Seu gesto extremo foi a fagulha que incendiou o rio subterrâneo de combustível que percorria a Tunísia. Era o dia 17 de dezembro de 2010 e os tunisinos inauguraram a chamada Primavera Árabe.
A imolação de um pobre catalisou a erupção de demandas reprimidas por uma ditadura que já durava mais de duas décadas. Não demorou e o ditador fugiu do país, varrido por um impetuoso movimento de massas. Nenhum manual podia explicar aqueles acontecimentos.
Temos uma tendência natural ao controle. Ninguém gosta de viver inseguro, ignorante de arredores misteriosos. Daí um desejo irresistível de rotular, classificar, engessar. É o preâmbulo de qualquer conservadorismo. Por essa ótica, é compreensível o atordoamento geral com as manifestações de rua que se espalharam rapidamente pelo Brasil.
Tal como na Tunísia, começaram com um acontecimento aparentemente trivial: o protesto contra o aumento das tarifas do transporte público. Afinal de contas, todos os anos, sem qualquer melhoria aparente na qualidade do serviço prestado à população, os empresários ganham de bandeja reajustes nas tarifas.
Com a chancela dos governos municipais, não raro beneficiados por generosas doações em época eleitoral, os empresários dos transportes nunca deram a mínima para os anseios do povo.
Por que foi diferente agora ? Acho insuficiente atribuir à violenta repressão policial em São Paulo a enorme reação em cadeia que veio em seguida. Mais uma vez: truculência policial é feijão com arroz no cotidiano das comunidades pobres e nem por isso resultou em insurreição. É preciso conviver com a dúvida, é saudável. Por enquanto, e acredito que por um bom tempo, the answer is blowing in the wind.
REDES SOCIAIS
A mobilização espontânea, puxada por redes sociais, tem um componente catártico. Por difusas razões, multidões resolveramespernear, e no cesto cabe, literalmente, de tudo.
O alívio de soltar o grito, no entanto, é apenas um estágio primitivo da política. Sem organizar uma estratégia, sem escolher prioridades, sem compreender além da superfície visível o que produz desigualdade e insatisfação, sem, sobretudo, construir/fortalecer ferramentas políticas de luta, cai-se, dobrando a esquina, no vazio.
Compreendo e apoio o berro, mas, sozinho, ele tem fôlego curto. Na Argentina, no auge da crise do início deste século, manifestantes gritavam Que se vayan todos, que no quede un solo ! Lá como cá, o povo percebia a política como atividade criminosa, coisa de bandidos. Entro neste vespeiro um pouco adiante.
Antes de prosseguir, registro uma dessas impiedosas ironias da História. No final de 2012, com o final da primeira fase do julgamento do Mensalão, líderes do PT, totalmente (tolamente ?) desligados da realidade, falaram num “retorno do partido às ruas”.
Gilberto Carvalho, da Secretaria-Geral da Presidência da República, convocou a militância para defender Lula e o PT.
Estava convencido de que “o povo vai se mobilizar em defesa do nosso Lula, do nosso projeto”. José Dirceu, condenado por formação de quadrilha e corrupção ativa, disse ter sugerido ao partido que “fizéssemos uma manifestação em fevereiro, colocando 200 mil pessoas na rua”.
O resultado está aí. Não sou da área psi, mas deve existir alguma patologia caracterizada pelo total desligamento da realidade. Esses companheiros deviam procurar ajuda especializada.
Se o retorno às ruas significar a revalorização da política, os atuais acontecimentos serão tremendamente positivos. Que não se esperem, porém, milagres. A massa está profundamente desapontada com o jogo político-partidário.
A sensação de desamparo e frustração foi reforçada nos últimos anos, quando um partido que chegou ao poder prometendo ser diferente rejuvenesceu o que há de pior e mais reacionário na República
A “flexibilidade tática”, senha para “governabilidade” a qualquer custo, lustrou alianças vergonhosas com Paulo Maluf, Renan Calheiros, José e Roseana Sarney, Guilherme Afif Domingos, Marcelo Crivella e outros menos votados.
Relações incestuosas, que alimentam no imaginário popular a ideia de que todos são protagonistas de um filme B, estrelado por corruptos, cínicos e cafajestes.
Alguma surpresa, então, com a hostilidade contra militantes da esquerda que aderem às manifestações ? Com a despolitização do espaço público, alegremente estimulado pelo PT e seus aliados, como pretender que o povo saiba separar o joio do trigo ? Queimar bandeiras e agredir militantes não tem outro nome: fascismo. Há, no entanto, que compreender, com restrições, o estado de ânimo de muitos que perderam a esperança no arremedo de sistema partidário pós-ditadura.
COOPTAÇÃO
A cooptação de organizações populares pelo governo federal é uma tragédia que mostra agora, com todas as tonalidades, enormes prejuízos para o processo político. Onde estão os sindicatos dos médicos, professores, rodoviários, metroviários e ferroviários, cujas categorias profissionais estão sendo defendidas nas ruas ? Onde está a CUT, que poderia articular uma aproximação com a massa revoltada ? Onde está a UNE, de gloriosa trajetória no passado e hoje instrumentalizada pelo PCdoB ? Essa seria a hora de dar musculatura às mobilizações que varrem o país, unindo reivindicações e potencializando capacidade organizativa.
A postura do PT e do governo federal está muito bem exposta numa frase de José Eduardo Dutra, ex-presidente do partido: “Vamos combinar o seguinte: a oposição pode ficar com a manifestação dos estádios de futebol e o PT fica com a das urnas em 2014”.
Mais claro, impossível. O líder petista ironiza a insatisfação popular, certo de que a televisão e o “projeto” do partido garantem a reeleição de Dilma. Nisso se transformou um partido que teve origem em setores progressistas. Junta-se a Gilberto Carvalho e José Dirceu no surto de triunfalismo canhestro que está sendo desconstruído pelas ruas.
O núcleo duro do PT apostou, claramente, num esvaziamento natural da revolta. Quando os 200 mil delirados pelo José Dirceu se transformaram em mais de 1 milhão de incontrolados, acendeu-se a luz amarela no Planalto. E veio, com péssimo timing e pior conteúdo, o discurso da presidente em cadeia nacional.
DILMA NA TV
Ouvimos uma burocrata enfezada, que não tolera o contraditório. Falou de “muita coisa que o Brasil ainda não conseguiu realizar por causa de limitações políticas e econômicas”.
Que limitações seriam essas ? Por que não abre o jogo e esclarece a população, politizando o que é técnico só na aparência, construindo uma ponte pedagógica que vá além do horizonte miúdo das disputas eleitorais ? Por que não denuncia as verdadeiras causas que tornam os sistemas educacional e de saúde no Brasil calamidades crônicas ? Que concubinato político garante a continuidade das agressões diárias ao povo brasileiro ?
Em outro momento, tergiversou sobre a origem dos recursos para a construção de estádios para a Copa do Mundo. Disse que os recursos públicos são financiamentos que terão que ser devolvidos aos cofres públicos.
Esqueceu de dizer que os financiamentos do BNDES são subsidiados, com juros camaradas, e os contratos de privatização dos estádios garantem lucros leoninos. No fundo, assistimos a mais um processo de concentração de riqueza. Fechando o caixão, digo, o discurso, a senhora presidente lembrou que “minha geração lutou muito para que a voz das ruas fosse ouvida”.
Amnésia conveniente. A geração a que se refere Dilma é a que lutou contra a ditadura. Seu projeto era construir o socialismo, palavra banida faz tempo do léxico petista.
Espremendo a fruta, sobra apenas uma declaração de boas intenções. Formar grupos de trabalho, dizia Getúlio, é uma forma de não resolver problemas. O prédio está pegando fogo e os bombeiros convocam para uma aula sobre a estrutura molecular da água.
O que virá ? Do governo federal, há poucas dúvidas. Nenhum dos problemas apontados pelos manifestantes é novidade. Abrir-se-á o cofre, especialmente no ano que vem, e dele sairão bondades paliativas para tentar garantir a reeleição de Dilma. Já das ruas … Sem lideranças ou alianças com setores organizados, é possível imaginar um refluxo por esgotamento.
A frustração voltaria a acumular-se e poderia ser descarregada, por exemplo, em Tiriricas, Bebetos e Popós. Não é impossível que demandas não atendidas sejam capitalizadas por grupos de direita.
A chegada de movimentos sociais e populares organizados poderia dar um salto de qualidade às revoltas, ao mesmo tempo em que ajudaria a conter avanços da direita. À esquerda, e aí incluo os partidos, cabe decifrar o enigma que os novos acontecimentos propõem. Sem cair na tentação de procurar respostas prontas em velhos manuais.
27 de junho de 2013
Jacques Gruman