sob o chicote do feitor, para chegar ao porto onde o porão da caravela portuguesa ou espanhola, uma vez atingido esse paroxismo de sofrimento, era ao menos uma promessa de descanso? A pesquisa mais recente reconstituiu com bastante minúcia as trilhas por onde os mercadores islâmicos conduziam escravos, e dizer que elas atravessavam o continente não é de maneira alguma uma figura de expressão. A taxa de mortalidade nessas viagens era compreensivelmente bem superior àquela observada no trajeto marítimo (sem contar as mortes ocorridas em resultados das castrações em massa). Tal é mais uma diferença entre o tráfico muçulmano e ocidental, que o sr. Moreira, cego de ódio à civilização cristã, não quer ou não pode enxergar.
Incapaz de contestar essa diferença, o sr. Moreira tenta lançar uma cortina de fumaça sobre a realidade, alegando que no século XV, antes mesmo da sua chegada oficial à África, portugueses andaram capturando escravos negros nas regiões costeiras em vez de comprá-los dos árabes. Em apoio desta afirmação, ele reproduz um trecho do renomado historiador Charles R. Boxer, segundo o qual, diz o sr. Moreira, “antes da metade do século XV, quando os europeus ainda não haviam chegado a Angola, os portugueses já promoviam razias em busca de escravos na África Ocidental e nas Ilhas Canárias”. E aí o charlatanismo visceral do sr. Moreira chega a um de seus pontos altos, recorrendo ao expediente de citar um texto na esperança de que o leitor não o leia, ou só leia o começo, e não perceba, portanto, que ele diz o contrário do que se pretende fazê-lo dizer. Pois Boxer afirma, sim, que os portugueses fizeram aquelas razias, mas, conclui ele: “Depois de alguns anos de contato com as populações negras da Senegâmbia e da Alta Guiné, os portugueses compreenderam que poderiam obter escravos muito mais facilmente através da troca pacífica com os chefes e mercadores locais.” Ou seja: após algumas investidas esporádicas, pararam de capturar escravos e passaram a comprá-los durante quatro séculos. E de quem poderiam comprá-los, senão de quem os havia capturado? O texto confirma o que eu disse, não o que o sr. Moreira pretende insinuar com um blefe pueril.
Sendo impossível contestar a quase completa ausência de europeus nas investidas para captura de escravos, o sr. Moreira procura minimizar a diferença moral entre ocidentais e islâmicos explicando aquela ausência por meras dificuldades materiais. A manobra mal calculada leva-o porém a dar com a língua nos dentes ao proclamar, logo antes da citação fraudulenta de Charles Boxer:
“Lamento decepcionar as olavetes. É óbvio que o tráfico ‘consentido’ para o Ocidente [ele se refere a escravos comprados] superou em muito a captura direta, pois não haveria meios para apanhar mais de 11 milhões de pessoas a laço em menos de quatro séculos.”
Ele não poderia nos fornecer uma prova mais evidente da sua condição de analfabeto funcional, incapaz de entender o que escreve. Se o tráfico europeu comprou onze milhões de escravos mas não poderia tê-los capturado diretamente, de quem mais poderia tê-los comprado se não de quem os havia capturado antes? E se onze milhões de pessoas que estavam à venda não poderiam ter sido capturadas em quatro séculos, então seus antepassados já tinham sido capturados ao longo de muitos séculos anteriores e suas famílias tinham vivido como escravas de muçulmanos, de geração em geração, durante todo esse tempo. O tráfico ocidental inteiro, nessa perspectiva, surge como um mero apêndice do escravismo muçulmano. O sr. Moreira nem de longe se dá conta de que, com esse raciocínio de mentecapto, ele prova a minha tese em vez de refutá-la. Felizmente, não preciso desse tipo de ajuda. Posso argumentar perfeitamente bem por minha própria conta, sem me prevalecer da exploração de incapazes.[6]
Mesmo atentando só para o aspecto quantitativo da coisa (há outros aspectos até mais graves, que veremos adiante), não há como refutar a conclusão de Tidiane N’Diaye:
“Podemos sustentar, sem risco de erro, que o comércio negreiro arábico-muçulmano e as jihads provocadas por esses impiedosos predadores para obter cativos foram, para a África negra, bem mais devastadores que o tráfico transatlântico.”[7]
Guardo para mais adiante a bibliografia comprobatória, que já citei parcialmente no meu programa de rádio, e que é inútil, em todo caso, para o sr. Moreira, o qual terá de aguardar sua tradução por umas três ou quatro décadas. Só para adiantar o expediente, forneço aos demais leitores a indicação de alguns documentários, consciente de que também de nada servem para o sr. Moreira, já que vêm em inglês ou francês
Olavo de Carvalho
03 de agosto de 2012
La traite negrière arabomusulmane:
L’esclavage des noirs par les arabes
Hypocrisie sur l’esclavage arabe
Esclavage islamique sur les populations africaines
L’esclavage arabo-musulmane en Afrique noire
[Continua]
Notas:
[4] Cf. John Alembillah Azumah, The Legacy of Islam in Africa, A Quest for Inter-Religious Dialogue, London, Oneworld Publications, 2001.
[6] Nem menciono o fato de que, logo após ter postulado o equivalentismo, o sr. Moreira volta atrás e tenta atenuar a culpabilidade islâmica alegando que o tráfico de escravos no mundo muçulmano se estendeu por treze séculos, ao passo que o ocidental se comprimiu em apenas quatro. A idéia mesma de fazer da duração de um crime continuado um argumento em favor do criminoso já é completamente psicótica, mas a isto se acrescenta o detalhe de que nem ocorre ao sr. Moreira, no caso, o problema da dificuldade dos meios materiais, que ele havia alegado contra os portugueses. Se estes não poderiam ter capturado onze milhões de pessoas em quatro séculos, como não entender que a mesma dificuldade material deve ter pesado no fato de os muçulmanos levarem treze séculos para capturar 25 milhões ou mais? Até na aritmética o sr. Moreira apela ao fingimento histérico.
[7] Tidiane N’Diaye, Le Génocide Voilé. Enquête Historique, Paris, Gallimard, 2008, p. 11.