Uma série de ditaduras marcou o mundo ocidental a partir dos anos 20 do
século passado. Numa sequência que durou mais de vinte anos, Mussolini inaugurou
o cortejo, ao tomar o poder na Itália, em 1922. Seguiram-se Salazar em Portugal
(1932), Hitler na Alemanha (1933) e o general Franco na Espanha (1939).
Atravessando o Atlântico, o Brasil teve a “glória” de figurar no cortejo, com o
golpe de Getúlio Vargas, implantando o Estado Novo em novembro de 1937.
Os ditadores chegaram ao poder por diferentes vias, numa conjuntura em que a
democracia liberal se enfraquecera e os regimes chamados fortes pareciam ser a
fórmula regeneradora das nações doentes, corroídas pela desordem. Benito
Mussolini se tornou
Il Duce após um passeio, mitificado pelos seus
seguidores: a marcha triunfal sobre Roma. António Salazar assumiu o poder sem
abalos. Adolf Hitler foi chamado pelo presidente Hindenburg para salvar a
Alemanha. Francisco Franco se destacou pela via sangrenta da guerra civil, da
qual saiu vitorioso.
Nesse cortejo de ditadores da Europa Ocidental, segundo o grau de sinistra
importância, Hitler ficou em primeiro lugar e Salazar na última posição, embora
estivesse longe de ter exercido uma “ditadura branda”. Não por acaso, Hitler,
Mussolini e Franco foram objeto de excelentes biografias. Salazar, pelo
contrário, recebeu poucas atenções fora de Portugal. E é de um historiador
português, Filipe Ribeiro de Meneses, uma qualificada e minuciosa biografia do
ditador português. O livro foi escrito originalmente em inglês, sob o título de
Salazar: A Political Biographye não há nessa edição o subtítulo
publicitário “Biografia definitiva”, que consta da edição brasileira. Traduzido
para o português de Portugal, o livro tem para nós, brasileiros, um sabor
especial, pelo palavreado luso, que lhe dá um curioso gosto de
autenticidade.
É de se perguntar: como é possível atravessar as mais de 800 páginas de uma
biografia, cujo personagem central não é uma figura especialmente atraente? Se a
minha receita servir, li o livro com grande interesse, prestando menos atenção
em minúcias que me parecem secundárias para o leitor brasileiro.
António de Oliveira Salazar, ditador sem brilho, destituído de carisma, teve,
entretanto, uma longa carreira política: comandou Portugal por 36 anos. Seus
traços de personalidade, seu percurso na condução de um pequeno país, em meio a
uma Europa sacudida por muitos abalos, o caráter
sui generis do regime
autoritário português são motivos suficientes para que a biografia de um homem
insosso esteja longe de ser insossa.
alazar nasceu numa pequena cidade, com
um desses nomes evocativos de uma aldeia lusa: Santa Comba Dão. Único filho
homem da família, viveu a infância num período em que seu pai, vindo da pobreza,
alcançara condição mediana. Ao chegar à adolescência, abriam-se para ele dois
caminhos numa sociedade que gerava poucas oportunidades econômicas: o sacerdócio
e a carreira militar. Salazar entrou para o seminário de Viseu e chegou a
receber ordens menores, a caminho de tornar-se sacerdote. Apesar de os padres
representarem forte influência na sua formação católica conservadora e no seu
moralismo, não seguiu carreira eclesiástica. Seguiu um rumo mais prestigioso, ao
ingressar na Universidade de Coimbra em 1910, onde se especializaria em economia
e finanças.
Na vida privada, Salazar foi um solteirão, atendido por uma governanta cinco
anos mais velha do que ele durante todo o tempo em que viveu em Lisboa. A
natureza das relações entre Salazar e Maria de Jesus Caetano Freire, que o país
conhecia como dona Maria, deu margem a muita especulação, mas nada de certo se
sabe a respeito. Em compensação, dois casos amorosos de Salazar, depois de
chegar ao governo, tornaram-se conhecidos. Ambos envolveram relações
complicadas: um deles, com uma sobrinha casada; o outro, com Maria Emília
Vieira, jovem de vida boêmia, em Paris e na noite lisboeta. Por mais que ele
fosse discreto em seus
affaires, não era o “monge castrado” como o
chamou num panfleto seu opositor Cunha Leal, banido, aliás, para os Açores.
Os casos de Salazar estão bem longe do ideal de família e do papel da mulher
que pregava em seus escritos. A família, segundo ele, era “a célula social cuja
estabilidade e firmeza são condição essencial do progresso”. Quanto à mulher, o
maior elogio que se poderia fazer-lhe resumia-se a um epitáfio romano: “Era
honesta, dirigia a casa; fiava lã.”
o plano das ideias, além da raiz
fundamental – o catolicismo conservador –, ele foi bastante influenciado pela
Action Française, movimento de direita em que figuravam nomes como Charles
Maurras, Maurice Barrès e Gustave Le Bon. Este último impressionou Salazar pela
relativização das instituições políticas existentes e por não acreditar na
capacidade intelectual da grande massa.
A aproximação de Salazar com a política se deu a partir de seus escritos em
jornais católicos de província, que tinha em grande conta porque considerava
“a imprensa católica do país a mais séria, a mais ponderada, a única decente e
limpa, que pode entrar em todas as casas, sem ministrar à donzela incauta o
veneno do romance perigoso e sem tecer, sob atraentes formas, a apologia dos
criminosos”.
A República portuguesa nunca chegou a se estabilizar. Ficou dividida entre as
correntes partidárias, as conspirações monárquicas, a anarquia administrativa e
o desequilíbrio orçamentário – herança maldita dos tempos da monarquia,
derrubada em 1910. Em dezembro de 1917, um golpe de Estado abriu caminho para a
ditadura militar de Sidónio Pais. Figura extraordinária esse Sidónio Pais!
Sempre rodeado de belas mulheres, charmoso, carismático, populista, era
pessoalmente o oposto de Salazar, que então iniciava seus passos na carreira
política. A “República nova” de Sidónio, porém, durou pouco porque o
“presidente-rei” foi morto a tiros, num atentado nas ruas de Lisboa, em dezembro
de 1918.
Portugal voltou a ser uma democracia cuja morte anunciada percorreu os anos
caóticos de 1920 a 1926. Após uma tentativa fracassada, Salazar elegeu-se
deputado por um pequeno partido, o Centro Católico Português. Mais tarde,
manifestaria desprezo por essa breve experiência parlamentar. Em 1920, oito
primeiros-ministros passaram de raspão pelo poder e os assassinatos políticos se
tornaram moeda corrente. Por fim, em 1928, uma facção militar desfechou um golpe
de Estado. A ditadura, como o regime democrático anterior, seria marcada pela
instabilidade não só política, como também econômica e financeira.
Foi um quadro conhecido: gastos crescentes, arrecadação insuficiente,
déficits orçamentários. Os ministros da área econômica consideravam essencial
obter um empréstimo internacional que ancorasse as finanças portuguesas e
permitisse ao país concentrar investimentos em áreas estratégicas. Mas, como
lembra Ribeiro de Meneses, havia grande desconfiança de tudo o que fosse
português, a ponto de ter-se inventado um verbo em francês –
portugaliser
–,sinônimo de virar tudo pelo avesso.
Nesse quadro, a estrela do professor Salazar subia. Adversário do empréstimo
externo, ele propôs, num relatório amplamente divulgado, medidas fiscais duras
para tirar Portugal de uma situação difícil. Entre outras vantagens, o relatório
o aproximou dos grandes grupos econômicos, que não eram muitos. Não tardaria a
ser chamado para assumir o Ministério das Finanças, como homem providencial. Na
véspera de completar 39 anos, tomou posse do cargo, em 27 de abril de 1928. Cada
vez mais prestigiado, em meio às divisões no Exército e na sociedade, Salazar
foi nomeado presidente do Conselho de Ministros, em junho de 1932. Na realidade,
o cargo de primeiro-ministro era mero formalismo. Salazar tornou-se um ditador
civil que comandou Portugal quase até sua morte.
Em linhas gerais, as medidas drásticas tomadas por ele, seja como ministro
das Finanças, seja como ditador, surtiram efeito. A obstinação pelo equilíbrio
orçamentário assim como um choque fiscal, suportado sobretudo pelas camadas
pobres, possibilitaram o reequilíbrio econômico de Portugal. O país atravessou
relativamente bem a Grande Depressão mundial iniciada em 1929, mesmo sofrendo um
corte significativo dos recursos enviados pelos emigrantes portugueses,
provenientes principalmente do Brasil. Ribeiro de Meneses rebate a tese corrente
de que o Estado Novo luso se caracterizasse pelo imobilismo. Ao contrário, o
regime salazarista representaria uma tentativa frustrada, mas nem por isso menos
séria, de permitir a Portugal se desenvolver e se modernizar, dentro da ordem e
do respeito às hierarquias sociais.
Salazar tornou-se ditador de uma forma bem diversa de seus
contemporâneos.Mussolini apelou para a mobilização popular e para o
nacionalismo. Supostamente, a Itália, após a Primeira Guerra Mundial, fora
desprezada por seus parceiros maiores, vencedores da guerra. Hitler, além de
utilizar o terrível ingrediente da conspiração mundial judaico-comunista,
inflamou parte da população alemã, batendo na tecla do nacionalismo, ao insistir
no direito da Alemanha de ocupar um lugar central na Europa depois de ter sido
humilhada pelo Tratado de Versalhes. Franco subiu ao poder como vitorioso em uma
guerra civil desastrosa, para ele uma cruzada cristã contra ateus e
comunistas.
em longe da retórica ribombante dos
ditadores de
fascio e suástica, Salazar notabilizou-se por ter salvado
Portugal do caos, por uma via que se pode chamar de burocrática. Em torno dele,
não se elaborou um culto da personalidade, apesar de seu prestígio na maioria da
população. Tinha aversão a aparições públicas, recusava-se a participar de
comícios e, para completar, era mau orador e não aceitava baixar o nível dos
discursos ou ceder a slogans fáceis de lembrar.
Nem por isso deixou de zelar por sua imagem, a fim de obter ganhos políticos.
Por iniciativa do Secretariado de Propaganda Nacional – órgão que lembra o
Departamento de Imprensa e Propaganda, o DIP do Brasil do Estado Novo – e dele
próprio, sempre se apresentou ao público como um homem humilde, destituído de
ambições políticas, que se dispusera a salvar o país, sem medir sacrifícios
pessoais. Não fora essa elevada missão, permaneceria na cátedra de Coimbra – um
remanso diante das dificuldades de dirigir Portugal. Em maio de 1935, o
Diário da Manhã, órgão do regime, lançou essa pérola ao comentar um
discurso do ditador: “SALAZAR, ou o ANTIDEMAGOGO: Seria essa a sua melhor
definição.
O demagogo dirige-se aos maus instintos... Salazar dirige-se às
consciências bem formadas, aos impulsos de altruísmo e de equilíbrio, à pequena
luz da Graça que dorme, latente, no íntimo de todas as criaturas.”
O salazarismo enfatizava a religiosidade, o nacionalismo, o anticomunismo, a
crítica a um liberalismo que a modernidade do século XX não podia contemplar. O
nacionalismo era “territorialmente satisfeito”, não se destacava pelo
expansionismo, e sim como um instrumento para abafar a luta de classes. O
importante era se dar bem com os vizinhos – a Espanha em particular – e manter o
status quo nas “províncias de além-mar”.
O anticomunismo tornou-se virulento quando eclodiu a Guerra Civil Espanhola,
em 1936. Para o regime, os republicanos e os “vermelhos” eram a mesma coisa, e
ambos tinham pretensões negativas em relação a Portugal. Anos mais tarde, o
perigo comunista viria a ser uma das justificativas de Salazar para tentar
manter as colônias da África.
À primeira vista, pareceria que a ditadura salazarista era mais um regime
fascista implantado na Europa Ocidental. A oposição portuguesa, na sua difícil
luta política, tinha razões práticas para não olhar Portugal como um caso à
parte. Mas, na verdade, apesar de seus namoros com o fascismo, o salazarismo
distinguiu-se das correntes totalitárias tanto internas quanto externas.
omo nota Ribeiro de Meneses, no início
do Estado Novo talvez a principal ameaça ao regime e a seu líder não viesse da
esquerda, mas da extrema-direita, formada pelos integralistas e pelo Movimento
Nacional-Sindicalista, de Rolão Preto. Os nacional-sindicalistas tendiam a
transformar seu movimento, o dos “Camisas Azuis”, em um partido único. Insistiam
em se constituir uma verdadeira representação corporativa da sociedade. Atacavam
sem tréguas o comunismo e o capitalismo internacional. Batalhavam pela criação
de um clima social propício ao surgimento de um líder carismático, condição que
Salazar, sabidamente, não reunia.
Salazar preferiu seguir outro caminho – o da implantação de um regime
autoritário, apoiado num setor do Exército. Se a garantia da ordem era cara aos
militares, muitos oficiais, especialmente os fascistas e integralistas, faziam
fortes restrições a Salazar, seja por sua atitude de transferir a cúpula do
poder dos militares para os civis, seja pelos cortes orçamentários que impuseram
restrições ao aparelhamento das Forças Armadas.
Como reafirmou Salazar nos últimos anos de vida, os limites do Exército eram
claros: a instituição não poderia imiscuir-se nas lutas políticas, nem
constituir um partido político, devendo cingir-se a suas tarefas específicas.
Mais ainda, Salazar nunca pretendeu se apoiar na mobilização popular, como
pretendiam as organizações fascistas, nem na força de um partido único. A União
Nacional, lançada no início da ditadura, não teria as características de um
partido único nos moldes do fascismo e, principalmente, do nazismo. Uma
observação do historiador António Costa Pinto, citada no livro de Ribeiro de
Meneses, lembrando que a União Nacional foi criada por decreto governamental,
destaca com ironia: “A legislação sobre o partido foi passada do mesmo modo que
a legislação sobre as ferrovias. A administração controlava-o, adormecia-o ou
revitalizava-o de acordo com a situação de momento.”
alazar se referia a Portugal como país
de “elites paupérrimas”. Mas ele pouco fez para ampliar essas elites. Na
linguagem de hoje, o primeiro escalão do governo e o aparelho administrativo
foram recrutados, essencialmente, nos meios universitários. Além do Exército,
apesar das reticências, o regime contou com o apoio da Igreja Católica. Quem,
como eu, viveu aqueles tempos associou ao salazarismo dois nomes: o do general
Carmona, que foi presidente de Portugal, e o do cardeal-patriarca de Lisboa,
Manuel Cerejeira.
O formato autoritário do regime deveu-se tanto às convicções de Salazar
quanto a seu pragmatismo, na medida em que ele levava em conta as lentas
mudanças da sociedade portuguesa. Comparando o Estado Novo salazarista com o
implantado no Brasil, ao lado de muitas semelhanças há, pelo menos, uma
diferença básica: no âmbito de uma sociedade em crescimento, na qual a
industrialização ganhava ímpeto, Getúlio não poderia prescindir de uma política
para a classe trabalhadora, configurada no populismo.
No terreno ideológico, se Salazar não se afinava com o fascismo, adotava
alguns de seus modelos. Um bom exemplo é o Estatuto do Trabalho Nacional, de
setembro de 1933, inspirado na Carta del Lavoro de Mussolini, de 1927. Quase dez
anos depois, a Consolidação das Leis do Trabalho, baixada no Brasil no curso
do Estado Novo, teve a mesma inspiração.
O Estado devia ser o centro da organização política e seu papel seria de
“promover, harmonizar e fiscalizar todas as atividades nacionais”, tendo como
órgão principal o Poder Executivo. Esse Estado forte deveria intervir em todas
as atividades e, decisivamente, no campo econômico, em face da crise de que
padecia o capitalismo. Ao mesmo tempo, era necessário reconciliar a nação e o
Estado, de uma forma nunca conseguida desde o despontar do liberalismo em
Portugal, em 1820. A reconciliação teria de ser alcançada pela educação, por um
lado, e, por outro, pelo advento de uma nova Constituição, capaz de reavivar o
país, ao refletir realisticamente seus corpos sociais ativos: a família, a
paróquia, o município e a corporação econômica. Nessa reconciliação, o papel
dominante caberia ao Estado, ao qual a nação deveria se integrar.
Entretanto, Salazar insistia que havia limites morais e espirituais à ação
estatal, em áreas que, para além da política, pertenciam à consciência
individual. Essas áreas privadas serviam como baluarte teórico e prático contra
a extrema-direita, e para manter os católicos em papel relevante. Nesse passo,
Salazar se distinguia de seus mestres da Action Française, ao rejeitar a noção
maurrasiana de
la politique d’abord – a política antes de tudo.
ma expressão muito utilizada na época
definiu o regime salazarista como uma “ditadura constitucional”. A expressão
tinha razão de ser. Em abril de 1933, uma nova Constituição, aprovada por
plebiscito, transformou o Estado numa República unitária e corporativa. A
Constituição previa a eleição de um presidente pelo voto direto, cabendo a ele
nomear um conselho de ministros e o seu presidente. Outros órgãos institucionais
eram a Assembleia Nacional e a Câmara Corporativa.
Teoricamente, a maior soma de poderes cabia ao presidente, mas foi o
primeiro-ministro – Salazar, como é óbvio – quem concentrou as decisões
governamentais. A Assembleia Nacional e a Câmara Corporativa tinham um papel
secundário. Ambas se reuniam apenas três meses por ano e esta última
desempenhava papel opinativo. A Assembleia Nacional era uma caricatura de um
Parlamento, mesmo porque Salazar – tal como outros ditadores de seu tempo –
considerava o Parlamento uma instituição caduca, expressão de um liberalismo
moribundo e palco para disputas estéreis dos partidos políticos. O
corporativismo era parte de um programa político católico que Salazar sempre
defendera. Na prática, porém, as organizações corporativas tiveram como funções
prioritárias exercer uma forma de controle social, desenvolver o capitalismo
nacional e reforçar o papel do Estado.
consolidação de Salazar no poder foi
rápida. A oposição formava um arco que ia dos republicanos conservadores,
empurrados para fora da ditadura militar e do Estado Novo, ao Partido Comunista
Português, o PCP, liderado por Álvaro Cunhal. Até o fim da Segunda Guerra
Mundial, os opositores tiveram escassa repercussão. O desinteresse pela
política, a censura aos meios de comunicação, a repressão dos dissidentes,
muitos deles sujeitos a prisões e torturas, foram elementos inibidores de uma
oposição eficaz.
Em um país de reduzidas dimensões, a polícia política – a famosa Polícia
Internacional e de Defesa do Estado, a Pide – estava por toda parte. Dois
estabelecimentos penais eram especialmente temidos: Peniche, uma fortaleza no
alto de um penedo, situado na ponta mais ocidental de Portugal, e o campo de
concentração do Tarrafal, na ilha de Santiago em Cabo Verde, onde morreram
dezenas de prisioneiros políticos. No verão de 1937, um atentado a bomba –
façanha de uma célula anarquista – serviu para “justificar” a repressão e para
demonstrações de apoio a Salazar.
Em 1945, na onda de democratização que se seguiu ao conflito mundial (como o
fim do Estado Novo no Brasil), Salazar anunciou eleições legislativas para
novembro daquele ano, abertas a todos quantos quisessem desafiar a lista da
União Nacional. Meses antes, chegara a dizer que “as eleições seriam livres como
as da livre Inglaterra”. Republicanos e comunistas uniram-se no Movimento de
Unidade Democrática, mas a Pide passou a acossar e prender os membros do
movimento, que acabou se retirando do pleito.
Uma variante desse cenário ocorreu nas eleições para presidente da República,
de fevereiro de 1949. A oposição, na qual o PCP tinha grande influência, lançou
o nome de Norton de Mattos, um general de tendências moderadas. Comícios
entusiásticos mostraram que o antissalazarismo ganhava a opinião pública. Mas,
ainda uma vez, a acossada oposição se complicou e Norton de Matos retirou a
candidatura.
Tornou-se cada vez mais claro que as eleições, mesmo em condições anormais,
tinham-se convertido em um problema para o salazarismo. No pleito de 1958, o
país foi tomado por uma febre eleitoral com a candidatura de outro general,
Humberto Delgado, salazarista histórico que passara para a oposição. Delgado
manteve sua candidatura até o fim, e só a fraude eleitoral permitiu a vitória do
almirante Américo Tomás.
A vida do general Delgado e de sua secretária brasileira, Arajaryr Campos,
terminou de forma trágica, em fevereiro de 1965, quando ambos foram assassinados
em território espanhol, ao tentar cruzar a fronteira para Portugal. As mortes,
perpetradas por agentes da Pide com a autorização de Salazar, tiveram
repercussão internacional e quebraram o prestígio do “manso ditador”. O
ex-presidente Jânio Quadros enviou um telegrama a Salazar, insistindo numa
investigação completa do caso pelas Nações Unidas.
spetacular foi a façanha do capitão
Henrique Galvão, que em janeiro de 1961 fugiu da prisão em Portugal e, à frente
de um grupo rebelde de nome quixotesco, o Diretório Revolucionário Ibérico de
Libertação, apresou no Caribe um navio de passageiros – o
Santa Maria.
Rumando para o sul, Galvão enviou uma saudação ao povo brasileiro, à imprensa e
ao recém-eleito presidente brasileiro, Jânio Quadros. Ao que tudo indica, Galvão
esperou a posse de Jânio para desembarcar no Recife, pois JK, seu antecessor,
tinha boas relações com a ditadura portuguesa. O “homem da vassoura” enviou a
Galvão uma mensagem de boas-vindas e lhe concedeu asilo político. Ele nunca mais
voltaria a Portugal e, anos mais tarde, morreria no Brasil.
o plano das relações exteriores,
Portugal mantinha tradicionalmente laços estreitos com a Inglaterra, numa
posição de inferioridade. Apesar da oposição das correntes germanófilas, o país
entrou na Primeira Guerra Mundial ao lado dos Aliados e enviou um contingente
militar para lutar nos campos da França. A implantação da ditadura salazarista
não impediu a continuidade das boas relações com a Inglaterra, mas esta nem
sempre apoiou as decisões do governo português. Salazar suscitou severas
críticas dos ingleses, por exemplo, quando, de forma dissimulada mas
significativa, ele apoiou o general Franco durante a Guerra Civil Espanhola.
Ao eclodir a Segunda Guerra Mundial, porém, a neutralidade de Portugal foi
apoiada sem ressalvas pela Inglaterra. Salazar manteve essa postura, mesmo
quando a queda da França parecia prenunciar a vitória do nazifascismo, e
procurou influenciar o general Franco para que a Espanha também se mantivesse
neutra. Mas em 1941, quando Hitler invadiu a União Soviética, Franco se colocou
abertamente do lado alemão, enviando um contingente militar – a Divisão Azul –
para lutar, ou melhor, para ser destroçado, na Frente Oriental.
Salazar nunca se identificou com o regime nazista, embora agentes da
Alemanha, como de outros países, circulassem em Portugal sem serem incomodados.
Numa carta enviada a um de seus confidentes mais próximos, em setembro de 1941,
ele afirmou: “Considero uma desgraça para a Europa que (...) o nazismo se
imponha por toda a parte com a sua violência e rigidez de alguns de seus
princípios. Para os que têm da Civilização uma noção moral, será um franco
retrocesso.”
Salazar não via os Estados Unidos com os mesmos bons olhos com que via a
Inglaterra.
Os americanos – segundo ele – eram estranhos aos princípios
europeus.
E representavam um capitalismo sem freios, com pretensões hegemônicas.
Alguém perguntaria: que importava, afinal de contas, para os Estados Unidos, a
postura do nanico Portugal? A resposta pode ser sintetizada na importância
estratégica do arquipélago dos Açores. Em julho de 1941, o presidente Roosevelt
enviou uma carta a Salazar, afirmando que a utilização do arquipélago, e de
outras possessões portuguesas, nada tinha a ver com uma ocupação. Para o
propósito de proteger os Açores, Roosevelt dizia ter todo o gosto em incluir
forças brasileiras, mas não se chegou a tanto. Depois de muitas pressões e
longos entendimentos, Portugal autorizou a utilização dos Açores, primeiro pelos
britânicos e depois, com relutância, pelos americanos.
No pós-guerra, a insistência de Salazar na manutenção das colônias da África
a qualquer preço acelerou a desagregação do Império português. Portugal invocava
a ameaça da União Soviética no continente africano. Dizia que não havia racismo,
e sim harmonia de raças nas colônias portuguesas. E lembrava o exemplo maior do
Brasil – uma nação luso-tropical cuja história passava pelo papel desempenhado
por Portugal. O defensor intelectual dessa ideologia foi Gilberto Freyre,
particularmente no livro
O Mundo que o Português Criou. Embora Salazar
e seus acólitos tivessem horror da importância que ele atribuía à herança
africana em Portugal, deixaram o aspecto de lado para utilizar as ideias de
Gilberto Freyre, um intelectual de inegável prestígio. Alguns livros do
sociólogo brasileiro foram publicados em Portugal e ele visitou o país várias
vezes, a convite do governo português.
As colônias portuguesas na Ásia foram caindo, uma a uma: Timor, Goa, Macau.
Mas Salazar não podia admitir o abandono das “províncias ultramarinas” da
África, cada vez mais convencido de que a independência delas levaria ao domínio
da União Soviética ou ao caos generalizado. Os movimentos de independência
estendiam-se da Guiné-Bissau e Cabo Verde a Angola e Moçambique. Em busca de uma
política integradora e assimilacionista, o governo tentou sem êxito a reforma –
uma espécie de luso-tropicalismo em forma legislativa, na feliz expressão de
Ribeiro de Meneses. Na verdade, a prolongada Guerra da Angola, cada vez mais
impopular em Portugal e na África, a cujo final Salazar não chegou a assistir,
foi um fator dos mais importantesna queda da ditadura.
alazar não teve a morte violenta de
Mussolini e de Hitler. Como o general Franco, morreu na cama, de morte natural,
em julho de 1970. Meses antes, quando sofrera um acidente cardiovascular, fora
substituído no poder, sem seu conhecimento, por Marcelo Caetano, atitude que lhe
causou profunda amargura. Caetano tentou inutilmente reformar o regime para
garantir sua sobrevivência. A Revolução dos Cravos poria fim à ditadura em 1974,
por iniciativa dos quadros médios do Exército, acolhidos pela população, num
clima de forte emoção. O deus de Salazar poupou-o desse espetáculo de desordem,
como certamente ele o denominaria.
Passadas muitas décadas, a Europa Ocidental de hoje é muito diversa do que
foi dos anos 30 até meados da década seguinte. A era das ditaduras teve fim, a
Alemanha e a França – inimigas mortais em três guerras – tornaram-se nações
amigas, o comunismo deixou de ser um fantasma perturbador, o sonho da União
Europeia converteu-se em realidade.
Não obstante, nos dias de hoje, a União Europeia atravessa ventos e
tempestades, e os temas econômicos e financeiros – déficits orçamentários,
irresponsabilidade fiscal – entraram na ordem do dia. Tudo isso soaria familiar
aos ouvidos do professor Salazar e ele talvez pensasse que poderia retornar do
“assento etéreo” a este mundo, como homem providencial. Nesse caso, alguém
precisaria dizer-lhe que os tempos são outros, pois estamos em busca de líderes,
aliás muito escassos, e não de homens providenciais.
14 de abril de 2012