Quem pratica o maior dano às instituições? A ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, com a franqueza da linguagem mineira, não tem dúvidas: é a corrupção. E puxa a orelha dos corruptos, quando compara a vida a uma estrada.
Não adianta uma pessoa andar mil quilômetros em linha reta, se entra na contramão e bate em alguém. E ensina: “não dá para um cidadão ir dormir imaginando que no espaço público está fazendo alguma coisa errada”.
A elevação moral que se pinça da peroração da magistrada não chega a comover os travesseiros dos malfeitores. Que continuam, em nossos trópicos cheios de contramão, a dormir o sono dos justos. Só abrem os olhos quando acordados pelo ferrão da Justiça. Mesmo assim, quando acordam, mostram-se dispostos a “sacudir a poeira e dar a volta por cima”.
Qualquer semelhança com o Grupo OK, do ex-senador Luiz Estevão, que vai devolver R$ 468 milhões aos cofres públicos, não é mera coincidência. O fato é que, apesar dos esforços do Ministério Público e do Judiciário para multiplicar diques de contenção, ondas de corrupção continuam a devastar o terreno da administração pública nas três instâncias da Federação.
Eliminar as manchas de corrupção do corpo do Estado é tarefa complexa. A realidade mostra que não se muda uma cultura por decreto. O vírus da corrupção, como é sabido, inoculou-se nas veias da Nação em seu berço civilizatório, espraiando-se por ciclos históricos, imbricando-se aos governos, adentrando os compartimentos legislativos e deitando raízes no sagrado corpo da justiça.
Voltemos ao passado. Em primeiro de maio de 1500, na famosa Carta do Descobrimento do Brasil, ao pedir a El Rei a “graça especial” de mandar vir da Ilha de São Tomé seu genro, Jorge de Osório, que lá estava preso, Pero de Vaz de Caminha abria o repertório de proveitos, adjutórios e jeitinhos que circundam (e corroem) a vida de nossas instituições políticas e sociais.
Os pequenos desvios de ontem deram lugar aos gigantescos escândalos de hoje, dentre eles, os mensalões, o caso Luis Estevão, os bingos e cartões corporativos, as sanguessugas (ambulâncias), a CPI das ONGs etc.
Hoje, o custo das “coisas erradas” na administração pública é estratosférico: entre R$ 80 a 100 bilhões, segundo um estudo da FIESP, algo em torno de 1,4% do PIB ou mais de 20% dos recursos movimentados pela corrupção no mundo, que a Transparência Internacional calcula em US$ 1 trilhão por ano.
A indagação é rotineira: por que os malfeitores continuam a agir de maneira desabrida? Conhece-se a resposta: porque as causas que determinam comportamentos erráticos persistem. Elas abrigam o cenário institucional e as mazelas abertas pelo Estado, a partir da empedernida burocracia e a escancarada impunidade.
Veja-se esta última. Análise feita pela Controladoria Geral da União dá conta que a probabilidade de um funcionário corrupto ser punido é de menos de 5%. Logo, a prática de “criar dificuldades para obter facilidades” ganha corpo na vasta seara das administrações. Adiantar expedientes, “fabricar” textos de licitações para beneficiar grupos, liberar recursos estão entre os exercícios que entram na contramão apontada pela ministra Cármen.
Nesse ponto, o Estado hipertrofiado sobe a montanha burocrática. Visões obsoletas e grupos indolentes esbarram nos obstáculos: restrições comerciais; medidas que desestimulam a produção; vieses protecionistas; fartos subsídios para uns produtos e regras pesadas contra outros; falta de celeridade da Justiça; farta, confusa e injusta legislação tributária e ausência de planejamento.
Esse é o fertilizante jogado no terreno da corrupção, onde nasce a equação que junta estruturas arcaicas e quadros esfomeados. Dessa forma, as florestas da União, Estados e Municípios garantem a moeda do escambo da res publica: a propina, a bola, o pedágio, as comissões.
O exercício da corrupção, é oportuno registrar, é também facilitado pelo contingente de jardineiros dispostos a semear o vírus. Veja-se. O número de pessoas em cargos de confiança no governo federal facilita a extensão de ilícitos: 90 mil pessoas. Em países como Estados Unidos, essa quantidade não ultrapassa 10 mil servidores e, na Inglaterra, não passa de 300.
Por último, vale destacar que a temperatura ambiental também propicia a proliferação da doença. Afinal, mais de 70% da população, segundo o Ibope, se diz tolerante com a corrupção, enquanto o percentual que admite ter cometido algum deslize ético e poderia cair na malha corruptiva, caso fosse nela jogado, é até maior.
Ou seja, o jeitinho para driblar os caminhos da lei e substituir as retas pelas curvas parece encarnado na alma popular, o que remete a uma reflexão sobre os valores que formam o ethos nacional, entre eles, a flexibilidade, a improvisação, a criatividade, a rebeldia, o gosto para fugir à norma estabelecida.
Sérgio Buarque de Holanda, no clássico Raízes do Brasil, já contrapunha nossa tradição cultural à herança nórdica protestante. Cultivamos um “individualismo amoral”, que descamba na ausência do associativismo racional típico dos países protestantes, o que explica nosso atraso social.
Não conseguimos cultivar o controle racional dos afetos. A nossa ética joga os interesses de curto prazo sobre os de longo prazo.
Sob essa moldura comportamental, o que fazer para tapar os buracos abertos pelos aríetes da corrupção? Fazer a reforma da gestão do Estado, que pressupõe ações que coíbam práticas ilícitas, como o Orçamento impositivo, pelo qual o Poder Executivo se obrigaria a executar a programação orçamentária aprovada pelo Congresso.
Hoje, com o orçamento autorizativo, a liberação de recursos passa por um extenso corredor, dando margem à manipulações. Noutra ponta, fechar as portas da impunidade e acelerar os processos contra os meliantes, ao mesmo tempo em que todos os centavos surrupiados deverão ser devolvidos ao Tesouro.
Para começo de conversa.
02 de setembro de 2012
Gaudêncio Torquato