"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sábado, 14 de abril de 2012

MARTA FICA DE COSTAS PARA HADDAD E LULA TEM ACESSO DE TOSSE

Marta fica de costas para Haddad e Lula tem acesso de tosse.
Mesmo que a senadora Marta Suplicy e o ex-ministro da Educação e pré-candidato do Partido dos Trabalhadores (PT) à prefeitura de São Paulo, Fernando Haddad, tenham adotado um tom amistoso em evento na manhã deste sábado, eles mal se falaram e não ficaram lado a lado no palanque durante a inauguração do primeiro Centro Educacional Unificado (CEU) de São Bernardo do Campo. Na maior parte do tempo, Marta ficou de costas para o ex-ministro. Lula discursou durante sete minutos e elogiou mais Dilma do que Haddad: "Ela vai provar uma coisa que eu acreditava: que pra governar, a gente tem que colocar o coração na frente. A gente não tem que ter muita sabedoria apenas teorica, tem que ter a sabedoria de uma mãe: cuidar de quem precisa ser cuidado, que é a gente mais pobre desse país." Nesse momento, o ex-presidente tossiu, precisou tomar água e encerrar a fala. Demonstrando cansaço, enxugou o rosto e prometeu que "no próximo [discurso] eu estarei muito melhor, para falar muito mais coisas."
 
14 de abril de 2012
coroneLeaks
 
NOTA AO PÉ DO TEXTO
 
Será possível, céus! A mesma baboseira de sempre! Mamãe vai tomar conta dos pobres... Governar tem que ser com o coração... É uma lástima!
O palanqueiro não tem realmente nenhum apreço pela inteligência desse povo! Ainda bem que o tempo da discurseira agora não pode se estender muito!
m.americo

ASSESSOR DE CACHOEIRA AVISA QUE ELE VAI ABRIR AS COMPORTAS, DENUNCIANDO MEIO MUNDO


O jornalista Mino Pedrosa, que foi assessor de Carlos Cachoeira e distribuiu a fita de Waldomiro Diniz, manda recado por meio de um blog: diz que, no calor da cela em Mossoró, Cachoeira pensa em contar tudo. O primeiro nome citado foi o do deputado Miro Teixeira.
Ele ameaça o empreiteiro Fernando Cavendish, íntimo de Sergio Cabral, e até arrecadadores da campanha de Dilma.
Segundo o site 247, Mino Pedrosa é um dos jornalistas mais polêmicos de Brasília.
Há quem ainda o considere repórter investigativo, outros o tratam como lobista e há ainda aquelas que usam qualificações impublicáveis.

Em seu currículo, consta um dos maiores furos de reportagem da história da imprensa brasileira. Foi ele quem, em 1992, revelou a história do motorista Eriberto França, que selou o impeachment do ex-presidente Fernando Collor. É da sua lavra também a revelação de um escândalo de grampos clandestinos, que abateu Antônio Carlos Magalhães.

Em 2004, Mino estava afastado das redações. Era assessor do bicheiro Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira. Foi ele quem fez circular entre algumas redações a fita em que Waldomiro Diniz, ex-assessor da Casa Civil, pede propina ao bicheiro, no primeiro escândalo do governo Lula. Mino e Cachoeira são amigos. Mais: são íntimos.

E foi nesta condição que o jornalista escreveu um texto no seu blog Quidnovi, que manda recados diversos. Aponta para uma suposta relação entre o bicheiro e o deputado Miro Teixeira (PDT/RJ), ex-ministro das Comunicações do governo Lula, e avisa que o contraventor está uma pilha de nervos. Pronto para abrir as comportas do seu mar de lama. Até arrecadadores da campanha presidencial de Dilma Rousseff teriam se banhado em sua cachoeira.
No cenário pintado por Cachoeira, Demóstenes não passa de uma piaba, ou melhor, um peixe pequeno, que o Ministério Público tenta sevar com denúncias inconsistentes para não ser obrigado a pescar os peixes grandes do PT e da base aliada do Governo.

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GRANDES NOMES ENVOLVIDOS?

Enquanto isso, em Mossoró, num calor de 43 graus, Carlinhos arde dentro da cela e prepara seu próximo torpedo em direção ao Planalto. São interlocutores das campanhas presidenciais do PT de Lula e Dilma, que receberam doações de Caixa 2 de Carlinhos, que garante ter registrado tudo.
Nos corredores do Ministério Público Federal se ouve falar de grandes nomes da política nacional envolvidos na contravenção. Um desses, seria o deputado carioca Miro Teixeira, ministro das Comunicações no Governo Lula e ex- PP, ex-PMDB, ex- PDT, ex- PPS, ex-PT e desde 2005 novamente PDT, hoje na base aliada do Governo Dilma. Essa história acontece exatamente no momento em que a presidente olha para Miro com olhos de promessa de um novo ministério. A depender do PDT.

Com a derrota do habeas corpus impetrado pelos advogados de Carlos Cachoeira, mas já com texto de Marcio Thomaz Bastos, o jurista achou necessário assumir a defesa do contraventor. Afinal, o PT não quer que o texto do MP seja repetido no segundo HC impetrado hoje pelo ex-ministro da Justiça.
Nas palavras do MP, “Ao contrário do que afirma a defesa, Carlinhos Cachoeira não ostenta condições favoráveis, seja porque não demonstrou possuir trabalho lícito ou porque não possui bons antecedentes criminais. Uma rápida consulta na internet permite constatar a existência de pelo menos três ações penais em três diferentes estados da Federação contra o acusado”.

Os fragmentos da Operação Monte Carlo atingem ainda várias pessoas influentes de Brasília e outros Estados. Estão sob segredo no MPF os nomes dos políticos que não interessa ao Planalto vazar para a imprensa.Cachoeira tem recebido visita da esposa, orientada por Márcio Thomaz Bastos, a convencê-lo a não detonar o arsenal contra tudo e contra todos.

Andressa, temendo que o marido não consiga o habeas corpus, conforme o jurista lhe disse, batalha para Carlinhos segurar seu arsenal de denúncias. O difícil é convencer o contraventor a mudar o alvo tendo o calor e a raiva como aliados na cela 17 do presídio em Mossoró.”

(Matéria enviada pelo comentarista Hildeberto Aleluia)

14 de abril de 2012

SITE CONSULTOR JURÍDICO CONFIRMA DENÚNCIA DA TRIBUNA SOBRE OS R$ 700 MILHÕES PAGOS ILEGALMENTE EM SÃO PAULO

Reportagem de Marília Scriboni no site Consultor Jurídico, especializado em matérias da Justiça, mostra que, como último recurso para dar continuidade ao caso do excesso de juros no precatório pago pela área onde hoje fica o Parque Villa-Lobos, na zona oeste da cidade de São Paulo, o jornalista e ex-deputado Afanasio Jazadji entrou com uma representação no Órgão Especial do Tribunal de Justiça, no dia 2 de abril. Pediu a instauração de um procedimento criminal para investigar possível lesão ao erário estadual.

Como noticiou a revista Consultor Jurídico, a Ação Popular que tratava do assunto, também de autoria do jornalista, foi extinta pela juíza Alexandra Fuchs de Araújo, da 6ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, em novembro de 2011. Ela baseou a decisão no artigo 267, inciso VI, do Código de Processo Civil, que determina o fim do processo, sem resolução do mérito, “quando não concorrer qualquer das condições da ação, como a possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o interesse processual”.
O principal argumento da representação entregue ao Órgão Especial é de que, no último 2 de fevereiro, a juíza Paula Micheletto Cometti determinou a remessa dos autos ao Setor de Contadoria do TJ-SP, com a finalidade de apurar se há valor depositado a mais pela Fazenda do Estado. O laudo, de 23 de março, apontou o pagamento indevido de R$ 720 milhões.

A ação tinha no polo passivo Elival da Silva Ramos, atual procurador-geral, e Marcos Fábio de Oliveira Nusdeo, antigo procurador-geral. O papel da Procuradoria-Geral de São Paulo entra na história, afirma o jornalista, com a chegada da Emenda Constitucional 30, de 2000, que permitiu que Geraldo Alckmin desse preferência à quitação de precatórios envolvendo processos de desapropriação em detrimento dos alimentares. “Como a Procuradoria pagou as seis parcelas já discriminadas ainda dentro de cada exercício, não poderia fazer incidir sobre as mesmas juros moratórios”, alegou Afanasio Jazadji.

No entanto, de acordo com a julgadora, ao extinguir a ação pela falta de legitimidade das partes, não consta que os dois procuradores “tenham assinado qualquer parecer ou determinado qualquer pagamento deste precatório em específico, de forma diferente daquela realizada para os demais precatórios [...] O pagamento deste precatório obedeceu ao mesmo critério de todo e qualquer precatório pago pelo Estado”.

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MOTIVAÇÃO POLÍTICA

Em conversa com a ConJur, o atual procurador-geral do estado, Elival da Silva Ramos, declarou que a acusação de Afanasio Jazadji tem interesse “nitidamente política”. “Qualquer pessoa de boa-fé vê que isso é absurdo”, diz. “Não dá pra condenar alguém retroativamente. A PGE só segiu a jurisprudência.”
Segundo o procurador-geral, a nona parcela está bloqueada em juízo, porque havia crédito para o Estado. São R$ 300 milhões bloqueados. Como ele explica, os autores da ação entraram com recurso contra sua extinção, mas não houve recurso contra o reconhecimento, pela juíza, de que os procuradores-gerais não são parte legítima.

Há ainda, conta, uma representação contra a PGE-SP no MP, que tramita na Promotoria do Patrimônio Público, com a acusação de improbidade administrativa. Outra representação está no Tribunal de Contas do Estado, mas não faz menção à PGE, apenas descreve os fatos.
Por fim, há um inquérito criminal no Órgão Especial. Como o procurador-geral tem foro de prerrogativa, cabe ao procurador-geral de Justiça analisar inquéritos que investiguem seus atos.
O Órgão Especial, explica Silva Ramos, tem duas opções: ou arquivar o caso de plano ou pedir o reexame pelo Colégio de Procuradores de Justiça.

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NOVE PARCELAS

Apesar da demora habitual no pagamento de precatórios, os empresários e primos Antonio João Abdalla Filho e José João Abdalla Filho, que eram proprietários do terreno do parque, receberam R$ 228 milhões a título de juros pela venda da área do Parque Villa Lobos, que antes comportava um lixão. Residiria aí a irregularidade do precatório, afirma o jornalista.

A área do parque tem 600 mil m2 e custou aos cofres públicos R$ 2,5 bilhões. O local, vizinho à marginal Pinheiros, foi desapropriado em 1988 pelo então governador do estado Orestes Quércia. Para o autor da ação, o problema estaria nos pagamentos efetuados entre o quarto e nono anos, que coincidem com as gestões de José Serra e de Geraldo Alckmin.

Afanasio Jazadji argumenta que o dano ocorreu porque, nas parcelas pagas entre 2004 e 2010, teriam sido computados juros moratórios indevidos. Tais débitos já teriam sido quitados dentro do exercício financeiro do vencimento, antes de 31 de dezembro de cada ano.

Em parecer dado pelo Ministério Público sobre o caso, foi dito que o critério adotado para o cálculo do valor das prestações não observou a exclusão dos juros moratórios e compensatórios. E mais: “Nem de longe é caso de se extinguir o processo sem resolução do mérito”, anotou o promotor Marcelo Duarte Daneluzzi, da 3ª Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social estadual. Como lembra o MP, o critério que deve prevalecer no caso é aquele que afasta a incidência desses juros.

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CONTAGEM DOS JUROS

Para a juíza que extinguiu o processo, “em nenhum local da Emenda 30, de 2000, foi fixado que os juros moratórios não incidirão desde a expedição do precatório, mas apenas do atraso no pagamento de cada parcela”.

E mais: ela entendeu que o não pagamento de juros compensatórios se mostrou como uma medida de cautela, “pois naquele momento o Poder Judiciário entendeu, de forma unânime, que os juros estabelecidos nas decisões transitadas em julgado deveriam ser pagos, em todas as parcelas”.
E, apontou, mesmo que os juros tenham sido pagos a maior, ainda há parcela a ser paga.

Não é o que afirma Afanasio Jazadji no documento encaminhado ao Órgão Especial do TJ paulista. Segundo ele, que é representado pelo advogado Luiz Nogueira, “pacificou-se no Pleno do STF o entendimento de que, não havendo atraso na satisfação do débito, não incidem juros moratórios entre a data da expedição e a data do efetivo pagamento do precatório nos termos da ementa a seguir transcrita”.

“Por erro, distração ou inexplicável cochilo, a Procuradoria-Geral do Estado, ao calcular a quarta, quinta, sexta, sétima, oitava e nona parcelas do Precatório 0690/1992-B (da S.A. Central de Imóveis), incluiu a favor dos titulares desse crédito bilionário juros moratórios indevidos, vez que calculou e depositou espontânea e administrativamente as citadas parcelas anuais sem nenhum dia de atraso, sem mora alguma”, diz a representação.

Em uma das parcelas, aponta, teriam sido pagos 391 dias de multa, quando o certo seriam 30. No caso, o prejuízo foi de R$ 48 milhões. Segundo o advogado, o escritório que assessorou os irmãos na venda do terreno levou “a bagatela de cerca de R$ 290 milhões, a título de honorários advocatícios, com o silêncio e concordância da Fazenda do Estado”.

“A PGE contrariou a Emenda Constitucional 30, de setembro de 2000, pareceres do Ministério Público Estadual e diretrizes observadas pelo Departamento de Precatórios do próprio Tribunal de Justiça, que, por certo, não foi consultado pela Fazenda do Estado acerca dessa estranha e ilegal liberalidade”, acusa.

A representação insinua, ainda, que a juíza foi parcial em sua decisão de extinguir o processo. Diz o seguinte: “a juíza Alexandra Fuchs de Araújo, que, coincidentemente, atuou em diversas oportunidades no Setor de Execuções Contra a Fazenda Pública, entre 2006 e 2010, ocasião em que também liberou algumas das 10 parcelas dos precatórios discutidos neste procedimento, por certo, não atentando para as limitações que a Emenda 30/2000 impôs à incidência de juros moratórios quando do pagamento de parcelas de precatórios”.
Processo: 006827-82.2001.26.0053
Inquérito Civil: 542, de 2011
14 de abril de 2012

CHARGE DO DUKE


AGRAVA-SE A CRISE NA MOBILIDADE URBANA

Sem políticas públicas que assegurem opções eficientes de transporte coletivo urbano e com o aumento nas vendas de carros devido à elevação de poder aquisitivo dos brasileiros, o país enfrenta uma grave crise de mobilidade, afirmaram os especialistas ouvidos, recentemente, em audiência pública na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado.
A esperança é a Lei da Mobilidade Urbana (Lei 12.587/2012) que entrou em vigor este mês, pode acarretar soluções satisfatórias, pois dispõe sobre a “prioridade dos modos de transportes não motorizados sobre os motorizados e dos serviços de transporte público coletivo sobre o transporte individual motorizado”.

O presidente da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos, Otávio Vieira informou que, “em 1977, sete em cada dez brasileiros se deslocavam por meio de transporte público. Enquanto que, em 2009, já metade da população se deslocava por transporte individual. Atualmente, talvez seja mais de 60% e não sabemos a quanto isso chegará em 2020. Creio que até lá as cidades estarão efetivamente paradas, se alguma coisa não for feita para melhorar essa questão”.
Também Nazareno Stanislau Affonso, coordenador do Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte Público de Qualidade, apontou a falta de prioridade para o transporte público e os incentivos à aquisição de veículos como as principais causas dos congestionamentos nos municípios brasileiros.

“O investimento para viabilizar uso do automóvel foi gigantesco, mas o uso do automóvel é um modelo falido. Os que têm carro vão ver que, se levavam 20 minutos para chegar ao trabalho, vão levar 40 ou 50 minutos”.
No mesmo sentido, Ernesto Galindo, do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea), apontou limitações do transporte individual para equacionar problemas de mobilidade urbana. “Não se trata de restringir a compra ou produção de veículos, mas o transporte individual não consegue atingir eficiência de uso de espaço público, uso energético e redução de acidentes, como o transporte público consegue”.

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INTEGRAÇÃO

No debate, os especialistas defenderam a combinação de opções de transporte, como sistemas rápidos de ônibus com linhas de metrô, vias para bicicleta e adequação de calçadas para pedestres.
Para Maria Rosa Abreu, da Universidade de Brasília (UnB), é preciso implementar, nas grandes cidades, a integração física dos modais de transporte coletivo, interligando ciclovias, aquavias e ônibus locais, com estações de metro e de trens regionais. Ela destacou ainda a importância da integração tarifária, com cartões de uso semanal, mensal ou mesmo anual, adquiridos com descontos.

“Nosso país está na contramão, face aos incentivos à indústria de veículos, sem a estruturação do transporte público urbano”.
Na discussão, o senador Cristovam Buarque (PDT-DF) acrescentou a educação às soluções de engenharia e tecnologia para os problemas de transporte. “Precisamos mudar a mentalidade sobre a forma de pensar o progresso. Progresso não se mede pelo maior número de carros, mas pelo menor número de horas que se perde no trânsito. Também é precioso educar os governantes, para que eles façam escolhas de modais de transporte buscando o bem-estar da população”.

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LEI DE MOBILIDADE URBANA
Em sua apresentação, Nazareno Stanislau Affonso, coordenador do Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte Público de Qualidade, destacou a Lei da Mobilidade Urbana (Lei 12.587/2012), em vigor a partir deste mês, a qual dispõe sobre a “prioridade dos modos de transportes não motorizados sobre os motorizados e dos serviços de transporte público coletivo sobre o transporte individual motorizado”.

Nazareno explica que esta legislação determina ainda “a integração entre os modos e serviços de transporte urbano e a mitigação dos custos ambientais, sociais e econômicos dos deslocamentos de pessoas e cargas na cidade”.
Com a nova política, as prefeituras deverão definir regras do transporte urbano local e o governo federal poderá aportar recursos para iniciativas que atendam as diretrizes da Lei de Mobilidade. Cidades com mais de 20 mil habitantes deverão ter plano diretor e plano de mobilidade urbana, construído pela sociedade civil organizada, através de órgãos colegiados.

Paulo Peres
14 de abril de 2012

CHARGE DO SPONHOLZ


14 de abril de 2012

PETRÓPOLIS, 1942: PACTO SUICIDA OU ATENTADO NAZISTA?


capa
“Minha vida está destruída há anos, e eu me sinto feliz por poder sair de um mundo que se tornou cruel e louco”. O trecho da carta a um amigo brasileiro é considerado há décadas uma evidência da decisão drástica pela morte voluntária de Stefan Zweig, que no 23 de fevereiro de 1942, ao lado de sua segunda mulher, Charlotte Elisabeth, teria tomado uma dose mortal de veneno em sua casa em Petrópolis.
A hipótese do duplo suicídio, motivado pela convicção de que a vitória do nazi-fasicsmo na Segunda Guerra era inevitável, conseqüência de sentimentos de tristeza diante das notícias sombrias que vinham da Europa, nunca foi seriamente contestada por nenhum pesquisador, nem mesmo pelos autores das três biografias do escritor austríacos publicadas no Brasil – Donald Prater, Dominique Bona e Alberto Dines (Morte no paraíso). Nunca, até agora. Pois no romance Lotte e Zweig (Leya, 128 pgs. R$39,90), Deonísio da Silva usa a narrativa ficcional como veículo para afirmar sua convicção de que que o casal foi vítima de um atentado de um comando nazista.
Nascido em Viena em 1881, Stefan Zweig escreveu dezenas de romances, peças teatrais, ensaios e biografias, chegando a ser um dos escritores mais famosos vendidos em todo o mundo, nos anos 30. Judeu, teve que fugir da Alemanha nazista, primeiro para os Estados Unidos, em seguida para o Brasil, onde se radicou em Petrópolis e escreveu Brasil – País do futuro e seu livro dr memórias, O mundo que eu vi.
Indícios não faltam de que, 70 anos depois, o episódio permanece, no mínimo, mal explicado. O casal foi encontrado morto, em sua casa na cidade serrana, logo após o carnaval de 1942. Não houve autópsia, a posição dos corpos foi modificada, e o pedido de acesso aos corpos por um rabino foi negado. A morte de Zweig foi comemorada nos círculos nazistas, e não eram incomum que assassinatos praticados por comandos nazistas fossem camuflados como suicídios. Nesta entrevista, Deonísio da Silva fala sobre o mistério que ainda cerca a dupla morte e sobre o desafio de escrever ficção com personagens reais.
- Fale sobre o desafio de escrever ficção com personagens reais. Quais são as dificuldades e limites? E quais são as vantagens?
Deonisio da SilvaDEONÍSIO DA SILVA: De algum modo, todos os personagens são reais, mas os inventados são muito mais, cada qual a seu modo, na dimensão em que os situamos. Gosto muito dos olhos das pessoas, que dizem mais do que sabemos delas. Persona em latim é máscara. Capitu é mais real do que qualquer mulher do século XIX! Os personagens de Shakespeare são mais reais do que os históricos, e alguns históricos somente persistem porque se tornaram ficcionais. Mas, claro, quando colocamos no texto um Estevão Ramos, tradução do nome alemão de Stefan Zweig, este último foi encontrado por tantas pessoas nas ruas do Rio, de Petrópolis, onde morava e onde morreu, acompanhado de Lotte, que o amava de verdade, uma mulher que tantos conheceram de fato, o desafio é não fazer bobagem, em primeiro lugar, em não fazer nada que contrarie em essência o que eles foram. E o que eles foram? Um casal de judeus que fugia do nazismo mundo afora e veio parar no Brasil. Mas sobre as vantagens não vejo nenhuma. Dá uma trabalheira danada reconstituir contextos e personagens.
- Seu romance sugere que a morte de Zweig e Lotte pode não ter sido um duplo suicídio, somo se acredita, mas assassinato por um comando nazista. Como nasceu essa tese, e quais são seus fundamentos?
DEONISIO: Um suicídio é sempre um homicídio, em geral as pessoas se esquecem disso. Portanto, é preciso um inquérito que esclareça, ainda que sem punição, muito embora alguns suicídios mereçam que sejam identificados e punidos os culpados, pois às vezes há culpados. O inquérito da morte dos Zweig foi uma farsa. O médico legista não era legista. A autópsia foi proibida por ninguém menos do que o presidente Getúlio Vargas, que veraneava em Petrópolis, como então era costume. Os judeus pediram os corpos para serem enterrados no Rio. Ora, os judeus não enterravam suicidas em seus cemitérios, por que queriam aqueles corpos? Acho que alguns rabinos, muito sagazes, viram algo estranho ali. Além do mais, era usual os nazistas organizarem execuções que parecessem suicídios e era frequente que ordenassem que as vítimas se suicidassem, como fizeram até mesmo com gente deles, como foi o caso do general Rommel, que recebeu ordem de Hitler de se suicidar, em troca de enterro digno e amparo aos familiares.
- É sabido que havia uma rede de espiões nazistas no Brasil, incluindo brasileiros. Mas quais seriam o sentido e a justificativa para o assassinato de Zweig pelos nazistas? Eram comuns ações desse tipo no Brasil?
DEONISIO: Escritor é bicho desconfiado. “O desconfiado Jeremias”, título de um dos capítulos leva um recado ao leitor. Aquele Jeremias tem muito do autor. E dei esse nome a ele porque o profeta Jeremias, cujo nome quer dizer “Javé revela”, encarregado pelo delegado, seu chefe, vê coisas que o chefe não vê. O chefe não lê nada, Jeremias está lendo Nada de novo no front quando recebe a tarefa. É à luz do que lê que ele desconfia de tudo. E vai compondo a sua versão a partir de bilhetes que a polícia ignora, da mudança da posição dos corpos, do roubo das joias de Lotte. Albert Speer, pouco antes de morrer, confessou a Alberto Dines, o melhor biógrafo de Stefan Zweig, que a morte de Zweig foi muito comemorada na Alemanha, inclusive no círculo íntimo do poder nazista. Se perseguiam e matavam daquele modo anônimos judeus, por que deixariam viver Stefan Zweig, que corria mundo afora escrevendo contra eles? Era muito comum exterminar inimigos no Brasil. E o governo Vargas ajudava a combatê-los aqui, como três décadas mais tarde também a ditadura militar ajudou as ditaduras do Cone Sul e foi por elas ajudada.
Stefan e Lotte
- Biografias de Zweig, como de Alberto Dines e Donald Prater, não cogitam essa hipótese. Eles estavam errados?
DEONISIO: Olha, o Alberto Dines é, além de um intelectual que admiro e respeito, um querido amigo. Tenho grande orgulho de contar com sua apresentação numa das abas. A biografia que ele faz do Zweig é fartamente documentada. Mas documentos são constituídos! Os militares que executaram Wladimir Heroz nos cáraceres de São Paulo também provaram que tinha sido suicídio. Depois foi comprovado que não foi, que foi uma execução. Mas digamos que a ditadura militar tivesse triunfado até hoje. É provável que tivesse prevalecido a versão deles. Comparo dois judeus executados em tempos diferentes para que o leitor seja um Jeremias e desconfie também. Desconfiados, chegaremos à verdade. Quer ver outros exemplos? Quem identificou Joseph Mengele, que morreu afogado na praia de Bertioga, no litoral de São Paulo? Eu acho que alguém o reconheceu e o matou. Mas Badan Palhares achou que o sujeito morreu lá numa boa, foi nadar, se afogou etc. Badan Palhares fez também os laudos (falsos ou ao menos controversos) de Paulo César Farias, de Suzana Marcolino, que foram amplamente contestados e por autoridades no assunto. Minha convicção: Zweig e Lotte foram executados. Pode até que tenham recebido ordens de se matar, mas dá no mesmo! Aquelas duas tragédias daquela noite de 22 de fevereiro de 1942 não tiveram testemunhas!
- Quando Zweig se mudou para o Brasil, em 1940, ainda não era clara a posição de Getúlio Vargas em relação à Segunda Guerra. Além disso, nas colônias alemãs no país havia focos de simpatia ao nazismo. Levando em conta que o Brasil vivia um regime com características fascistas, como o escritor lidava com a realidade do país e que relação tinha com outros imigrantes de língua alemã?
Zweig
DEONISIO: É verdade o que você diz, mas as coisas são ainda mais complexas. Fui casado mais de 30 anos com uma linda e intuitiva mulher de ascendência alemã, a poeta e professora Soeli Maria Schreiber, mãe de nossa única filha, que herdou a porção alemã de sua mãe, na inteligência como na intuição. Algunsde meus melhores amigos no mundo são austríacos ou alemães, como a austríaca Elfriede Prem, e além do mais sou catarinense, nasci, cresci e vivi entre descendentes de alemães. Morei no sul até os 32 anos, e te digo: poucos rejeitavam tanto o nazismo como os descendentes de imigrantes alemães. Eles entendiam mais profundamente o que se passava. Tinham informações confidenciais, obtidas de cartas e relatos de parentes. Poucos deles apoiavam aquelas brutalidades. Stefan Zweig era um pacifista, era até meio ingênuo, e o filme do Sylvio Back, Lost Zweig, mostra isso de forma muito original. Há uma cena em que Lourival Fontes, alto funcionário de Getúlio Vargas, mostra a Zweig que o livro dele, Brasil – País do Futuro, tivera sua edição paga pelo governo e estava encalhado. Aquilo deixa Zweig arrasado. Quanto à relação de Zweig com imigrantes alemães, ele tinha uma grandeza extraordinária, jamais olhou com preconceito alguém em razão de sua etnia ou cultura.
- Fale sobre a rotina do casal em Petrópolis, sua situação financeira, suas perspectivas de vida e sobre a relação que mantinham? O que mais te atraiu em Zweig e em Lotte, como personagens?
DEONISIO: Era uma vida triste. No começo, Zweig adorou a cidade, o bangalô, ele ganhava bem, não tinha dificuldade financeira alguma, e isso é meio caminho para evitar os principais problemas do cotidiano, sobretudo para quem quer escrever. Eles se amavam muito. Mas eu penso em detalhes em minha história de amor. E o beijo na boca, como fica? E aquela asma infernal que tanto maltratava a sua amada? E dormir em camas separadas nas noites frias de Petrópolis? Veja você que ela aproxima a sua cama da do marido para morrer abraçada a ele. Já que não vivia abraçada, que assim morresse, que tristeza! Os amores em geral nos fascinam. Os amores dramáticos fascinam um pouco mais. Os amores trágicos nos prendem do começo ao fim da história, ainda que saiba, como neste caso, o fim da história. Uma coisa bonita: eles recebiam os amigos, visitavam os amigos, amigos ilustres, como a escritora Gabriela Mistral, que depois ganharia o Prêmio Nobel de Literatura, e vivia em Petrópolis naqueles anos. Todo ano não celebramos a Semana Santa? Mas todos sabemos o fim. Judas se suicidará e Jesus, traído pelo amigo, morrerá na cruz. E alguém perde o espetáculo? O rito é o mesmo, seja celebrado pelo Papa ou pelo mais humilde pároco do mais remoto cafundó. Mas nunca do mesmo modo! Há sutis diferenciações em cada rito!
jornal da época
-As informações disponíveis sobre Lotte são relativamente escassas. Em que você baseou a construção da personagem?
DEONISIO: No poema Confissão, de Mário Quintana, mas, por um desses acasos, que têm suas leis, mas que entretanto nós as desconhecemos, quando o romance foi publicado, uma leitora querida, querendo me dar um presente, depois d eler o livro, me mandou esse poema, que achei de uma concidência extraordinária, mas sabemos que coincidências nã há. É tudo Maktub, tudo estava escrito e, como no jogo do bicho,, vale o escrito, ah, como vale. O poema do Mário Quintana é: “Que esta minha paz e este meu amado silêncio\ Não iludam a ninguém\ Não é a paz de uma cidade bombardeada e deserta\ Nem tampouco a paz compulsória dos cemitérios\ Acho-me relativamente feliz\ Porque nada de exterior me acontece…\ Mas, em mim, na minha alma,\ Pressinto que vou ter um terremoto!” Foi com esse poema que o olhar de Lotte tomou conta de mim. Naturalmente, tive que inventar muito, pois escrevi um romance, não um documento, fiz uma biografia, mas desautorizada.
- Suicidas são personagens recorrentes em seus romances. Existe alguma razão para isso?
DEONISIO: Sim. Meu tio caçula, irmão de meu pai, suicidou-se. Quando coroinha, o padre nos assustava com suicidas, que eram enterrados fora do cemitério, em lugar onde os outros pudessem passar sobre eles nos enterros dos mortos “normais”, isto é, daqueles que “aguardavam a ordem do Senhor para partirem”, cena qu epus no romance Teresa d ´Ávila. Judas, o traidor, se suicidava todo ano, na Semana Santa, aquilo mexia muito comigo. Os suicidas da literatura universal, que são muitos, tanto personagens quanto escritores, fora aqueles a quem faltou coragem, como Goethe, um suicida nato, que entretanto morreu velhinho. Outro dia, conversando com o psicanalista Jacob Goldberg, meu personagem no Lotte & Zweig (agora já posso dizer, ele me autorizou num jantar, bebendo vinho), ele me disse que atende no consultório suicidas que jamais se matam porque entre a intenção e o ato vai uma distância enorme! Vou te fazer uma confidência: escrevi uma cena que cortei do romance, entre tantas outras igualmente cortadas, o livro chegou a ter 400 páginas e ficou com cento e poucas, eu não gosto de chatear o leitor com descrições desnecessárias. Um suicida está morrendo, tomou um veneno infernal, uma pessoa misericordiosa lhe traz um copo d´água, o moribundo pergunta: é filtrada? Este achado genial não é meu, está numa crônica de Nelson Rodrigues, quando uma viúva finge extrema dor com a morte do marido e entre soluços hipócritas tem tempo de verificar a procedência da água.As pessoas querem viver, mesmo os suicidas, eles sempre querem viver, paradoxalmente a morte é uma tentativa desesperada de chamar a atenção para alguém que os ajude a viver! Por isso, o suicídio é um assassinato coletivo. Muitos se omitem, querendo ou não, diante da tragédia dos outros.
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PraterDinesBona

CONFISSÕES DE UM COMENTARISTA DA TRIBUNA SOBRE SUA EXPERIÊNCIA COMO TAXISTA

 

Aos 55 anos de idade e sem emprego, em razão da idade e peso avantajado (1,85m de altura e 184 kg), após ser propagandista/vendedor , supervisor e gerente de vendas por mais de trinta anos, não me restou alternativa que não fosse ir trabalhar de taxista.
Afinal, eu viajara o país inteiro durante muito tempo, portanto, dirigir eu sabia e muito bem, além de tratar as pessoas com educação e respeito, haja vista que o aprendizado com compradores de vários hospitais e clínicas me deu um conhecimento extraordinário para lidar com pessoas diferentes no seu ânimo.
Dirigir um táxi em uma capital como Porto Alegre trouxe-me experiências fantásticas de vida e no relacionamento com as pessoas em suas várias classes sociais, além de ter compartilhado com elas momentos de intimidade, quando me contavam no trajeto episódios de suas vidas particulares.
Ora, sempre gostei de escrever. Os laboratórios multinacionais que trabalhei me haviam ensinado a aceitar e gostar – sob pena de virar um inferno a minha profissão – de preencher relatórios, algo em torno de dez por dia! Assim, o táxi me trouxe um manancial de casos extraordinários que eu poderia selecioná-los e, quem sabe, um dia escrever um livro a respeito.
E eu concluí o Ensino Médio há apenas dois anos! Não sou formado em nada. Não tenho faculdade alguma. Sempre fui destemido e arrojado, porque eu tinha uma família para sustentar, mas eu gostava de ler, e a leitura me trouxe uma condição de falar bem, de me comunicar e, desta forma, exercer a profissão de vendedor com bons resultados.
Meus três filhos estão à disposição da sociedade, todos formados, inclusive a minha mulher, até com Pós-Graduação! Eu sou aquele que pertence à plebe ignara, à ratatulha, à patuléia.
Pois estas experiências de vida e de viagens eu as levei para dentro do táxi, que me proporcionaram estabelecer diálogos interessantes com a maioria dos passageiros que transportei por mais de 4 anos, a ponto de eu ter escrito um livro! Chamava-se “O Divã Móvel”.
O título do livro, em decorrência, deveu-se à cena de um paciente no divã de um psicanalista relatando seus problemas para ele, exatamente como a maioria dos passageiros faz com o motorista do táxi. É algo surpreendente, diante da intimidade instantânea que se estabelece. Algo como se essas duas pessoas que jamais se viram antes fossem íntimas e conhecidas de longa data.

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NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG

A trajetória de Bendl é um exemplo a todos nós, mostrando como se pode ir em frente e avançar sempre na vida, através da leitura, da educação e da cultura. Em anexo, ele enviou uma das crônicas autobiográficas do livro, intitulada “O Gordo”, que vamos postar amanhã.

Francisco Bendl
14 de abril de 2012

UM DITADOR FASCISTA?




Político sem brilho, destituído de carisma, Salazar comandou Portugal por mais de 35 anos. A sua condução de um pequeno país, em meio a uma Europa sacudida por abalos, é motivo para que a biografia de um homem insosso esteja longe de ser insossa
por Boris Fausto
 
 
Uma série de ditaduras marcou o mundo ocidental a partir dos anos 20 do século passado. Numa sequência que durou mais de vinte anos, Mussolini inaugurou o cortejo, ao tomar o poder na Itália, em 1922. Seguiram-se Salazar em Portugal (1932), Hitler na Alemanha (1933) e o general Franco na Espanha (1939). Atravessando o Atlântico, o Brasil teve a “glória” de figurar no cortejo, com o golpe de Getúlio Vargas, implantando o Estado Novo em novembro de 1937.
Os ditadores chegaram ao poder por diferentes vias, numa conjuntura em que a democracia liberal se enfraquecera e os regimes chamados fortes pareciam ser a fórmula regeneradora das nações doentes, corroídas pela desordem. Benito Mussolini se tornou Il Duce após um passeio, mitificado pelos seus seguidores: a marcha triunfal sobre Roma. António Salazar assumiu o poder sem abalos. Adolf Hitler foi chamado pelo presidente Hindenburg para salvar a Alemanha. Francisco Franco se destacou pela via sangrenta da guerra civil, da qual saiu vitorioso.

Nesse cortejo de ditadores da Europa Ocidental, segundo o grau de sinistra importância, Hitler ficou em primeiro lugar e Salazar na última posição, embora estivesse longe de ter exercido uma “ditadura branda”. Não por acaso, Hitler, Mussolini e Franco foram objeto de excelentes biografias. Salazar, pelo contrário, recebeu poucas atenções fora de Portugal. E é de um historiador português, Filipe Ribeiro de Meneses, uma qualificada e minuciosa biografia do ditador português. O livro foi escrito originalmente em inglês, sob o título de Salazar: A Political Biographye não há nessa edição o subtítulo publicitário “Biografia definitiva”, que consta da edição brasileira. Traduzido para o português de Portugal, o livro tem para nós, brasileiros, um sabor especial, pelo palavreado luso, que lhe dá um curioso gosto de autenticidade.

É de se perguntar: como é possível atravessar as mais de 800 páginas de uma biografia, cujo personagem central não é uma figura especialmente atraente? Se a minha receita servir, li o livro com grande interesse, prestando menos atenção em minúcias que me parecem secundárias para o leitor brasileiro.
António de Oliveira Salazar, ditador sem brilho, destituído de carisma, teve, entretanto, uma longa carreira política: comandou Portugal por 36 anos. Seus traços de personalidade, seu percurso na condução de um pequeno país, em meio a uma Europa sacudida por muitos abalos, o caráter sui generis do regime autoritário português são motivos suficientes para que a biografia de um homem insosso esteja longe de ser insossa.

alazar nasceu numa pequena cidade, com um desses nomes evocativos de uma aldeia lusa: Santa Comba Dão. Único filho homem da família, viveu a infância num período em que seu pai, vindo da pobreza, alcançara condição mediana. Ao chegar à adolescência, abriam-se para ele dois caminhos numa sociedade que gerava poucas oportunidades econômicas: o sacerdócio e a carreira militar. Salazar entrou para o seminário de Viseu e chegou a receber ordens menores, a caminho de tornar-se sacerdote. Apesar de os padres representarem forte influência na sua formação católica conservadora e no seu moralismo, não seguiu carreira eclesiástica. Seguiu um rumo mais prestigioso, ao ingressar na Universidade de Coimbra em 1910, onde se especializaria em economia e finanças.

Na vida privada, Salazar foi um solteirão, atendido por uma governanta cinco anos mais velha do que ele durante todo o tempo em que viveu em Lisboa. A natureza das relações entre Salazar e Maria de Jesus Caetano Freire, que o país conhecia como dona Maria, deu margem a muita especulação, mas nada de certo se sabe a respeito. Em compensação, dois casos amorosos de Salazar, depois de chegar ao governo, tornaram-se conhecidos. Ambos envolveram relações complicadas: um deles, com uma sobrinha casada; o outro, com Maria Emília Vieira, jovem de vida boêmia, em Paris e na noite lisboeta. Por mais que ele fosse discreto em seus affaires, não era o “monge castrado” como o chamou num panfleto seu opositor Cunha Leal, banido, aliás, para os Açores.
Os casos de Salazar estão bem longe do ideal de família e do papel da mulher que pregava em seus escritos. A família, segundo ele, era “a célula social cuja estabilidade e firmeza são condição essencial do progresso”. Quanto à mulher, o maior elogio que se poderia fazer-lhe resumia-se a um epitáfio romano: “Era honesta, dirigia a casa; fiava lã.”

o plano das ideias, além da raiz fundamental – o catolicismo conservador –, ele foi bastante influenciado pela Action Française, movimento de direita em que figuravam nomes como Charles Maurras, Maurice Barrès e Gustave Le Bon. Este último impressionou Salazar pela relativização das instituições políticas existentes e por não acreditar na capacidade intelectual da grande massa.

A aproximação de Salazar com a política se deu a partir de seus escritos em jornais católicos de província, que tinha em grande conta porque considerava “a imprensa católica do país a mais séria, a mais ponderada, a única decente e limpa, que pode entrar em todas as casas, sem ministrar à donzela incauta o veneno do romance perigoso e sem tecer, sob atraentes formas, a apologia dos criminosos”.
A República portuguesa nunca chegou a se estabilizar. Ficou dividida entre as correntes partidárias, as conspirações monárquicas, a anarquia administrativa e o desequilíbrio orçamentário – herança maldita dos tempos da monarquia, derrubada em 1910. Em dezembro de 1917, um golpe de Estado abriu caminho para a ditadura militar de Sidónio Pais. Figura extraordinária esse Sidónio Pais! Sempre rodeado de belas mulheres, charmoso, carismático, populista, era pessoalmente o oposto de Salazar, que então iniciava seus passos na carreira política. A “República nova” de Sidónio, porém, durou pouco porque o “presidente-rei” foi morto a tiros, num atentado nas ruas de Lisboa, em dezembro de 1918.

Portugal voltou a ser uma democracia cuja morte anunciada percorreu os anos caóticos de 1920 a 1926. Após uma tentativa fracassada, Salazar elegeu-se deputado por um pequeno partido, o Centro Católico Português. Mais tarde, manifestaria desprezo por essa breve experiência parlamentar. Em 1920, oito primeiros-ministros passaram de raspão pelo poder e os assassinatos políticos se tornaram moeda corrente. Por fim, em 1928, uma facção militar desfechou um golpe de Estado. A ditadura, como o regime democrático anterior, seria marcada pela instabilidade não só política, como também econômica e financeira.
Foi um quadro conhecido: gastos crescentes, arrecadação insuficiente, déficits orçamentários. Os ministros da área econômica consideravam essencial obter um empréstimo internacional que ancorasse as finanças portuguesas e permitisse ao país concentrar investimentos em áreas estratégicas. Mas, como lembra Ribeiro de Meneses, havia grande desconfiança de tudo o que fosse português, a ponto de ter-se inventado um verbo em francês – portugaliser –,sinônimo de virar tudo pelo avesso.

Nesse quadro, a estrela do professor Salazar subia. Adversário do empréstimo externo, ele propôs, num relatório amplamente divulgado, medidas fiscais duras para tirar Portugal de uma situação difícil. Entre outras vantagens, o relatório o aproximou dos grandes grupos econômicos, que não eram muitos. Não tardaria a ser chamado para assumir o Ministério das Finanças, como homem providencial. Na véspera de completar 39 anos, tomou posse do cargo, em 27 de abril de 1928. Cada vez mais prestigiado, em meio às divisões no Exército e na sociedade, Salazar foi nomeado presidente do Conselho de Ministros, em junho de 1932. Na realidade, o cargo de primeiro-ministro era mero formalismo. Salazar tornou-se um ditador civil que comandou Portugal quase até sua morte.
Em linhas gerais, as medidas drásticas tomadas por ele, seja como ministro das Finanças, seja como ditador, surtiram efeito. A obstinação pelo equilíbrio orçamentário assim como um choque fiscal, suportado sobretudo pelas camadas pobres, possibilitaram o reequilíbrio econômico de Portugal. O país atravessou relativamente bem a Grande Depressão mundial iniciada em 1929, mesmo sofrendo um corte significativo dos recursos enviados pelos emigrantes portugueses, provenientes principalmente do Brasil. Ribeiro de Meneses rebate a tese corrente de que o Estado Novo luso se caracterizasse pelo imobilismo. Ao contrário, o regime salazarista representaria uma tentativa frustrada, mas nem por isso menos séria, de permitir a Portugal se desenvolver e se modernizar, dentro da ordem e do respeito às hierarquias sociais.

Salazar tornou-se ditador de uma forma bem diversa de seus contemporâneos.Mussolini apelou para a mobilização popular e para o nacionalismo. Supostamente, a Itália, após a Primeira Guerra Mundial, fora desprezada por seus parceiros maiores, vencedores da guerra. Hitler, além de utilizar o terrível ingrediente da conspiração mundial judaico-comunista, inflamou parte da população alemã, batendo na tecla do nacionalismo, ao insistir no direito da Alemanha de ocupar um lugar central na Europa depois de ter sido humilhada pelo Tratado de Versalhes. Franco subiu ao poder como vitorioso em uma guerra civil desastrosa, para ele uma cruzada cristã contra ateus e comunistas.

em longe da retórica ribombante dos ditadores de fascio e suástica, Salazar notabilizou-se por ter salvado Portugal do caos, por uma via que se pode chamar de burocrática. Em torno dele, não se elaborou um culto da personalidade, apesar de seu prestígio na maioria da população. Tinha aversão a aparições públicas, recusava-se a participar de comícios e, para completar, era mau orador e não aceitava baixar o nível dos discursos ou ceder a slogans fáceis de lembrar.
Nem por isso deixou de zelar por sua imagem, a fim de obter ganhos políticos. Por iniciativa do Secretariado de Propaganda Nacional – órgão que lembra o Departamento de Imprensa e Propaganda, o DIP do Brasil do Estado Novo – e dele próprio, sempre se apresentou ao público como um homem humilde, destituído de ambições políticas, que se dispusera a salvar o país, sem medir sacrifícios pessoais. Não fora essa elevada missão, permaneceria na cátedra de Coimbra – um remanso diante das dificuldades de dirigir Portugal. Em maio de 1935, o Diário da Manhã, órgão do regime, lançou essa pérola ao comentar um discurso do ditador: “SALAZAR, ou o ANTIDEMAGOGO: Seria essa a sua melhor definição.
O demagogo dirige-se aos maus instintos... Salazar dirige-se às consciências bem formadas, aos impulsos de altruísmo e de equilíbrio, à pequena luz da Graça que dorme, latente, no íntimo de todas as criaturas.”
O salazarismo enfatizava a religiosidade, o nacionalismo, o anticomunismo, a crítica a um liberalismo que a modernidade do século XX não podia contemplar. O nacionalismo era “territorialmente satisfeito”, não se destacava pelo expansionismo, e sim como um instrumento para abafar a luta de classes. O importante era se dar bem com os vizinhos – a Espanha em particular – e manter o status quo nas “províncias de além-mar”.

O anticomunismo tornou-se virulento quando eclodiu a Guerra Civil Espanhola, em 1936. Para o regime, os republicanos e os “vermelhos” eram a mesma coisa, e ambos tinham pretensões negativas em relação a Portugal. Anos mais tarde, o perigo comunista viria a ser uma das justificativas de Salazar para tentar manter as colônias da África.
À primeira vista, pareceria que a ditadura salazarista era mais um regime fascista implantado na Europa Ocidental. A oposição portuguesa, na sua difícil luta política, tinha razões práticas para não olhar Portugal como um caso à parte. Mas, na verdade, apesar de seus namoros com o fascismo, o salazarismo distinguiu-se das correntes totalitárias tanto internas quanto externas.

omo nota Ribeiro de Meneses, no início do Estado Novo talvez a principal ameaça ao regime e a seu líder não viesse da esquerda, mas da extrema-direita, formada pelos integralistas e pelo Movimento Nacional-Sindicalista, de Rolão Preto. Os nacional-sindicalistas tendiam a transformar seu movimento, o dos “Camisas Azuis”, em um partido único. Insistiam em se constituir uma verdadeira representação corporativa da sociedade. Atacavam sem tréguas o comunismo e o capitalismo internacional. Batalhavam pela criação de um clima social propício ao surgimento de um líder carismático, condição que Salazar, sabidamente, não reunia.
Salazar preferiu seguir outro caminho – o da implantação de um regime autoritário, apoiado num setor do Exército. Se a garantia da ordem era cara aos militares, muitos oficiais, especialmente os fascistas e integralistas, faziam fortes restrições a Salazar, seja por sua atitude de transferir a cúpula do poder dos militares para os civis, seja pelos cortes orçamentários que impuseram restrições ao aparelhamento das Forças Armadas.

Como reafirmou Salazar nos últimos anos de vida, os limites do Exército eram claros: a instituição não poderia imiscuir-se nas lutas políticas, nem constituir um partido político, devendo cingir-se a suas tarefas específicas. Mais ainda, Salazar nunca pretendeu se apoiar na mobilização popular, como pretendiam as organizações fascistas, nem na força de um partido único. A União Nacional, lançada no início da ditadura, não teria as características de um partido único nos moldes do fascismo e, principalmente, do nazismo. Uma observação do historiador António Costa Pinto, citada no livro de Ribeiro de Meneses, lembrando que a União Nacional foi criada por decreto governamental, destaca com ironia: “A legislação sobre o partido foi passada do mesmo modo que a legislação sobre as ferrovias. A administração controlava-o, adormecia-o ou revitalizava-o de acordo com a situação de momento.”

alazar se referia a Portugal como país de “elites paupérrimas”. Mas ele pouco fez para ampliar essas elites. Na linguagem de hoje, o primeiro escalão do governo e o aparelho administrativo foram recrutados, essencialmente, nos meios universitários. Além do Exército, apesar das reticências, o regime contou com o apoio da Igreja Católica. Quem, como eu, viveu aqueles tempos associou ao salazarismo dois nomes: o do general Carmona, que foi presidente de Portugal, e o do cardeal-patriarca de Lisboa, Manuel Cerejeira.

O formato autoritário do regime deveu-se tanto às convicções de Salazar quanto a seu pragmatismo, na medida em que ele levava em conta as lentas mudanças da sociedade portuguesa. Comparando o Estado Novo salazarista com o implantado no Brasil, ao lado de muitas semelhanças há, pelo menos, uma diferença básica: no âmbito de uma sociedade em crescimento, na qual a industrialização ganhava ímpeto, Getúlio não poderia prescindir de uma política para a classe trabalhadora, configurada no populismo.
No terreno ideológico, se Salazar não se afinava com o fascismo, adotava alguns de seus modelos. Um bom exemplo é o Estatuto do Trabalho Nacional, de setembro de 1933, inspirado na Carta del Lavoro de Mussolini, de 1927. Quase dez anos depois, a Consolidação das Leis do Trabalho, baixada no Brasil no curso do Estado Novo, teve a mesma inspiração.

O Estado devia ser o centro da organização política e seu papel seria de “promover, harmonizar e fiscalizar todas as atividades nacionais”, tendo como órgão principal o Poder Executivo. Esse Estado forte deveria intervir em todas as atividades e, decisivamente, no campo econômico, em face da crise de que padecia o capitalismo. Ao mesmo tempo, era necessário reconciliar a nação e o Estado, de uma forma nunca conseguida desde o despontar do liberalismo em Portugal, em 1820. A reconciliação teria de ser alcançada pela educação, por um lado, e, por outro, pelo advento de uma nova Constituição, capaz de reavivar o país, ao refletir realisticamente seus corpos sociais ativos: a família, a paróquia, o município e a corporação econômica. Nessa reconciliação, o papel dominante caberia ao Estado, ao qual a nação deveria se integrar.

Entretanto, Salazar insistia que havia limites morais e espirituais à ação estatal, em áreas que, para além da política, pertenciam à consciência individual. Essas áreas privadas serviam como baluarte teórico e prático contra a extrema-direita, e para manter os católicos em papel relevante. Nesse passo, Salazar se distinguia de seus mestres da Action Française, ao rejeitar a noção maurrasiana de la politique d’abord – a política antes de tudo.

ma expressão muito utilizada na época definiu o regime salazarista como uma “ditadura constitucional”. A expressão tinha razão de ser. Em abril de 1933, uma nova Constituição, aprovada por plebiscito, transformou o Estado numa República unitária e corporativa. A Constituição previa a eleição de um presidente pelo voto direto, cabendo a ele nomear um conselho de ministros e o seu presidente. Outros órgãos institucionais eram a Assembleia Nacional e a Câmara Corporativa.

Teoricamente, a maior soma de poderes cabia ao presidente, mas foi o primeiro-ministro – Salazar, como é óbvio – quem concentrou as decisões governamentais. A Assembleia Nacional e a Câmara Corporativa tinham um papel secundário. Ambas se reuniam apenas três meses por ano e esta última desempenhava papel opinativo. A Assembleia Nacional era uma caricatura de um Parlamento, mesmo porque Salazar – tal como outros ditadores de seu tempo – considerava o Parlamento uma instituição caduca, expressão de um liberalismo moribundo e palco para disputas estéreis dos partidos políticos. O corporativismo era parte de um programa político católico que Salazar sempre defendera. Na prática, porém, as organizações corporativas tiveram como funções prioritárias exercer uma forma de controle social, desenvolver o capitalismo nacional e reforçar o papel do Estado.

consolidação de Salazar no poder foi rápida. A oposição formava um arco que ia dos republicanos conservadores, empurrados para fora da ditadura militar e do Estado Novo, ao Partido Comunista Português, o PCP, liderado por Álvaro Cunhal. Até o fim da Segunda Guerra Mundial, os opositores tiveram escassa repercussão. O desinteresse pela política, a censura aos meios de comunicação, a repressão dos dissidentes, muitos deles sujeitos a prisões e torturas, foram elementos inibidores de uma oposição eficaz.

Em um país de reduzidas dimensões, a polícia política – a famosa Polícia Internacional e de Defesa do Estado, a Pide – estava por toda parte. Dois estabelecimentos penais eram especialmente temidos: Peniche, uma fortaleza no alto de um penedo, situado na ponta mais ocidental de Portugal, e o campo de concentração do Tarrafal, na ilha de Santiago em Cabo Verde, onde morreram dezenas de prisioneiros políticos. No verão de 1937, um atentado a bomba – façanha de uma célula anarquista – serviu para “justificar” a repressão e para demonstrações de apoio a Salazar.
Em 1945, na onda de democratização que se seguiu ao conflito mundial (como o fim do Estado Novo no Brasil), Salazar anunciou eleições legislativas para novembro daquele ano, abertas a todos quantos quisessem desafiar a lista da União Nacional. Meses antes, chegara a dizer que “as eleições seriam livres como as da livre Inglaterra”. Republicanos e comunistas uniram-se no Movimento de Unidade Democrática, mas a Pide passou a acossar e prender os membros do movimento, que acabou se retirando do pleito.

Uma variante desse cenário ocorreu nas eleições para presidente da República, de fevereiro de 1949. A oposição, na qual o PCP tinha grande influência, lançou o nome de Norton de Mattos, um general de tendências moderadas. Comícios entusiásticos mostraram que o antissalazarismo ganhava a opinião pública. Mas, ainda uma vez, a acossada oposição se complicou e Norton de Matos retirou a candidatura.
Tornou-se cada vez mais claro que as eleições, mesmo em condições anormais, tinham-se convertido em um problema para o salazarismo. No pleito de 1958, o país foi tomado por uma febre eleitoral com a candidatura de outro general, Humberto Delgado, salazarista histórico que passara para a oposição. Delgado manteve sua candidatura até o fim, e só a fraude eleitoral permitiu a vitória do almirante Américo Tomás.

A vida do general Delgado e de sua secretária brasileira, Arajaryr Campos, terminou de forma trágica, em fevereiro de 1965, quando ambos foram assassinados em território espanhol, ao tentar cruzar a fronteira para Portugal. As mortes, perpetradas por agentes da Pide com a autorização de Salazar, tiveram repercussão internacional e quebraram o prestígio do “manso ditador”. O ex-presidente Jânio Quadros enviou um telegrama a Salazar, insistindo numa investigação completa do caso pelas Nações Unidas.

spetacular foi a façanha do capitão Henrique Galvão, que em janeiro de 1961 fugiu da prisão em Portugal e, à frente de um grupo rebelde de nome quixotesco, o Diretório Revolucionário Ibérico de Libertação, apresou no Caribe um navio de passageiros – o Santa Maria. Rumando para o sul, Galvão enviou uma saudação ao povo brasileiro, à imprensa e ao recém-eleito presidente brasileiro, Jânio Quadros. Ao que tudo indica, Galvão esperou a posse de Jânio para desembarcar no Recife, pois JK, seu antecessor, tinha boas relações com a ditadura portuguesa. O “homem da vassoura” enviou a Galvão uma mensagem de boas-vindas e lhe concedeu asilo político. Ele nunca mais voltaria a Portugal e, anos mais tarde, morreria no Brasil.

o plano das relações exteriores, Portugal mantinha tradicionalmente laços estreitos com a Inglaterra, numa posição de inferioridade. Apesar da oposição das correntes germanófilas, o país entrou na Primeira Guerra Mundial ao lado dos Aliados e enviou um contingente militar para lutar nos campos da França. A implantação da ditadura salazarista não impediu a continuidade das boas relações com a Inglaterra, mas esta nem sempre apoiou as decisões do governo português. Salazar suscitou severas críticas dos ingleses, por exemplo, quando, de forma dissimulada mas significativa, ele apoiou o general Franco durante a Guerra Civil Espanhola.

Ao eclodir a Segunda Guerra Mundial, porém, a neutralidade de Portugal foi apoiada sem ressalvas pela Inglaterra. Salazar manteve essa postura, mesmo quando a queda da França parecia prenunciar a vitória do nazifascismo, e procurou influenciar o general Franco para que a Espanha também se mantivesse neutra. Mas em 1941, quando Hitler invadiu a União Soviética, Franco se colocou abertamente do lado alemão, enviando um contingente militar – a Divisão Azul – para lutar, ou melhor, para ser destroçado, na Frente Oriental.

Salazar nunca se identificou com o regime nazista, embora agentes da Alemanha, como de outros países, circulassem em Portugal sem serem incomodados. Numa carta enviada a um de seus confidentes mais próximos, em setembro de 1941, ele afirmou: “Considero uma desgraça para a Europa que (...) o nazismo se imponha por toda a parte com a sua violência e rigidez de alguns de seus princípios. Para os que têm da Civilização uma noção moral, será um franco retrocesso.”
Salazar não via os Estados Unidos com os mesmos bons olhos com que via a Inglaterra.
Os americanos – segundo ele – eram estranhos aos princípios europeus.
 E representavam um capitalismo sem freios, com pretensões hegemônicas. Alguém perguntaria: que importava, afinal de contas, para os Estados Unidos, a postura do nanico Portugal? A resposta pode ser sintetizada na importância estratégica do arquipélago dos Açores. Em julho de 1941, o presidente Roosevelt enviou uma carta a Salazar, afirmando que a utilização do arquipélago, e de outras possessões portuguesas, nada tinha a ver com uma ocupação. Para o propósito de proteger os Açores, Roosevelt dizia ter todo o gosto em incluir forças brasileiras, mas não se chegou a tanto. Depois de muitas pressões e longos entendimentos, Portugal autorizou a utilização dos Açores, primeiro pelos britânicos e depois, com relutância, pelos americanos.

No pós-guerra, a insistência de Salazar na manutenção das colônias da África a qualquer preço acelerou a desagregação do Império português. Portugal invocava a ameaça da União Soviética no continente africano. Dizia que não havia racismo, e sim harmonia de raças nas colônias portuguesas. E lembrava o exemplo maior do Brasil – uma nação luso-tropical cuja história passava pelo papel desempenhado por Portugal. O defensor intelectual dessa ideologia foi Gilberto Freyre, particularmente no livro O Mundo que o Português Criou. Embora Salazar e seus acólitos tivessem horror da importância que ele atribuía à herança africana em Portugal, deixaram o aspecto de lado para utilizar as ideias de Gilberto Freyre, um intelectual de inegável prestígio. Alguns livros do sociólogo brasileiro foram publicados em Portugal e ele visitou o país várias vezes, a convite do governo português.

As colônias portuguesas na Ásia foram caindo, uma a uma: Timor, Goa, Macau. Mas Salazar não podia admitir o abandono das “províncias ultramarinas” da África, cada vez mais convencido de que a independência delas levaria ao domínio da União Soviética ou ao caos generalizado. Os movimentos de independência estendiam-se da Guiné-Bissau e Cabo Verde a Angola e Moçambique. Em busca de uma política integradora e assimilacionista, o governo tentou sem êxito a reforma – uma espécie de luso-tropicalismo em forma legislativa, na feliz expressão de Ribeiro de Meneses. Na verdade, a prolongada Guerra da Angola, cada vez mais impopular em Portugal e na África, a cujo final Salazar não chegou a assistir, foi um fator dos mais importantesna queda da ditadura.

alazar não teve a morte violenta de Mussolini e de Hitler. Como o general Franco, morreu na cama, de morte natural, em julho de 1970. Meses antes, quando sofrera um acidente cardiovascular, fora substituído no poder, sem seu conhecimento, por Marcelo Caetano, atitude que lhe causou profunda amargura. Caetano tentou inutilmente reformar o regime para garantir sua sobrevivência. A Revolução dos Cravos poria fim à ditadura em 1974, por iniciativa dos quadros médios do Exército, acolhidos pela população, num clima de forte emoção. O deus de Salazar poupou-o desse espetáculo de desordem, como certamente ele o denominaria.

Passadas muitas décadas, a Europa Ocidental de hoje é muito diversa do que foi dos anos 30 até meados da década seguinte. A era das ditaduras teve fim, a Alemanha e a França – inimigas mortais em três guerras – tornaram-se nações amigas, o comunismo deixou de ser um fantasma perturbador, o sonho da União Europeia converteu-se em realidade.

Não obstante, nos dias de hoje, a União Europeia atravessa ventos e tempestades, e os temas econômicos e financeiros – déficits orçamentários, irresponsabilidade fiscal – entraram na ordem do dia. Tudo isso soaria familiar aos ouvidos do professor Salazar e ele talvez pensasse que poderia retornar do “assento etéreo” a este mundo, como homem providencial. Nesse caso, alguém precisaria dizer-lhe que os tempos são outros, pois estamos em busca de líderes, aliás muito escassos, e não de homens providenciais.

14 de abril de 2012

SUJOU...



Por falta de insumos, está difícil cumprir a pena de morte
por Dorrit Harazim
 
Era só o que faltava: falta anestésico para a execução dos condenados à morte nos Estados Unidos. E, pelo jeito, a escassez do insumo só tende a se agravar.
O ano de 2011 começou com 3 251 detentos aguardando execução em 35 dos cinquenta estados que mantêm a pena capital. Desde que a quase totalidade desses estados adotou a injeção letal como sistema único de homicídio legal, o procedimento se dava em três tempos:
a) Administração do sedativo tiopental sódico, que deixa o condenado inconsciente. Em cirurgias normais, usa-se o anestésico em doses de 100 a 150 miligramas. A dose para execuções chega a 5 mil miligramas.
b) Injeção de brometo de pancurônio. Trata-se de um relaxante muscular que paralisa os pulmões e o diafragma. Também camufla qualquer sinal externo de dor.
c) Aplicação de cloreto de potássio, que provoca parada cardíaca.
Mais de 1 200 execuções vinham seguindo esse protocolo desde 1976, quando a pena de morte foi restabelecida nos Estados Unidos. Só que o único fabricante americano do tiopental sódico, a Hospira Inc., anunciou em janeiro passado que cessaria a produção do sedativo: estava com dificuldade de obter a matéria-prima necessária. Ainda tentou importar o insumo de Milão, mas o governo da Itália, pressionado pela opinião pública europeia, exigiu garantias de que o produto não seria usado em execuções.
Para a Hospira Inc., o veto italiano veio a calhar. Onze anos atrás, o estado do Illinois, onde a empresa tem sede, já havia decretado uma moratória nas execuções – o governador da época fez história ao oficializar seu medo de conviver com o demônio do erro. E, no início de 2011, o Legislativo do Illinois deu o passo final, abolindo de vez a pena capital em suas fronteiras.
Em contrapartida, nos estados americanos com fila de espera nos corredores da morte, o baque foi grande. Datas de execuções começaram a ser postergadas e o desabastecimento levou quatro estados a irem às compras no exterior – o que, por sua vez, gera protestos e processos de grupos humanitários que não confiam no produto importado. Visto que a importação do barbitúrico é estritamente controlada por lei federal, advogados de presos passaram a exigir que os departamentos penitenciários divulguem a procedência das drogas utilizadas. Em resumo, sujou.
Formou-se então, ao arrepio da lei, uma espécie de confraria interestadual de sistemas prisionais, e ela começa a ser mapeada. A diretora dos presídios de Kentucky (36),* por exemplo, contou ter recebido de uma organização da Índia, a Kayem Pharmaceuticals, a pista de um distribuidor americano com farto e suspeito suprimento.
A vice-diretora do Departamento Penitenciário do Arkansas (43),* por seu lado, admitiu ter obtido o produto na Inglaterra graças a um contato repassado por um agente do sistema prisional da Geórgia (103).* “Recorri a quem o tivesse”, explicou.
A Geórgia, aliás, tem estado no olho desse furacão. E não apenas pela ruidosa repercussão mundial da execução de Troy Davis, no mês passado. Primeiro, o estado teve retido na alfândega um carregamento de tiopental sódico, importado através de uma firma de produtos hospitalares. Depois fez negócio direto com uma empresa atacadista inglesa, a Dream Pharma, que funciona nos fundos de uma escola de pilotagem em Londres e, segundo advogados ativistas, em franca violação das leis federais americanas. De todo modo, o carregamento acabou sendo interceptado pela polícia. O Kentucky (36)* e o Tennessee (87),* dois estados que também tinham importado a muamba letal da mesma fonte, preferiram se adiantar e entregaram a mercadoria às autoridades policiais.
Um carregamento despachado do Arizona (138)* para a prisão de San Quentin, na Califórnia (721),* gerou um processo de mais de mil páginas que contém vinhetas esclarecedoras. “Esta é uma missão secreta (...) altamente sensível para a mídia”, alertou o secretário de Operações do Departamento Penitenciário da Califórnia a subordinados. Sua nota de agradecimento enviada ao colega do Arizona foi calorosa: “Vocês aí do Arizona são verdadeiros salva-vidas. Te pago uma cerveja quando passar por aí.”
Diante de tamanha penúria, a solução foi recorrer ao uso de um anestésico alternativo ao tiopental – o pentobarbital, ainda não aprovado pela agência reguladora americana, a Food and Drug Administration. Pior, de acordo com a Associação Americana de Veterinários, essa droga, em combinação com as outras duas, sequer é recomendada para encerrar a vida de um animal.

o Texas (321),* o uso veterinário do pentobarbitalsegue regulamentação rígida – a relação dosagem/peso do animal a ser sacrificado precisa constar dos autos. Só que o estado não adotou nenhuma instrução especial para o uso do mesmo em humanos. “Não há como experimentar o seu efeito em execuções de presos sem executá-los”, constata o óbvio o diretor do Death Penalty Information Center, de Washington. O condenado à morte Cleve Foster, cuja execução em Huntsville estava prevista para abril deste ano, mas teve a morte suspensa pela terceira vez no mês passado, deve ser o primeiro texano a receber o pentobarbital. “Se a droga não funcionar a contento, ele sentirá uma dor inenarrável, semelhante a ter as veias do corpo incendiadas”, alerta Clive Smith, diretor da organização Reprieve, voltada para a abolição da pena de morte.
Quem até agora se beneficiou da escassez do sódio tiopental foi a firma dinamarquesa Lundbeck. Ela é a única fabricante europeia de pentobarbital a fornecer o material para clientes americanos e na base do don’t ask, don’t tell, isto é, melhor não perguntar para não saber qual uso será dado ao produto. A empresa tenta defender a comercialização da droga alardeando sua eficácia no combate à epilepsia, mas o cerco continental está se fechando. Sob pressão da Comunidade Europeia, Inglaterra, Alemanha e Áustria já proibiram empresas instaladas no país de exportar drogas usadas em execuções.
A Dinamarca, agora, é a bola da vez. Até porque o último civil executado em sua fronteira remonta a 1882. Não haverá de querer sujar a sua história agora.

*Número de condenados no estado que aguardam execução. Fonte: Death Penalty Information Center.

14 de abril de 2012

PRESENÇA



Ele chegou do mesmo jeito como voltava do trabalho todos os dias, o terno escuro amassado, a gravata meio torta, um ar de cansaço no rosto. Senti uma alegria imensa quando ouvi o barulho familiar das chaves e depois meu pai entrou pela porta
por André Cardoso
Quando meu pai foi embora, perguntei à minha mãe quando ele voltaria. Ela me encarou algum tempo com olhos vermelhos e depois me respondeu com uma voz que parecia carregar o peso todo do mundo:
– Ele não volta mais, filho.
Aqueles foram dias confusos. Nós três – eu, minha mãe e meu irmão mais velho – parecíamos recolhidos e fechados para o resto do mundo, apesar dos inúmeros parentes e conhecidos (gente que eu nunca vira antes) que se sucediam na sala de estar, em visitas nas quais muito pouca coisa, estranhamente, parecia ser dita. Lembro-me de navegar numa neblina quase palpável de tristeza, uma tristeza cujo motivo não era compreendido por mim, apesar da ausência do meu pai. Às vezes eu me trancava, sozinho, no banheiro para chorar escondido, tomado de um pesar que eu nunca havia sentido antes e também de uma vaga sensação de vergonha. Minha mãe ora se isolava de mim e de meu irmão, como se não existisse nada além da sua tristeza, ora me afogava em abraços e carinhos, tentando me consolar de uma perda que eu mal entendia. Custava-me conceber que meu pai não voltaria mais, que ele havia partido para algum lugar onde não poderia mais encontrá-lo. Como isso seria possível, se ele sempre estivera presente?

Imaginem a minha surpresa quando descobri que tinham mentido para mim, pois ele voltou dois ou três dias depois de ter sumido. Ele chegou do mesmo jeito como voltava do trabalho todos os dias, o terno escuro amassado, a gravata meio torta, um ar de cansaço no rosto. A única diferença é que estava ainda mais pálido do que de costume. Lembro que, nas primeiras semanas depois daquela noite, foi essa perpétua palidez que mais me espantou. Isso e o ar de cansaço que também nunca ia embora.

Mamãe estava pondo a mesa e deixou cair um prato. Mesmo sendo ainda tão novo (tinha 8 anos na época), lembro que esse pequeno incidente – o prato escorregando da mão frouxa de minha mãe, a expressão de completo espanto que deu a seu rosto um estranho ar abobalhado e vazio – me pareceu gasto e absurdo, como uma cena muito repetida de um desenho animado. Foi um momento um tanto cômico, até porque senti uma alegria imensa quando ouvi o barulho familiar das chaves e depois meu pai entrou pela porta. Lá estava ele de pé no meio da sala, minha mãe paralisada de espanto e incompreensão, incapaz de pronunciar uma única palavra, enquanto eu olhava intrigado dela para meu pai e meu irmão mais velho, que aparecera de repente na porta do corredor, onde se deixara ficar também imobilizado pelo pasmo, os olhos arregalados e a boca estupidamente aberta.

Ficamos os quatro um instante sem saber o que fazer – digo os quatro porque meu pai parecia de início tão desorientado quanto nós. Lembro-me de que fui o primeiro a vencer o torpor e ir correndo para abraçar o meu pai, talvez porque aos 8 anos seja mais fácil aceitar as alegrias inesperadas com que a vida às vezes – já naquela época eu sabia o quanto isso seria raro – resolve nos surpreender. É possível também que, de nós quatro, eu tenha sido o que ficou mais feliz com a súbita aparição de meu pai depois de uma ausência que se apresentava tão ameaçadora e que fora relativamente breve no fim das contas. Estranhei que nem minha mãe, nem meu irmão tivessem se juntado a mim naquele abraço, preferindo se manter afastados, nem demonstrassem alegria ou alívio ao vê-lo; em vez disso, aparentavam apenas espanto, confusão e, creio eu, um pouco de horror. Meu pai, por sua vez, não fez o estardalhaço que eu esperava quando corri para abraçá-lo, contentando-se em me dar o beijo distraído de costume, com lábios frios de quem acabava de sair na garoa.

o jantar, minha mãe e meu irmão ficaram calados a maior parte do tempo. Só eu perguntava a meu pai onde ele estivera e como tinha sido a viagem. Minha mãe me olhou escandalizada depois dessa última pergunta, e foi um olhar tão inusitado que nem percebi que meu pai não me respondeu. Em vez disso, ele começou a falar como de costume, contando incidentes do trabalho, fazendo comentários sobre colegas que nem sequer conhecíamos, reclamando dos pequenos contratempos que envenenavam o seu dia a dia, mas que ocupavam por completo a sua mente e sem os quais ele não parecia capaz de viver. Era como se ele estivesse voltando de um dia normal de trabalho, em vez de estar regressando de uma viagem, e essa circunstância, que de início me causou uma estranha sensação de inadequação, logo me deu um enorme conforto. Meu pai estava ali, exatamente como todos os dias, fazendo as mesmas queixas e contando as mesmas histórias a que eu mal prestava atenção, pois pareciam se repetir em todas as refeições.
Eu estava contente em ouvir a sua voz, que tinha o mesmo timbre de sempre, mas parecia um pouco mais calma, um pouco mais distante. Cada sílaba sua parecia insistir que nada de extraordinário havia acontecido, que ele simplesmente havia voltado da rua, da mesma forma como haveria de voltar todas as noites.
Essa sensação de normalidade deve ter acabado contaminando a minha mãe e o meu irmão, cuja expressão de espanto foi-se suavizando e se sedimentando, sem nunca desaparecer por completo – na verdade, penso ver um pouco desse espanto em seus rostos até hoje, mas isso pode ser apenas uma sobra das impressões que me ficaram daquela noite. De qualquer forma, creio que a aparência de normalidade tenha sido um alívio para eles também, pois evitava perguntas e explicações. Mesmo sendo tão novo, pude perceber certo constrangimento no ar, como se perguntar ao meu pai como era possível que ele estivesse de volta depois de uma ausência que deveria ter sido definitiva fosse uma indelicadeza, uma insinuação de que seu lugar não era mais ali, na mesa da família, como se o enorme pesar que ele havia causado com sua falta o tivesse transformado num estranho cuja presença era agora uma invasão.

Ao longo de todo o jantar, meu pai conversou distraidamente conosco. Como se nada tivesse acontecido, como se não houvesse nada de mais na sua volta. Pode ser que as minhas recordações desse primeiro jantar estejam equivocadas, misturadas às lembranças de outros jantares, os que vieram antes da partida de meu pai e os inúmeros outros que vieram depois. Não duvido que a sensação de estranha naturalidade que hoje associo a esse jantar seja fruto do meu desejo – da minha esperança – de que tudo poderia voltar a ser como antes. Lembro-me inclusive, como se isso fosse uma prova irrefutável de que a antiga ordem das coisas estava restabelecida, de que meu pai repetiu os mesmos comentários que costumava fazer a respeito da comida. Seu retorno inesperado não o comoveu o bastante para levá-lo a esquecer sua eterna implicância com o frango assado que fazia sua aparição à nossa mesa todas as quartas-feiras e que foi tratado com a irritação de sempre, sem o menor vestígio de sentimentalismo. O frango foi parar no seu prato, mas ficou intocado, como o resto da comida. Meu pai parecia ter-se esquecido de comer. Minha mãe e meu irmão também quase não comeram. Todos tinham ar distraído. Naquela noite, fui mandado para cama mais cedo.

o dia seguinte, acordei com um susto. Um susto estranho, pois tinha sido causado por algo muito familiar: o zumbido agudo e irritante do barbeador do meu pai, contra o qual lutava o som alto do rádio sintonizado no noticiário matinal. Fiquei deitado, imaginando a cena que encontraria no banheiro se me levantasse: meu pai no seu roupão azul velho e puído, esfregando com furor obsessivo o barbeador no rosto, inchando primeiro uma bochecha e depois a outra para deixar a pele mais lisa, o que o obrigava a fazer caretas que eu achava cômicas. Aos poucos, minha irritação por ter sido acordado mais uma vez pelo estardalhaço matinal do meu pai foi-se atenuando, ou melhor, essa mesma irritação foi-se tornando um conforto justamente por ser tão habitual. Era mais uma prova de que minha mãe havia mentido sobre a partida de meu pai e de que ele iria ficar conosco para sempre. Por isso mesmo me levantei e fui observá-lo terminar de se barbear no banheiro. Quando acabou, fui olhar o resto de sabão e pelos que sempre sobrava na pia e que meu pai não conseguia limpar completamente, talvez porque seria um indício concreto e inquestionável da presença dele. O sabão estava lá, mas não havia um único pelo. Nos dias seguintes, minha curiosidade de criança me levou a examinar cuidadosamente a pia depois que meu pai saía do banheiro. Nunca havia um único pelo. Aquele detalhe aparentemente sem importância me deixou assombrado. O ritual que meu pai seguia todas as manhãs e que tanto me irritava era completamente inútil: sua barba não crescia mais. Mesmo assim, ele nunca deixou de cumpri-lo.

Naquela manhã, minha mãe se levantou no último instante antes de preparar o café. Acho que não tinha dormido nada à noite. Lembro-me do seu olhar atônito e vermelho por cima das olheiras. Até hoje, quando penso na minha mãe, são esses olhos que eu vejo. Não creio que tenha havido qualquer explicação noturna entre os dois, pois minha mãe parecia ainda mais perplexa e perdida do que no dia anterior. O café da manhã não foi muito diferente do jantar. Meu pai comentou as notícias do momento com a mesma mistura de acidez e resignação de todos os dias. As torradas ficaram abandonadas no prato, enquanto ele folheava o jornal, absorto, soltando aqui e ali alguma observação indignada sobre o último escândalo político, quase como quem cumpria um dever. O café remexido com um tilintar frenético nunca chegou à sua boca.

Depois do café, que foi deixado sobre a mesa assim como o jantar da véspera, meu pai se levantou e foi para o trabalho. Ainda me lembro da aflição que senti quando essa cena cotidiana se repetiu, apesar da calma com que ele abriu a porta da frente ao sair. E se dessa vez ele de fato não voltasse? Algo ainda estava errado, pois minha mãe continuava muito agitada e não parecia aliviada com o retorno de meu pai. O resto do dia foi de expectativa para mim. Algum tempo depois de meu pai sair, telefonaram para minha mãe do trabalho dele. Por algum motivo, pelo que pude perceber do que minha mãe disse, estavam tão surpresos e atônitos quanto ela ao vê-lo de volta ao trabalho. Depois desse telefonema, minha mãe passou a maior parte da manhã calada, sentada à mesa da cozinha, os mesmos olhos perplexos do café da manhã, fitando a parede de azulejos brancos à sua frente, até se lembrar de que tinha que me dar o almoço e me mandar para a escola. Só quando a condução chegou é que tirou o pijama para me levar até a portaria. Entregou-me à condução sem que sequer lhe ocorresse se despedir de mim. Na escola, fiquei a tarde inteira torcendo para que meu pai voltasse à noite, no horário de costume. Mesmo temendo que algo estivesse errado, ainda acreditava que a sua presença faria com que tudo voltasse definitivamente ao normal.

Quando cheguei da escola, encontrei minha mãe correndo de um lado para o outro da cozinha, administrando várias panelas que estavam no fogo ao mesmo tempo. Até hoje, quando entro na cozinha, sempre me vem por um instante a sensação de pressa e atividade com que me deparei naquela tarde. Sozinha em casa durante a tarde, minha mãe resolvera fazer, por via das dúvidas, um jantar de boas-vindas para o meu pai, caso ele voltasse novamente à noite. Enquanto virava o rosbife no forno e o regava com molho, explicou que essa era a coisa certa a fazer. Eu e meu irmão, muito obedientes diante da solenidade da ocasião, fomos tomar banho sem demora e depois nós três, com uma cerimônia que eu não conseguia entender, mas à qual aderi quase sem sentir, nos preparamos para esperar o meu pai.

le chegou de noitinha, como de costume, exatamente como no dia anterior. Dessa vez, minha mãe conseguiu sorrir. Nem o seu sorriso nem o jantar que preparara com tanto cuidado, porém, causaram maior impressão do que o frango assado da véspera. Meu pai fez algumas observações sem entusiasmo sobre a comida, como quem cumpre uma obrigação, mas encheu o prato com energia. Fez algumas perguntas rotineiras sobre o nosso dia na escola, mal ouvindo nossas respostas, e retomou as velhas reclamações sobre o trabalho, sobre a incompetência dos colegas e a falta de juízo do chefe, sempre no tom fatigado com que nos fazia o relatório de seu dia, antes de ir embora. No entanto, mesmo parecendo tão cansativo, o assunto era fascinante a ponto de fazê-lo esquecer completamente da comida, que mais uma vez ficou abandonada no prato, sem que ele levasse à boca uma única garfada sequer. Na verdade, nunca mais vi o meu pai comer.

Minha mãe não reclamou, não disse nada, mas logo depois de recolher a mesa telefonou para meu tio, o irmão de meu pai. Alguns minutos depois ele chegava à nossa casa com a mulher e os dois filhos. Parecia ainda mais surpreso do que a minha mãe com a volta inesperada do meu pai e foi gritando logo da porta que queria vê-lo, e que só acreditaria vendo. Meu pai, no entanto, não quis falar com ele. Não que tenha tentado evitá-lo. Já estava devidamente instalado diante da televisão e olhou espantado para as visitas inusitadas – meu tio raramente vinha à nossa casa e jamais aparecia durante a semana, ainda mais trazendo a família a tiracolo. Meu pai então ficou mudo e imóvel. Não é que ele estivesse fazendo algum esforço para ignorar meu tio e meus primos; ele simplesmente ficou sentado na poltrona, de boca aberta e olhos arregalados, a expressão de espanto e incompreensão congelada no rosto. Tentaram chamá-lo e até sacudi-lo, mas ele não reagiu. Era como se estivesse morto. Quando eu o toquei, ele estava frio.

Minha mãe e meu tio fecharam todas as crianças no quarto do meu irmão, enquanto os adultos conversavam no quarto de meus pais. Ouvi meu tio insistir quase berrando que deviam chamar um médico, mas minha mãe não quis, argumentando com uma voz trêmula que não adiantava, que ele ficaria assim pelo resto da noite, mas que no dia seguinte estaria bem de novo. Talvez algo assim já tivesse acontecido na noite em que meu pai voltou pela primeira vez, talvez àquela altura ela já soubesse. Discutiram ainda algum tempo, dessa vez em voz baixa, enquanto eu, meus primos e meu irmão tentávamos distrair uns aos outros com alguma brincadeira a que nos entregávamos sem grande entusiasmo, pois todos estávamos pensando no corpo imóvel abandonado na sala. Botaram-me na cama mais tarde naquela noite, logo depois de meu tio ir embora, para nunca mais voltar. No dia seguinte, acordei novamente com o barulho do meu pai fazendo a barba no banheiro.

resto da semana passou na mais perfeita rotina. Logo percebemos que no mundo de meu pai agora já não existiam fins de semana: ele ia trabalhar da mesma forma, com a exatidão de costume. Nos primeiros dias depois da crise durante a visita de meu tio, fiquei com medo de me aproximar dele, mas a calma com que atravessava as manhãs e noites conosco, a naturalidade com que nos repetia as peripécias do trabalho e a constância com que nos fazia as mesmas perguntas sobre provas e amizades na escola em pouco tempo me tranquilizaram.
Logo aprendi a lhe dar sempre as respostas que ele esperava e que ouvia distraído, mas que, eu acreditava, lhe traziam algum alívio e certamente não provocariam uma reação semelhante à que teve com a visita de meu tio. Logo entendi que a rotina era muito importante para meu pai – acho que sempre tinha sido – e que qualquer desvio dela, por menor que fosse, poderia trazer consequências desagradáveis. Isso ficou muito claro para todos nós – até minha mãe, que, acredito eu, já sabia, mas não tinha percebido ainda até que ponto a situação do meu pai era inflexível – no segundo fim de semana depois da volta dele. Era sábado e mais uma vez, para meu espanto, meu pai foi trabalhar de terno e gravata, como sempre (ainda me lembro de como me sentia desorientado nesses primeiros dias, ao mesmo tempo que considerava o comportamento bizarro de meu pai bastante engraçado). Sozinhos em casa com minha mãe, eu e meu irmão começamos a ficar muito agitados: queríamos sair para brincar, fazer qualquer coisa, sair da prisão do apartamento.

Meu irmão tanto insistiu que minha mãe acabou permitindo que ele fosse brincar na casa de um amigo da escola. Não lembro o que ela fez comigo; acho que fomos passear em algum parque, meio sem saber o que fazer com aquele dia que parecia tão vazio. Lembro-me apenas de que já estávamos em casa no final da tarde e, um pouco antes da hora em que meu pai deveria voltar do trabalho, o telefone tocou. Era meu irmão pedindo para dormir na casa do amigo. Minha mãe não queria deixar, mas, mais uma vez, teve de enfrentar a resistência do meu irmão, que encontrou na mãe de seu colega uma aliada insistente. Finalmente, minha mãe cedeu e deixou que meu irmão ficasse por lá.

Quando meu pai chegou, o jantar já estava pronto, a mesa estava posta, mas, obviamente, meu irmão não estava lá. Meu pai chamou por ele ao se sentar à mesa e, ao reparar que estava faltando um prato e ouvir a explicação de minha mãe, mais uma vez pareceu morrer diante de nós. Ficou sentado, o corpo flácido jogado em cima da cadeira, os olhos abertos sem enxergar nada, a boca aberta numa incompreensão muda. Eu e minha mãe jantamos na cozinha e, naquela noite, ela me mandou ir dormir bem mais cedo. Acho que tinha chorado, pois fiquei com a imagem de seus olhos vermelhos ao me pôr na cama, mas é possível que eu esteja misturando as lembranças daquela noite com as de várias outras noites – nossos dias agora eram sempre muito parecidos. Tenho certeza, porém, de que me levantei de madrugada, ouvindo o pesado silêncio do apartamento, e fui devagarinho até a sala, me esgueirando pelo corredor como se estivesse fazendo algo proibido. Meu pai continuava sentado na mesma cadeira, a cabeça recortada contra a janela, os olhos vazios refletindo aluz enviesada da iluminação da rua. Não tinha se mexido um milímetro sequer. Suas mãos estavam frouxas e frias, como no dia da visita de meu tio, e quando eu o toquei não houve nenhuma reação. Voltei para cama, assombrado com a presença imóvel do corpo de meu pai na sala, sozinho no escuro.

unca mais, nem eu, nem meu irmão, dormimos fora e nunca mais nos ausentamos da mesa do jantar. Também aprendemos que nunca deveríamos trazer ninguém para casa enquanto meu pai estivesse presente. Era relativamente seguro falarmos de novos conhecidos na escola, pois meu pai simplesmente ignorava seus nomes e atribuía aquilo que contávamos a seu respeito a pessoas que já conhecia. Depois de algum tempo, percebemos que era mais fácil usar apenas os nomes já conhecidos, já que meu pai não acompanhava as pequenas novidades que ocorriam no nosso cotidiano fora de casa, que ele sempre traduzia naquilo que já lhe era familiar. Dentro de casa, nada mudava, nem mesmo os pratos que se sucediam com perfeita regularidade no jantar ou a decoração dos quartos à medida que íamos crescendo. A rotina de meu pai havia se tornado a nossa religião.
Levou muito tempo até eu compreender o que havia acontecido com meu pai – uns dois anos, talvez. Sempre soube que havia algo de errado, que a vida de meus colegas passava por mudanças, enquanto a nossa continuava sempre a mesma. Havia viagens, novos irmãos, separações, descobertas, novas atividades e mudanças de plano inesperadas.

Na nossa família, ao contrário, tudo era previsível, nossos dias se organizavam em torno das idas e vindas de meu pai ao trabalho, da meticulosa religiosidade com que se arrumava todas as manhãs, dos fins de noite passados diante da televisão, sempre ligada nos mesmos programas, de jantares que pareciam se fundir uns nos outros, pois haviam se tornado um ritual em que praticamente as mesmas palavras eram repetidas.

Depois de dois anos, à medida que o otimismo e a ingenuidade dos meus 8 anos foram ficando para trás, comecei a perceber o quanto a sensação de que nos repetíamos sem escapatória era literal. Os pequenos incidentes de escritório que meu pai relatava durante o jantar não só pareciam os mesmos, como, depois de algum tempo, comecei a perceber que eles eram de fato os mesmos, repetidos à exaustão num padrão recorrente. As suas reclamações sobre o trabalho se repetiam como o trinado triste de um pássaro engaiolado que canta todas as manhãs. Pior: os seus comentários sobre as notícias do jornal também não mudavam. Ele repetia sem parar as mesmas lamentações sobre escândalos que já tinham sido esquecidos e substituídos por outros, semanas ou até meses atrás. Uma vez, cheguei a substituir o jornal da manhã por outro guardado havia dias e meu pai o leu aparentemente sem atinar com a diferença. Nunca mais repeti essa pequena crueldade. Tinha sido doloroso demais constatar que as notícias, assim como as eventuais novidades que trazíamos da escola, simplesmente não o atingiam.

Intrigado e confuso, resolvi confirmar a constatação a que eu acabara de chegar com meu irmão, que a essa altura já estava em franca adolescência. Mesmo assim, ainda mantínhamos uma forte cumplicidade, desenvolvida ao longo de anos trabalhando juntos para preservar a imutável rotina do meu pai, poupando-o cuidadosamente de qualquer tipo de surpresa. Essa tarefa tinha o seu preço e meu irmão parecia a cada dia mais irritado, ao mesmo tempo que o esforço de esconder de meu pai sua irritação só fazia aumentar sua revolta. Quando nos encontrávamos em casa momentos antes de meu pai voltar do trabalho, era comum que meu irmão deixasse escapar pequenas explosões de mau humor que minha mãe fazia o possível para suprimir antes que meu pai entrasse pela porta de casa. Nem sempre ela foi bem-sucedida, e pelo menos umas duas vezes a rebelião de meu irmão se manifestou como um desafio direto ao meu pai, com os resultados que eram de se esperar: meu pai desfalecido à mesa do jantar (uma vez com o rosto dentro do prato de comida que, como sempre, permanecia intocado), meu irmão recolhido a um exílio horrorizado em seu quarto, eu e minha mãe tentando juntar os cacos da normalidade enquanto comíamos na cozinha.
Foi numa dessas ocasiões em que a revolta do meu irmão ameaçava surgir à superfície que finalmente tive coragem de lhe perguntar o que havia acontecido com nosso pai, por que ele repetia sempre as mesmas coisas, por que ele não parecia perceber que o mundo mudava à sua volta. Creio que no fundo eu sabia que, se fizesse essas perguntas num momento em que meu irmão estivesse mais controlado, ele não contaria tudo ou deixaria que minha mãe o interrompesse. Mas minha mãe estava ocupada na cozinha e meu irmão precisava falar com alguém.
– Você ainda não entendeu? Então vou explicar: nosso pai morreu há uns dois anos.

inha morrido de repente, resultado de uma doença mal explicada, um aneurisma ou um ataque cardíaco, não sei. Na época eu não tinha condições de entender e os eventos que se seguiram a sua morte, obviamente, tiraram toda a relevância desse fato. O que meu irmão me contava agora é que ele tinha ido trabalhar, como todas as manhãs, mas não passara do ponto de ônibus. Ali ficou sentado pelo menos uma hora até alguém finalmente estranhar a imobilidade daquele senhor que parecia cochilar encostado no anúncio de um sabonete hidratante. E lá permaneceu horas depois de constatado o óbito, aguardando a chegada de uma ambulância que o recolhesse. Lembro que, ao saber disso, fiquei muito aflito, imaginando-o exposto lá durante tanto tempo, sem que ninguém viesse pegá-lo, apesar dos inúmeros telefonemas de minha mãe para a defesa civil, tarefa que depois transferiu para uma tia que veio tomar conta de mim e de meu irmão enquanto ela zelava pelo corpo. Imaginei a falta de dignidade e a incongruência do corpo do meu pai, frouxo dentro do terno de trabalho, recostado num anúncio de sabonete que vendia vitalidade. “Um horror”, diria minha mãe mais tarde, num misto de choque e indignação. Hoje, acho que a brancura imaculada e leitosa do sabonete hidratante deve ter funcionado muito bem como a primeira honraria fúnebre prestada a meu pai.

Morto estava e morto deveria ter ficado, não tivesse a morte revelado nessa ocasião uma ineficiência tão gritante quanto a do serviço de ambulâncias responsável por retirar o corpo do meu pai da rua. Mas três dias depois ele entrava novamente pela porta de casa e sentava-se à mesa do jantar como se nada houvesse acontecido. Desde então ele voltou a nós diariamente, seguindo de forma impiedosa a rotina a que já estava acostumado, e, se algo a contrariasse, ele se tornava um corpo morto. Essas ocasiões eram um lembrete impiedoso de que estávamos de fato na presença de um defunto, cuja morte causávamos por qualquer observação desatenta, qualquer desvio do padrão que ele estabelecera com tanta naturalidade e aparentemente sem a menor intenção.
Acho que o mais estranho nessa revelação de meu irmão talvez tenha sido o fato de eu não ter ficado realmente surpreso. Talvez no fundo eu já soubesse, como minha mãe na época da visita de meu tio. Talvez a própria regularidade dos hábitos de meu pai tivesse um efeito tranquilizador do qual eu ainda não queria abrir mão. De qualquer forma, era mais fácil lidar com a presença da morte desde que ela não fosse explícita – daí nosso afã, que a revelação de meu irmão só fez aumentar, de poupar o meu pai de qualquer contrariedade e de qualquer interrupção em sua rotina. Quando chegou minha vez de entrar na adolescência, eu já sabia que qualquer confronto com meu pai seria inútil e deveria ser evitado a qualquer custo. Me conformei em ser eternamente um menino de 8 anos para ele. Sempre tinha sido um bom aluno e continuei sendo. Se por acaso eu me encontrava inquieto por algum motivo, era fácil para meu pai atribuir minha perturbação a um nervosismo descabido em relação a alguma prova. Sempre tinha sido um menino quieto, e continuei sendo, por toda a minha vida.

Apesar de toda a sua revolta, meu irmão ainda aguentou mais dez anos, até que um dia, sem avisar ninguém, arrumou suas coisas e foi embora. Ao contrário de meu pai, nunca mais voltou. Ainda falei com ele algumas vezes, principalmente pouco depois que ele foi embora. Ele telefonava quando sabia que meu pai não estaria em casa e tentava me convencer a ir embora também. Nunca consegui perdoá-lo pelo seu egoísmo ao nos deixar para trás. Meu pai, ao perceber sua ausência, recaiu em seu estado de morte absoluta. Isso se repetiu todas as noites, ao longo de semanas. Eu e minha mãe tivemos que conviver muito tempo com o corpo estendido na sala. Até que, finalmente, uma noite ao voltar do trabalho, meu pai ignorou a ausência de meu irmão. Ele o esqueceu completamente, como se nunca tivesse existido.

Passei a ter muito cuidado para que nada acontecesse comigo – nenhum acidente, nenhum incidente vergonhoso, nenhuma escapada inesperada com amigos –, que pudesse acarretar minha ausência ou trazer alguma mudança drástica na minha maneira de viver e que poderia, com sua surpresa, acarretar a morte (ainda que temporária, mas concreta, gritante, real) de meu pai. O que aconteceria se eu fosse embora? Ele me esqueceria também? Eu deixaria de existir para ele, do mesmo modo como o meu irmão? Minha mãe teria de conviver sozinha com o corpo morto na sala de jantar, e eu não conseguia suportar a ideia dos olhos vazios de meu pai fitando a luz da rua sem poder vê-la, mais um objeto meio escondido no escuro do apartamento, sem fazer barulho. E se, quando eu fosse embora, sua morte se tornasse permanente e ele não entrasse nunca mais pela porta depois do chacoalhar tão familiar de suas chaves na fechadura? Eu não suportava a ideia de ser o responsável por terminar essa existência, ainda que monótona e precária, essa repetição interminável de pequenos trejeitos que a essa altura constituíam o que eu entendia ser o meu pai. Me lembrava ainda do enorme vazio que senti quando ele foi embora pela primeira vez, quando eu tinha 8 anos de idade, daquela gigantesca ausência que eu não conseguia compreender e não queria trazer de volta.
As mudanças inevitáveis, essas eu tentei minimizar e, quando possível, escondê-las de meu pai. Não compareci a nenhuma das cerimônias de formatura a que tinha direito, saí pouco e sempre evitei festas, cursei uma universidade pública às escondidas. Tive, portanto, poucos amigos e ainda menos namoradas. Era difícil explicar minha necessidade de estar de volta em casa impreterivelmente à hora do jantar, a impossibilidade de fazer uma viagem ou a inviabilidade de apresentar meus pais a novos conhecidos. Como explicar que eu não podia me ausentar muito tempo de casa, principalmente à noite, sob pena de deixar minha mãe abandonada com o corpo de meu pai estendido no tapete da sala?

inha adolescência foi calma, como o resto de minha vida, que continuou seguindo o ritmo da rotina de meu pai. Mesmo hoje, meu horário de trabalho é o seu, pois tenho de estar em casa antes que ele volte. Para meu pai, ainda brinco de queimado no recreio da escola, ainda corro com meus colegas no pátio, ainda me recolho ao quarto para fazer o dever de casa. Minha infância nunca terminou e as contrariedades de trabalho que ouvimos à mesa ainda são as dele – as minhas passam despercebidas até mesmo por mim, que continuo vivendo como se só tivesse de me preocupar com um teste de matemática ou uma prova de ciências. Nossa vida é simples e previsível, e talvez isso já seja um consolo. Talvez ele tenha voltado por nossa causa, talvez não pudesse nos abandonar ou nós sejamos o seu paraíso, sua segurança. Por isso tenho de continuar, para que ele não fique abandonado num canto da mesa de jantar. Sua fé em mim é ingênua e comovente, e tento justificá-la com a minha constância. O que mais importa? Continuo vivendo na sua casa, mesmo depois de tantos anos, mesmo já adulto, e participo pontualmente dos jantares de família. Minha mãe continua fitando-o com olhos atônitos nos quais já é possível ver uma ponta de ressentimento, agora que ela está ficando velha. Ele continua, distraidamente, o mesmo.

14 de abril de 2012