Da grande janela de sua sala de trabalho, no 14º andar de um prédio na
avenida Faria Lima, o advogado Márcio Thomaz Bastos contemplava, lá embaixo,
duas grandes mulheres nuas, de costas uma para a outra. Eram estátuas de bronze
do escultor Galileo Emendabili. "Olha o monumento das musas", apontou o primeiro
ministro da Justiça de Luiz Inácio Lula da Silva. Quem o conhece bem, e sabe de
seu entusiasmo pelas formas artísticas, diria que o endereço foi escolhido pelo
único motivo de tê-las sempre à vista.
Embevecido, ele disse: "Olhar como
proprietário é muito diferente de olhar como inquilino." Era uma tarde de
setembro. Naquela manhã, o advogado e seus dois sócios no escritório trocaram os
25 mil reais de aluguel pelos 2,8 milhões que os transformaram em donos do 14º
andar inteiro no prédio. Para o criminalista, que concentra seus investimentos
em imóveis de alto padrão, foi mais um na coleção. "Fiz um bom negócio", disse,
roçando a mão direita na esquerda. "Sede própria!", exclamou, com uma risada
curta. Ao se afastar da janela, deu mais uma olhadela no monumento das
musas.
Márcio Thomaz Bastos tem 74 anos, 72 quilos e 1,75 metro de
altura. A primeira impressão que ele passa é de calma. Parece ter todo o tempo
do mundo para dedicar ao interlocutor e é tranquilo ao andar, ao falar, ao
gesticular. Mas, com alguma frequência, seu semblante fica opaco, e então é
difícil saber em que ele está realmente pensando.
Elegância é outra
palavra que serve para defini-lo. Ela começa nos sapatos - manda engraxar todos
os dias, no escritório, o par que está usando, enquanto fica de meias - e
prossegue nos ternos Armani, ou de alfaiates portugueses. Usa-os sempre
abotoados, nunca os tira em público e muito menos em restaurantes. "Acho
deselegante, e se insistirem digo que estou com a camisa rasgada", explicou,
cortando um robalo grelhado no Magari, um restaurante caro da rua Amauri. O
toque final está nas gravatas que coleciona - elas são 200, pouco mais que os
imóveis que possui. É raro que repita alguma, mas não gosta de se desfazer
delas.
Thomaz Bastos almoça nas redondezas do escritório, em restaurantes
aonde vai a pé, frequentemente em companhia dos sócios: o sobrinho José Diogo
Bastos Neto e Marcos Chiaparini. No Forneria San Paolo, onde vai mais, pede
invariavelmente vitela empanada. O maître do Magari o recepciona com ministro
para lá, ministro para cá, avental sobre o terno, e a cortesia de uma saladinha
de 34 reais (sem tomate, que ele odeia, assim como feijão, cebola e
alho).
"Venha ver o closet dele", convidou, numa tarde de sábado, Maria
Leonor de Castro Bastos, com quem Thomaz Bastos está casado há 43 anos. Eles são
pais de Marcela, que tem um menino e uma menina pequenos. "Ele é um entojo com a
filha e com os netos, estraga os três", disse Maria Leonor, bem-humorada, no
terraço ajardinado do apartamento de 300 metros quadrados em que os dois moram
com os empregados fixos e o cachorro Marcelinho, ultimamente adoentado. O prédio
se chama Palazzo Reale e faz jus ao nome. "Esse até que não dá muito trabalho",
comentou ela, enquanto mostrava as quatro salas da parte social. O apartamento
anterior, um triplex de 600 metros quadrados, era bem mais trabalhoso de
administrar.
O ex-ministro chegou, no começo da entrevista, de tênis
branco e jogging azul-marinho. Disse que vinha do escritório - o das musas, ali
perto -, onde trabalhara por algumas horas. Beijou-a e se recolheu à sala de
leitura. Maria Leonor percebeu quando ele fechou a porta. "Não quer nos
atrapalhar", disse. Perguntei se ele era comportado. "É", ela respondeu. "Ou
então faz muito bem feito."
Meia hora depois, a caminho da área íntima,
avisou-o: "Vou mostrar o seu closet." Thomaz Bastos lia numa chaise-longue. "Eu
quero ver é você mostrar o seu", disse a ela. No dele, com impecável arrumação,
destacavam-se 25 pares de sapatos, a coleção de gravatas e os trinta ternos que
o fazem implicar com as empregadas, quando acha que estão passados demais ou de
menos.
"Mostra o seu!", provocou ele novamente, da sala de leitura. Maria
Leonor mostrou: o closet dela, de fato, é bem maior do que o dele. Os armários,
com incontáveis divisórias, vão do chão ao teto, com escadas corrediças para
alcançar os que ficam em cima. "Parece uma boutique, não é?", perguntou ela, já
entrando no quarto do casal. Na cabeceira da cama há um painel grande e colorido
do pintor Martins de Porangaba. É peça dileta da coleção de quadros do advogado
- esta, menor que a dos imóveis -, quase todos de artistas nacionais. No
escritório e no apartamento, há trabalhos de Portinari, Di Cavalcanti, Rebolo,
Bonadei, Tomie Ohtake e uma pitoresca coleção de 37 miniaturas de advogados em
diversos materiais e situações.
A cidade de Cruzeiro, no Vale do Paraíba,
à beira da serra da Mantiqueira, tem 80 mil habitantes. Fica em São Paulo, perto
das divisas com Minas Gerais e o Rio. Continua de pé, numa das ruas centrais, o
casarão em que Márcio Thomaz Bastos nasceu e cresceu. Ele é filho do médico José
Diogo Bastos e da descendente de libaneses Salma, de quem herdou o nariz
proeminente. Dos seus quatro irmãos, dois são falecidos. As irmãs - Maria Isabel
e Maria Amélia - moram em São Paulo, em apartamentos diferentes de um mesmo
edifício.
Mais do que médico, Diogo Bastos foi um chefe político
conservador. Começou como prefeito indicado, na década de 30, e, com a medicina
ajudando o voto, tornou-se líder local do Partido Social Progressista, o psp de
Ademar de Barros, governador paulista que entrou para a crônica política
associado ao lema "Rouba mas faz".
As irmãs contam que Thomaz Bastos, a
quem apelidaram de "Grilo Seco", tinha um jeito especial para cativar pessoas
difíceis. Era o caso da empregada que serviu a família por mais de cinquenta
anos. "Ela era primitiva, um terror, mas tinha paixão por ele e fazia o que ele
quisesse", contou Maria Amélia.
Com a queda da ditadura getulista, Diogo
Bastos elegeu-se deputado estadual. Passou a movimentar-se na ponte rodoviária
Cruzeiro-São Paulo, onde montou apartamento. Reelegeu-se em 1954, foi secretário
de Ademar de Barros, depois presidente da Caixa Econômica Estadual e, no fim da
carreira, ministro do Tribunal de Contas do Estado.
Márcio Thomaz Bastos
estudou em escolas públicas e foi aprovado no vestibular para a Faculdade de
Direito do largo São Francisco. Gosta de contar que foi estimulado por um júri
de crime passional a que assistiu em Cruzeiro aos 11 anos, escondido, até que o
juiz o mandasse sair. Não se lembra de qualquer momento mais destacado nos
quatro anos de faculdade: "Eu ficava mais na biblioteca." Saiu bacharel, na
turma de 1958, e foi aprender a advogar em Cruzeiro, primeiro como assistente de
um rábula, e depois no escritório que montou na casa do pai.
A Câmara
Municipal de Cruzeiro, um velho palacete amarelo e branco, ostenta numa parede
dezenas de placas onde estão gravados, por ordem de legislatura, os nomes dos
vereadores que lhe fizeram a história. O de Márcio Thomaz Bastos está nas placas
da 16ª legislatura, de janeiro de 1964 a fevereiro de 1969. O filho do dr. Diogo
foi candidato pelo psp nas eleições de 13 de outubro de 1963.
"O Márcio
era bom de palanque e não tinha medo de cara feia", relembrou, em Cruzeiro, seu
amigo Carlos Antico, delegado de polícia aposentado, também ele eleito naquela
campanha. Advogado batalhador, namorador emérito, pé de valsa, boêmio e bom de
conversa - Antico o chama carinhosamente de "Bico Doce" -, Thomaz Bastos era tão
popular que chegou em primeiro lugar (com 670 votos) na eleição. Maria Amélia
lembrou com alegria a votação do irmão: "Foi uma festa. A fila na porta de casa
dobrava o quarteirão. Os eleitores queriam receber o prometido, como remédios e
alimentação."
Antes mesmo de tomar posse, o vereador mais votado brigou
com o jornal da cidade, o Correio Popular. Como Thomaz Bastos defendia um
sindicato operário contra os laticínios Vigor, colunistas do jornal o criticaram
por "buscar votos sofregamente", e ele mandou uma carta à redação. Publicada na
primeira página, a carta dizia que para ele era uma honra ser advogado dos
operários "não apenas na afirmação lírica dos comícios, mas no dia a dia
concreto de um exercício profissional constante". Além de cancelar a assinatura
do jornal, Thomaz Bastos atacou um político com quem viria a ter boas relações:
"Buscar sofregamente votos é fazer, por exemplo, como o deputado Ulysses
Guimarães, que nomeia para altos postos federais os seus cabos eleitorais,
cobrando em cobertura da imprensa e votos tais nomeações."
Na resposta,
também estampada na primeira página, o Correio o chamou de "moço irresponsável e
leviano" e apontou-lhe contradições: "Aqui em Cruzeiro é o amigo dos operários.
A favor de todas as greves. Contra qualquer despedida. No âmbito estadual
justifica a repressão às greves e as despedidas em massa. Quer fazer o
impossível: servir a dois senhores. Sem sinceridade, já se vê."
Márcio
Thomaz Bastos foi um dos oradores da solenidade de posse dos novos vereadores,
no 1º de janeiro de 1964. Em 19 de março, o governador Ademar de Barros
comandou, em São Paulo, uma enorme manifestação contra Goulart, a Marcha da
Família com Deus pela Liberdade. Os Bastos, pai e filho, foram à capital
participar da passeata. Doze dias depois veio o golpe que derrubou o presidente
e instalou a ditadura militar.
As atas da 16ª legislatura de Cruzeiro
estão preservadas em quatro volumes grossos na Câmara Municipal. A de 1º de
abril de 1964 registra que a sessão começou às 22h15 e teve caráter "permanente,
devido à situação do país". Um requerimento de Márcio Thomaz Bastos, em nome da
bancada do psp, da qual era líder, propôs um ofício ao governador Ademar de
Barros, "exprimindo seu apoio à atuação dessas dignas autoridades". Oito
vereadores manifestaram-se contrariamente, entre eles Zélio de Paula Aguiar, do
PTB. A ata informa que Thomaz Bastos foi à tribuna e defendeu o apoio ao
golpe.
"Foi uma sessão tensa, com muito bate-boca, que entrou pela
madrugada", recordou o advogado Zélio Aguiar no escritório de sua casa, em São
José dos Campos. "O Márcio falava bem, era enfático, mas nós conseguimos
ganhar." Aguiar é filho da lavadeira que servia a família Bastos, e brincava com
o garoto Márcio quando a mãe ia entregar ou buscar a roupa. "Tenho muito orgulho
de tê-lo conhecido", disse. Na vereança, viu de perto o sangue-frio do futuro
ministro: "Teve um dia em que o vereador Aurélio Novaes, grandalhão, partiu para
cima dele. Pois sentado ele estava, e sentado ficou. Logo depois, na tribuna,
desancou o Novaes. Não se acovardou."
Em 15 de maio de 1964, Márcio
Bastos pediu que a Câmara nomeasse uma comissão de três vereadores para
representá-los numa outra Marcha da Família com Deus pela Liberdade, agora de
comemoração. Dessa vez, o requerimento foi aprovado. Na sessão de 1º de abril de
1965, aniversário do golpe, Bastos assinou um requerimento pedindo a inclusão,
nos anais, de um manifesto do psp. Um trecho dizia assim: "Os homens do Partido
Social Progressista acreditam na brava ação construtiva do eminente presidente
Castelo Branco, que o Congresso Nacional, como emanação da vontade do povo que
representa, indicou naquele momento conturbado da vida brasileira para a todos
nos conduzir à meta segura, além do caos em que maus patrícios pretenderam nos
atirar."
Em outubro de 1965, o Ato Institucional nº 2 extinguiu todos os
partidos. As restrições impostas levaram ao bipartidarismo, com a criação da
Arena, de apoio ao regime militar, e do mdb, a oposição oficial. "O Márcio ficou
na Arena, com o pai", disse Carlos Antico. "Eu fiquei com o mdb e ele com a
Arena", informou Auxibio Novaes, também vereador na época. A única mulher entre
eles era Aurora Motta. Ela tem 78 anos e, recentemente, lançou um livro de
memórias em que aparece, em uma foto, ao lado de Thomaz Bastos quando ele era
ministro. "História é história: eu era do mdb e ele era da Arena", disse ela, na
cozinha de sua casa, servindo café e pão de queijo. Thomaz Bastos tem outra
lembrança. "Não me filiei em nenhum dos dois partidos", disse.
As atas da
Câmara mostram que ele foi um vereador assíduo nos primeiros dois anos e meio do
mandato, até meados de 1966. Casara-se em janeiro daquele ano com Maria Leonor,
sua vizinha, e em agosto pediu licença de seis meses para servir na Secretaria
do Interior do governador Laudo Natel - substituto de Ademar, que a ditadura
havia cassado. O secretário era o seu pai, Diogo Bastos.
Sua última
assinatura de presença na Câmara foi em 1º de janeiro de 1968. O pai o colocou
como consultor da Companhia de Melhoramentos de Paraibuna e, depois, da
Companhia Energética de São Paulo, a Cesp. Mudou-se para São Paulo e abriu, com
dois colegas mais velhos, um escritório, voltado para a advocacia
criminal.
Passou a fazer júris. Como às vezes enfrentava até três por
semana, foram dezenas na década de 70. Num, em Lorena, absolveu um réu que matou
a esposa a tiros, dentro de um ônibus. Bastos leu para os jurados a carta que a
mulher havia mandado ao amante, encontrada pelo marido na manhã do crime. Arguiu
legítima defesa da honra e ganhou por sete a zero. Defendeu vários maridos como
o de Lorena, postulou por policial acusado de pertencer ao Esquadrão da Morte,
por réu que confessara homicídio sob tortura policial, por mulher que matou o
marido. Em setembro de 1976, no caso em que defendeu o policial Massaro Honda,
acusado de pertencer ao Esquadrão da Morte, e de torturar e matar três acusados
de roubo, fez um apelo dramático aos jurados. Apontando a cruz, na parede,
disse: "Em nome de Deus, não condenem um inocente. O processo tem 1 080 folhas e
1 080 falhas." Honda foi absolvido por sete a zero.
O desembargador
aposentado Marino Júnior, hoje com 84 anos, conheceu Thomaz Bastos em júris,
quando era promotor. "A mim ele nunca venceu", disse com um sorriso maroto, na
sala de seu apartamento, em Higienópolis. "Era um bom advogado, mas empolado e
metido a besta." Bateram-se em três casos - e Thomaz Bastos perdeu todos. O que
ganhou mais destaque nos jornais foi o júri de um ex-soldado da Aeronáutica que
matara, pelas costas, um menino de 15 anos. Thomaz Bastos alegou embriaguez do
réu, que configuraria homicídio sem intenção de matar. Não adiantou: o soldado
foi condenado a 21 anos de prisão.
Marino foi o único promotor a abalar a
frieza profissional de Thomaz Bastos. Fez tantos apartes verbais numa sessão que
o juiz, acatando os protestos do advogado, pediu que o promotor o deixasse
falar. Marino disse então que levantaria o braço toda vez que o advogado falasse
uma mentira. E assim fez, em silêncio, a cada minuto. "Ele realmente me tirou do
sério", admitiu o criminalista, com um esgar, ao ser lembrado do caso.
Em
junho de 1972, o colunista social Tavares de Miranda, da Folha de S. Paulo,
noticiou que a Ordem dos Advogados do Brasil, a oab, designara Márcio Thomaz
Bastos, "que vem despontando de forma brilhante no fórum criminal de São Paulo",
como examinador de novos candidatos. Como conselheiro da Ordem, juntou-se a três
outros criminalistas que viajavam pelo interior, fazendo palestras a serviço da
entidade. Dois deles foram ministros da Justiça do governo de Fernando Henrique
Cardoso: José Carlos Dias e Miguel Reale Jr. O outro, Arnaldo Malheiros Filho,
poderia ter sido juiz do Supremo Tribunal Federal quando Bastos foi ministro,
mas preferiu ficar com a banca. Depois das palestras, o quarteto divertia-se à
larga em cabarés de província.
"Cigarro, sim; celular, não", avisa uma
plaqueta na mesa de vidro de seis lugares em uma das salas do escritório de José
Carlos Dias. Nos anos do quarteto, seu apelido era "Menino Jesus". "O Márcio já
tinha liderança e era um grande advogado de júri", disse Dias, de 70 anos. "A
brincadeira, entre nós, era dizer que ele era Arena, no interior, e mdb na
capital. Ele tem uma habilidade tremenda." Pedi que explicasse melhor. Dias
olhou para as gravuras francesas com a história de dom Quixote, penduradas na
parede do escritório, e respondeu: "O Márcio é bagre de barriga ensaboada. Tanto
que conseguiu chegar lá, e foi um ministro de grande coerência. Nunca o vi como
um petista, mas como um advogado doPT, um petista atucanado."
José Carlos
Dias era advogado de presos políticos e atuava na Justiça Militar. Thomaz Bastos
nunca advogou nessa área. No restaurante Magari, ele falou que teve apenas um
caso na Justiça Militar. Mas não quis dizer qual. "Eu não entrei porque havia um
monopólio", justificou-se. "O que havia era carência", disse Dias.
Na
década de 70, os jovens bacharéis eram fãs de um advogado mais velho e
experiente, Kleber de Menezes Dória. Ele havia até cumprido pena pelo
assassinato de um policial, mas, carismático, era figura catalisadora do grupo
que se reunia na chamada "Praça da Alegria" - na verdade um banco de madeira que
ficava na antessala do tribunal do júri do Fórum João Mendes. "Era uma grande
figura", disse Thomaz Bastos. Ele batiza as salas do seu escritório com o nome
de criminalistas falecidos que foram seus amigos. Uma delas é a Kleber de
Menezes Dória.
Thomaz Bastos também é nome de sala, mas no escritório da
advogada e ex-deputada tucana, hoje nos Democratas, Zulaiê Cobra Ribeiro, sua
amiga desde os anos 70. "Eu era a motorista e assistente dele quando tínhamos
casos no interior", contou. "Cansamos de viajar juntos e eu o ajudei em muitos
júris. O Márcio é uma potência, um craque, e por isso merece ser nome de sala."
O criminalista Mauro Nacif tem 64 anos, dez a menos que Thomaz Bastos.
Foram parceiros de advocacia e de farra, e dividiram um pequeno e movimentado
apartamento no centro de São Paulo. O único mobiliário era um tatame.
"Estudávamos muito, cada um no seu dia", lembrou-se Nacif, em seu apartamento
nos Jardins. "Naquela época, o Márcio não tinha dinheiro sobrando. Trabalhava
muito e vivia bem, mas sem folga. Uma vez me pediu uma boa quantia emprestada,
mas pagou tudo direitinho."
Num certo dia de fevereiro de 1983, o general
Manoel Augusto Teixeira, comandante da 11ª Brigada de Infantaria Blindada, em
Campinas, retirou-se, ofendido, de uma sessão solene da oab local. Instalando os
novos conselheiros da seção campineira, Márcio Thomaz Bastos, presidente da
Ordem em São Paulo, fizera um discurso criticando "a ilegitimidade dos que
ocupam o poder desde o golpe de 1964". Foi um ponto de inflexão na sua
participação política - uma autocrítica implícita e discretíssima do seu apoio
ao golpe de 1964. A mudança começou em 1974, com a participação na oab. Deu um
passo à frente quatro anos depois, quando se elegeu secretário-geral da
entidade. "Na Ordem, começamos a nos aproximar dos movimentos sociais", contou
Thomaz Bastos. "Lembro-me de uma frase que eu criei, e depois se espalhou: 'A
greve é um direito, não é um delito.'"
Perguntei ao ex-ministro, em uma
das quatro entrevistas no seu escritório, o que o fizera se aproximar,
vagarosamente, da centro-esquerda. Ele me disse que o processo começou antes,
pois tivera um "deslumbramento adolescente" com Marx - "Contribuição à Crítica
da Economia Política me encantou" - e porque leu o Freud de
O Mal-estar na
Civilização. "Fiz cinco anos de terapia freudiana", revelou. Mauro Nacif
contou: "O Márcio me disse uma vez, feliz da vida, que seria a primeira pessoa a
fazer análise por estar muito bem, e não o contrário."
A Ordem
solidarizou-se com as greves do abc no começo dos anos 80. Foi quando Thomaz
Bastos conheceu Luiz Inácio Lula da Silva. "Estive a primeira vez com o Lula em
1979, numa palestra de sindicato", disse. "Me colocaram para falar depois dele.
Era uma gelada falar depois do Lula. Até pedi desculpas por isso. E ele riu,
brincou, e daí para a frente a gente foi se aproximando. Fomos nos encontrando
muitas vezes em eventos contra a ditadura, e ficamos mais próximos
politicamente, mais ainda não afetivamente." Nas eleições de 1982, para
governador de São Paulo, com Lula candidato pela primeira vez, ele votou no
emedebista Franco Montoro.
Uma palmeira artificial alegra a sala de
pé-direito alto do apartamento do promotor aposentado Antônio Visconti. Em
agosto de 1984, ele fez o júri mais famoso de sua carreira - o do cantor
Lindomar Castilho, acusado de assassinar a tiros a ex-mulher, Eliane de Gramont,
e de tentar matar o namorado dela. Seu assistente na acusação foi Thomaz Bastos.
"A grande figura daquele julgamento foi ele, sem favor", disse o promotor, entre
esfihas e quibes, na mesa da sala de jantar. Os repórteres registraram que
Bastos foi aplaudido de pé ao concluir sua tréplica. Não era pouca coisa quando
o advogado de defesa chamava-se Waldir Troncoso Peres, tido como o melhor entre
todos (e nome de outra sala do escritório da Faria Lima). Desta vez, a tese da
legítima defesa da honra - tantas vezes usada por Bastos em outros casos - foi
arguida por Peres. E perdeu: o cantor foi condenado a doze anos de reclusão.
Como se dizia então, o criminalista galgou mais alguns degraus na escada da
fama.
Dinheiro, do grosso, iria entrar a partir do ano seguinte. "De mim
ele levou uns 250 mil dólares, o que naquele tempo era muita coisa", contou o
empresário Mário Garnero em seu cinematográfico escritório, numa torre
envidraçada de um edifício da Faria Lima. Naquele 1985, começo do governo
Sarney, o dono do Grupo Brasilinvest, acusado de ter provocado um rombo nos
cofres públicos, foi indiciado pela Polícia Federal e estava ameaçado de prisão.
"Ele foi muito corajoso", afirmou o empresário. Garnero contou também que, dado
o sucesso de sua intervenção, o advogado quis reajustar os honorários. "Mas aí
eu já estava mais esperto", disse, sorrindo. O "caso Brasilinvest" inaugurou, na
advocacia criminal paulista, o ramo dos grandes crimes financeiros que faria, e
faz, a fortuna de uma dúzia de grandes escritórios.
"Havia muita pressão
para a prisão preventiva do Mário, à qual eu me opus com muita convicção porque
não havia nenhum cabimento legal", disse Thomaz Bastos. "Eu já tinha uma
reputação de homem de esquerda e era candidato a vice-presidente da oab
nacional. Fui muito patrulhado. 'Por quanto o senhor se vendeu?', me
perguntaram, em um programa de televisão. Eu respondi que estava cumprindo o meu
dever, o sagrado direito de defesa. Aquela causa me jogava muita adrenalina no
sangue, era o sonho de qualquer advogado." Perguntei se recebera 250 mil dólares
com a causa. "Fui bem remunerado", respondeu, no Magari.
Nesse mesmo
almoço, em que bebeu água mineral sem gás, contou que a primeira causa que o
enriqueceu foi a de Ivo Morganti, em 1982, na qual defendeu a viúva e o filho do
fazendeiro e usineiro, acusados de assassiná-lo. "Se fossem condenados,
perderiam uma herança calculada em 140 milhões de dólares", disse o advogado.
"Pedi 20% disso se ganhasse a causa. Foi trabalhoso, demorado, mas nós
ganhamos." Boa parte dos 20% que cobrou foi paga, para usar sua expressão, "com
uma puta fazenda de 1 200 alqueires", em Ribeirão Bonito. Ele tem outra fazenda,
em Piracicaba, e estão ambas arrendadas para o grupo canavieiro de Rubens
Ometto. "Se eu fui nas fazendas umas três vezes, é muito", disse, ao tomar seu
segundo café expresso. "Eu sou do interior, mas não sou rural." Hoje ele toma
três cafés expressos por dia. Quando ministro, chegou a catorze xícaras diárias.
Sempre sem açúcar.
Nos três escritórios que teve antes de se mudar para
perto das musas, Thomaz Bastos encerrava a semana de trabalho com drinques
eventuais com os colegas. Às vezes jogava-se um baralhinho. Ele gosta de jogar,
pela fissura do desafio. Já frequentou cassinos pelo mundo afora. E uma vez, só
uma, como estivesse perto de fronteira, foi a um cassino no Paraguai. Perdeu, na
roleta e no 21, os 10 mil reais que levara. Tomou emprestado outro tanto com o
gerente, e recuperou parte do prejuízo. Os poucos amigos a quem contou a
aventura comentaram que pedir emprestado a gerente de cassino paraguaio era algo
que só Thomaz Bastos faria.
O terceiro endereço - um andar inteiro na
avenida Liberdade, número 65, próximo ao fórum central de São Paulo - foi
comprado do advogado Paulo José da Costa. "O Márcio já era um advogado de
prestígio", disse Costa, no escritório que divide com o filho. Nas muitas fotos
pelas paredes, Bastos aparece em festas de aniversário de Costa.
Quando o
ex-ministro voltou a advogar, no ano passado, pai e filho o convidaram para um
almoço. Foi no Parigi, outro restaurante estrelado da rua Amauri. Costa lhe
disse que ficaria feliz se seu escritório pudesse compartilhar algumas causas
com ele. Em conversas desse gênero, é difícil que Thomaz Bastos diga diretamente
um não. Disse que ia ver. Até o final de outubro não tinha dado resposta.
"Talvez ele ache o Fernando muito novo e eu muito entrado nos anos", especulou
Costa.
No novo endereço, Bastos consolidou sua carreira. Criou hábitos
como a graxa diária nos sapatos e a soneca depois do almoço. Manteve as reuniões
sociais de vez em quando, e começou a apostar em estagiários que considerava
inteligentes, nem um pouco preguiçosos, serenos e sedentos por dinheiro e
sucesso profissional. "Gosto de apostar em pessoas, de estimular vocações",
disse. "Não tenho medo de sombra, nem de emulação."
Alberto Zacharias
Toron foi um dos primeiros desses iniciantes. O aprendizado lhe deu fôlego para
o voo próprio e ele montou sua própria banca. Tiveram uma encrenca, há algum
tempo. Toron era advogado do juiz Nicolau dos Santos Neto, o Lalau. Sentiu-se
ofendido quando o jornalista Boris Casoy disse, no Jornal da Record, que réus
como Lalau "têm bons advogados, pagos, aliás, com dinheiro rapinado de todos
nós, e acabam saindo ilesos". Toron entrou com uma queixa-crime contra Casoy e
chamou Thomaz Bastos para tocar a causa. Os advogados do jornalista entraram com
um habeas corpus pedindo o trancamento da ação. Toron dava como certo que Thomaz
Bastos faria a sustentação oral em sua defesa. Mas, para alegria de Casoy,
Bastos mandou Dora Cavalcanti, outra das estagiárias que formou, àquela altura
já uma respeitada criminalista. Toron perdeu, mudou de advogado no recurso ao
STJ, e perdeu novamente. E não desculpou o amigo por não ter feito a
sustentação.
Dora Cavalcanti tinha 22 anos, e estava no 4º ano da
faculdade do largo São Francisco, quando foi pela primeira vez à avenida
Liberdade, 65. "O que eu sei aprendi com o Márcio", disse ela. "Mas trabalhava
como uma camela." Deu um exemplo: quando amamentava sua primeira filha, nem
sempre podia ir para casa. "Eu tirava o leite no escritório, colocava numa
mamadeirinha e pedia para o boy levar para a bebê", contou. O que ela viu em
Thomaz Bastos ao longo de quase dez anos como sócia minoritária (ganhava 2% do
faturamento)? "O cara é bom em tudo. E sempre muito calmo. Pode estar caindo o
mundo e chovendo canivete, ele não se mexe. Só fica triste quando acha que
cobrou barato."
Luiz Fernando Pacheco é outro que começou como estagiário
e virou sócio. Ficou dez anos com Thomaz Bastos e hoje tem um escritório de
andar inteiro no mesmo edifício que dá para o monumento das musas. Das boas
frases que ouviu do dr. Márcio, como o chama, se lembrou de uma: "Um caso tem
que dar pão ou tem que dar glória. Se der os dois, melhor."
Na campanha
de Luiza Erundina à prefeitura paulistana, em 1988, Thomaz Bastos abriu seu
triplex para ajudar os cofres do PT. "Fiz um jantar para arrecadar fundos",
disse. No ano seguinte, apoiou publicamente a candidatura de Lula à Presidência.
"Fiz uma frase de efeito num comício que foi aplaudidíssima: 'Será que um
operário pode ser presidente da República? Não só pode, como deve.'" Ao apoiar o
petista, desagradou dois amigos: Ulysses Guimarães, do PMDB, e o tucano Mário
Covas.
A ligação ficou mais forte depois de um escândalo que envolveu a
prefeitura de Erundina e a empresa Lubeca, que teriam negociado uma suposta
propina de 200 mil dólares. O acusado de negociá-la, para a campanha de Lula,
era o então vice-prefeito de Erundina, o advogado Luiz Eduardo Greenhalgh. No
imbróglio apareceu uma fita, gravada por Eduardo Carnelós, na qual o advogado da
Lubeca, José Firmo Ferraz Filho, dizia que Lula sabia da propina. No diálogo,
Carnelós afirmava não acreditar nas acusações.
Hélio Bicudo e Plínio de
Arruda Sampaio, dirigentes petistas, pediram, em nome de Lula, que Thomaz Bastos
entrasse no caso. "Eu sei que o senhor é um advogado muito caro", disse-lhe
Bicudo. O advogado respondeu que aceitava o caso e não cobraria nada. Brinquei
com Thomaz Bastos dizendo que ele deve ter prescindido da remuneração com
lágrimas nos olhos, e ele deu uma das suas raras gargalhadas.
Qualquer
advogado optaria por um processo de calúnia e difamação contra Firmo - que
afinal era o acusador, sem provas, do candidato a presidente. Mas não Thomaz
Bastos. Ele sugeriu, e Lula aprovou, uma queixa-crime contra Carnelós. Era
perder por antecipação, já que Carnelós não cometera nenhum crime. Mas assim se
evitava a disputa com Firmo, potencialmente mais danosa.
Foi com um
sorriso plácido que Thomaz Bastos justificou a sua estratégia: "Tecnicamente,
era o necessário. Mas avisei antes: 'Isso aqui está perdido, mas temos que
fazer.'" De fato, Carnelós foi absolvido em todas as instâncias, e não houve
desavença com Firmo.
Ele passou a ser o advogado mais ilustre do e de
Lula. Ficaram amigos durante a campanha de 1989, e mais de uma vez o candidato
foi o convidado
de honra em festas na cobertura triplex. Alguns de seus bons
clientes compareciam. Se algum pudesse contribuir para a campanha, como de fato
aconteceu, ele fazia a intermediação. "Nunca me envolvi diretamente com isso",
disse. "Mas, se queriam ajudar, eu encaminhava para a área de
finanças."
Foi naquela campanha, antes do segundo turno contra Fernando
Collor, que Bastos ouviu pela primeira vez uma sondagem para compor o
ministério: "O Plínio de Arruda Sampaio e o Zé Dirceu me perguntaram: 'Você quer
ser ministro da Justiça se o Lula ganhar?' 'Quero', eu disse. Topei na
hora."
"E u defendo os meus clientes da culpa legal. Julgamentos morais
eu deixo para a majestosa vingança de Deus." A frase, em tradução livre de
Márcio Thomaz Bastos, é de Edward Bennett Williams. Está na biografia do
advogado americano, The Man to See, de Evan Thomas. Williams defendia de
mafiosos a presidentes. "I defend my clients against legal guilt. Moral
judgments I leave to the majestic vengeance of God", repetiu o criminalista,
baixinho, se lembrando do original. Estufou o peito quando perguntei se ele é "o
nosso" Williams. "Não sei se chego a tanto", respondeu.
A frase explica a
variadíssima gama de clientes que passaram pela banca da avenida Liberdade, 65,
em dezoito anos de atividade. Um dos mais notórios foi o senador Antonio Carlos
Magalhães - que uma vez reclamou publicamente dos altos honorários do advogado.
Outro foi o bispo Edir Macedo, quando preso, em 1992, sob a acusação de
charlatanismo e arrecadação criminosa de dízimo.
"Quando ele pegou o Edir
Macedo, eu esperneei", disse sua filha Marcela. "Disse: 'Pai, não faça isso.'
Ele falou, com a tranquilidade de sempre: 'E você acha que a Igreja Católica fez
o quê durante todos esses anos?' Eu entendi." Marcela trabalha em marketing e
propaganda e faz doutorado em semiótica. "Ele pega uns casos meio cabeludos",
comentou ela, lembrando-se de outro esperneio, quando o pai defendeu o cacique
Paulinho Paiakan, acusado de estupro. Do temperamento do pai, ela destaca a
fleuma. Se houve exceção, foi no dia em que ele se irritou com um namorado
ciumento demais. "Eu te criei numa democracia e você escolhe a ditadura",
repreendeu-a.
Bastos defendeu acusados de tráfico, corrupção, sonegação
fiscal, atentado violento ao pudor, assassinato, uso de drogas. Recebeu
procuração de empreiteiras, bancos, multinacionais, políticos e empresários de
todos os calibres. Sempre cobrou honorários salgados de quem podia pagar. "Você
sempre cobre caro", ensinou ao sobrinho e sócio José Diogo Bastos Neto. "Se o
cliente ficar assustado, podemos dividir. Se ficar impassível, podemos
conversar." Ele também ouviu do tio, algumas vezes, uma resposta típica a
clientes que falaram coisas como "Não sei como lhe agradecer". Nessas ocasiões,
Thomaz Bastos responde, com um sorriso conquistador: "Depois que os fenícios
inventaram a moeda, esse problema ficou simples de resolver."
De graça,
ou a preço apenas das despesas, ele trabalhou para Lula e o PT, além de casos de
grande repercussão, como o julgamento dos assassinos de Chico Mendes, no Acre,
no qual atuou como assistente da acusação, vitoriosa. No final de 1992,
participou na articulação de juristas pró-impeachment do presidente Fernando
Collor. "Olha o nariz dele ali", disse em sua casa, no Lago Sul de Brasília, o
advogado Marcello Lavenère, presidente da oab naquele momento. O nariz estava
numa grande foto, na parede do escritório caseiro, mostrando uma passeata contra
Collor. Bastos está na sexta fileira.
Entre os imóveis, o predileto do
advogado é a casa de praia em Iporanga, no Guarujá. Há vários anos, sempre em
dezembro, ele convida dúzia e meia de bons amigos - só advogados e
desembargadores - para um almoço interminável. A casa, desenhada por Ruy Ohtake,
tem sauna na mata, adega e quatro quartos para hóspedes. Os encontros tiveram
origem numa "confraria dos homens da lei" da qual fazem parte, entre outros, o
presidente da Câmara dos Deputados Michel Temer, os ministros do Supremo
Tribunal Federal, Cezar Peluso e Eros Grau, e os advogados Antônio Carlos Mendes
(conhecido na roda como "acm do Bem"), Luiz Carlos Aranha e Mário Sérgio Duarte
Garcia.
"É impossível ter encrenca com o Márcio: ele é um conciliador, um
político, uma pessoa de coração enorme", disse Fernando Menezes, outro
integrante da confraria, em seu apartamento, mostrando algumas fotos dos
confrades na casa de Iporanga. Algumas ocorrências na casa entraram para o
folclore. Uma conta que Menezes, algumas caipirinhas depois, desceu do carro,
que mal saíra da porta da casa, despedindo-se dos amigos e elogiando a rapidez
da volta para São Paulo. Outra não foi tão engraçada: um carro bateu fortemente
numa lombada, machucando a cabeça do acm do Bem.
"O Márcio é um homem
que não tem medo de mostrar que está de bem com a vida", disse Antônio Carlos
Mendes, elogiando a hospitalidade do anfitrião. Thomaz Bastos contou que Cezar
Peluso quase foi ministro do Supremo Tribunal Federal nos tempos da confraria,
durante o segundo mandato de Fernando Henrique. "Montamos uma estratégia para
tentar colocar o Peluso no Supremo, e resolvemos que primeiro ele deveria ir
falar com o Serra, que era o ministro da Saúde. O Peluso foi. E o Serra disse:
'Mas se o Fernando souber que o Márcio está apoiando, ele não vai nomear. Tirem
o Márcio da lista de apoio.'" Fernando Henrique soube, e Peluso ficou na
espera.
Quando o criminalista engajou-se na quarta campanha de Lula, em
2002, o seu faturamento mensal estava em torno de 250 mil reais. Com mais os 200
mil que entravam da carteira imobiliária, e mais as aplicações na Bolsa de
Valores (que faz pessoalmente), ele era um dos advogados mais bem-sucedidos de
São Paulo.
No dia em que Lula ganhou a eleição, Maria Leonor achou
estranho que o marido estivesse em casa. "Você não vai comemorar com eles?",
perguntou. "Não vou", disse. "Ele ficou tímido", relatou ela. "Não queria que
parecesse que estava interessado em alguma coisa. Mas um dia o Lula encontrou
com ele, e brincou: 'Olha lá, Marcito, você vai ficar fora do balaio.'" Thomaz
Bastos não se lembra desse detalhe. Semanas antes da posse, ele estava na casa
da filha, visitando a neta recém-nascida, e o celular tocou. O presidente queria
falar com ele.
Marcaram um almoço no dia seguinte, no restaurante do
hotel Blue Tree. Marisa, a mulher do presidente, participou do almoço, e
Gilberto Carvalho ficava entrando e saindo. "No primeiro prato o Lula já falou:
'Você vai ser o meu ministro da Justiça. Mas ainda não quero que você comente
com ninguém.' Eu falei: 'Está bom, presidente'", disse o advogado. "Expliquei
que não queria interferência política nas indicações, e ele disse: 'Você tem
toda a liberdade.'"
Das poucas interferências que o ministro teve, uma
foi um veto de José Dirceu ao antropólogo Luiz Eduardo Soares para ocupar a
Secretaria Nacional de Segurança Pública. "Não nomeia que ele vai criar
problemas", disse-lhe Dirceu. Bastos não aceitou o conselho. Não por morrer de
amores por Soares - longe disso -, mas por reconhecer sua experiência no setor.
Dirceu não se importou muito. Continuam amigos.
Aceita a indicação, ele
vendeu sua parte no escritório da avenida Liberdade, já então com dois andares,
para os sócios Dora Cavalcanti, Sônia Ráo e Luiz Fernando Pacheco. Cobrou 5
milhões de reais, parcelados em curto prazo. "Ele não teve dó, não", contou
Pacheco. Bastos levou dois dias assinando o que estimou em mil termos de
desistência dos processos em que atuava. Para evitar eventuais conflitos de
interesse, passou sua fortuna para a administração do Unibanco, sob o regime de
fundo blindado, em que o banco é autônomo para tomar decisões.
"O Larry
Rother estragou a minha festa na Suíça", disse o ex-ministro, ocupando um dos
oito lugares da mesa, desenhada por Ruy Ohtake, de sua sala de reuniões. A má
notícia de que o presidente Lula queria expulsar do Brasil o correspondente do
New York Times - que escrevera que ele bebia demais - chegou a ele, pelo
telefone, na voz do ministro Luiz Gushiken. Lula ligou pouco depois, em Berna.
"Ele estava puto", contou. "E eu disse que ia tentar negociar uma
saída."
Como o advogado do New York Times, Celso Mori, frequentara a
confraria dos homens da lei, Thomaz Bastos ligou para ele. Surgiu a ideia de uma
carta de retratação de Larry Rother. "Naquele fuso horário do cão, as minutas
iam e vinham, por fax ou e-mail", disse o ex-ministro. "O Mori mandava, eu
mexia, mandava de volta, e assim foi, naquela tensão. De volta ao Brasil, no
aeroporto, eu já tinha uma última versão da carta, aceitável. Mandei para o
presidente. E liguei para ele de São Paulo, para saber a resposta. Ele disse que
não ia aceitar a minuta. 'Eu não gostei da carta', falou." Disciplinado, o
ministro aceitou a decisão do presidente, mas a considerou errada.
Para
desanuviar, convidou Cezar Peluso - agora finalmente ministro do STF, com a sua
unção - para almoçar no restaurante do hotel Cad'Oro, onde a confraria se
reunia. O presidente ligou novamente. "Marcito, pensei bem e vou aceitar a
carta", disse-lhe. Quem fez Lula mudar de ideia sobre a retratação de Rother foi
o publicitário Duda Mendonça. Ele fez uma leitura dramática da carta,
enfatizando a mais não poder as frases de retratação. (Em outubro de 2004,
Mendonça foi preso numa rinha de galos. Seu primeiro telefonema foi para Thomaz
Bastos.)
Fora o caso Rother, Thomaz Bastos é econômico (ou simplesmente
emudece) nos comentários sobre crises do primeiro governo Lula. O mensalão e a
queda do ministro José Dirceu? "Não tive papel de grande relevo", respondeu. Mas
foi seu amigo Arnaldo Malheiros quem defendeu Delúbio Soares, acompanhando-o até
na CPI. Quebra do sigilo do caseiro Francenildo dos Santos Costa e saída do
ministro Palocci? "Isso já foi muito explorado." Thomaz Bastos estava em
Rondônia quando o sigilo do caseiro foi quebrado, mas foi ele quem levou Arnaldo
Malheiros a uma reunião na casa de Palocci quando voltou a Brasília.
No
episódio, o ministro foi criticado por um dos seus grandes amigos, o jurista
Miguel Reale Jr. "Todos os fatos levam a crer que a alma do advogado prevaleceu
sobre a alma do ministro Márcio Thomaz Bastos", disse Reale Jr. numa entrevista.
Bastos, que defendeu a lisura da reunião, nunca o perdoou. Por outro lado, até
hoje há ruído na sua relação com Palocci. O que não impediu que Thomaz Bastos
tivesse acesso à sua defesa no Supremo duas semanas antes do julgamento que o
inocentou. Palocci foi ao escritório levar o cartapácio do advogado José Roberto
Batochio, seu defensor, o único que não é do time de Bastos a atuar em defesa de
ex-integrantes do governo. "Nem eu faria melhor", disse ele a Palocci.
Em
maio de 2006, a revista Veja noticiou que o banqueiro Daniel Dantas tinha uma
lista de contas bancárias em paraísos fiscais do presidente Lula e de outros
integrantes da cúpula do governo, entre eles o ministro da Justiça. Todos
desmentiram, inclusive Thomaz Bastos. Dias depois da publicação da reportagem, o
ministro teve um jantar com Daniel Dantas, na casa do senador Heráclito Fortes,
aliado do banqueiro, para o qual levou os advogados e deputados petistas
Sigmaringa Seixas e José Eduardo Cardozo. O ministro disse que foi Daniel Dantas
quem organizou o jantar. Já o banqueiro falou que foi Thomaz Bastos quem tomou a
iniciativa de marcar o encontro.
O grupo jantou na varanda da casa de
Heráclito. No bate-papo inicial, Thomaz Bastos comentou os ataques, na véspera,
do Primeiro Comando da Capital, o pcc. E disse que o governo não negociaria com
os chefes do bando que estavam presos, para não correr o risco de ficar refém de
criminosos. Daniel Dantas entendeu que a afirmação era uma referência indireta
às supostas contas ilegais nos exterior - ou seja, o governo não negociaria nada
com o banqueiro - e imediatamente concordou com o raciocínio, até mesmo porque
não tinha certeza da existência das tais contas. E entregou uma carta ao
ministro negando ter sido ele quem entregou o dossiê à revista.
Thomaz
Bastos disse, no Parigi, que jamais pensou em negociar o quer que fosse com
Dantas. E disse ao banqueiro que o governo acreditava que fora ele, sim, a fonte
da revista. No mais, na lembrança de Bastos, "a comida estava cheia de alho e
cebola, tinha todo o jeito de ter sido encomendada num restaurante, e o vinho
era ruim".
O advogado contraiu o semblante ao ouvir, na sala onde guarda
sua coleção de miniaturas de advogados, que ele poderá entrar para a história
como um ministro da Justiça que foi principalmente defensor do presidente Lula.
Mas, se esforçando por parecer indiferente, disse: "Daqui a cinquenta, 100 anos,
vou entrar para a história como o ministro que fez a reforma do Poder Judiciário
e uma revolução na Polícia Federal." Cinquenta anos é o prazo que deu para a
abertura do diário que escreveu quando era ministro. O relato, segundo ele,
compromete alguns amigos.
O escritório do advogado Luiz Olavo Baptista
ocupa dois andares de um prédio da avenida Paulista. Numa tarde fria, ele vestia
calça de veludo e uma malha sobre a camisa xadrez verde e branca. Baptista, que
tem 71 anos e 45 de carreira, defendeu presos políticos durante o regime
militar. Em junho de 2005, policiais federais chegaram ao seu escritório às seis
horas da manhã. Tinham um mandado judicial de busca e apreensão - e o cumpriram
com grande estrépito. Baptista estava em Paris, de férias. "Quando me avisaram
da invasão, tive a sensação de ter voltado aos tempos da ditadura", contou,
emocionado. Observei que, tecnicamente, não fora uma invasão, mas o cumprimento
de um mandado judicial. "Chamar puta de hetaira não vai mudar as coisas",
respondeu Baptista, sério. "A responsabilidade pela invasão foi do ministro
Thomaz Bastos".
Os advogados ficaram em pé de guerra, o que foi um
problema para o seu sobrinho José Diogo Bastos, que era o presidente da
associação da categoria. Durante uma reunião na oab, que exigia o fim das
chamadas "invasões", foi apresentada uma moção para a retirada do retrato de
Thomaz Bastos da galeria dos presidentes da entidade. O sobrinho ligou na hora
para o ministro-tio e lhe relatou a situação. Ouviu de volta um "Puta que o
pariu!" não muito frequente, e bateu-se em sua defesa num discurso candente. "O
importante é que não tiraram o retrato", disse-me o ministro.
Dias depois
da assembleia, Thomaz Bastos assinou portarias que pretenderam coibir o
exibicionismo da Polícia Federal. Houve colegas que o perdoaram, como Jorge
Eduardo Prada Levy, cujo escritório também foi revistado. E houve quem não o
perdoasse, caso de Luiz Olavo Baptista e Zulaiê Cobra Ribeiro. "Aquilo foi um
absurdo, e a responsabilidade foi do Márcio", disse a advogada.
"Eu sabia
que reestruturar a Polícia Federal implicava riscos", disse o ex-ministro na
sala onde guarda, entre outras condecorações, um diploma de agradecimento do
Sindicato dos Delegados da pf de São Paulo. "Sei que houve excessos e abusos,
que procurei coibir. Mas entendo a mágoa do Luiz Olavo
Baptista."
Cruzeiro se beneficiou com a passagem do filho ilustre pelo
Ministério da Justiça. Lá ele instalou uma sede da Polícia Federal, que foi
inaugurar pessoalmente em setembro de 2005, apesar de a região ter quatro
municípios bem maiores - Taubaté, Pindamonhangaba, Jacareí e Guaratinguetá. A
sede da pf fica em um prédio de dois andares, pintado de preto e azul, no qual
trabalham três delegados, dois escrivães e vinte agentes. "Temos 600 inquéritos
tramitando aqui", informou o delegado Dércio José Carvalheda Jr. "A maioria é
por sonegação fiscal." Acha que a cidade merecia ter a sede, quando outras
maiores não têm? "Aí eu não sei, só se eu tivesse a visão macro que um ministro
deve ter", respondeu o delegado.
O ministro também influiu para levar a
Cruzeiro uma sede da Justiça Federal. Pediu a gentileza à desembargadora Diva
Malerbi, sua amiga, quando ela era presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª
Região. Foi ela quem criou o Juizado Especial Federal Cível de Cruzeiro, em
dezembro de 2006, também inaugurado por Thomaz Bastos.
Um ano e um mês
depois - quando ele não era mais ministro - a desembargadora Marli Ferreira,
nova presidente do tribunal da 3ª Região, mandou fechá-lo. Ali transitavam, na
ocasião, 3 600 processos. Hoje, funciona uma distribuidora de
pescados.
"O ministro Márcio realmente me pediu para pensar a respeito",
contou a desembargadora Diva Malerbi. "Eu pensei, mandei pesquisar, vi que ia
beneficiar 27 municípios, com um total de 1 milhão de habitantes, e preencheria
os claros do atendimento da Justiça a esse povo tão precisado." Neste momento, a
desembargadora emocionou-se. Foi às lágrimas, e aos lenços de papel, quando lhe
perguntei por que sua sucessora mandou fechá-lo. "Foi uma desumanidade, mas isso
eu não posso lhe dizer", respondeu.
A desembargadora Marli Vieira não
quis dar entrevista. Mas mandou a nota técnica que embasou sua decisão. Ela tem
dois pontos: custo elevado de manutenção de uma estrutura jurisdicional não
prevista por lei e inexpressiva demanda judicial local devido à dificuldade de
acesso dos jurisdicionados das cidades do entorno. Diz, ainda, que a manutenção
do órgão acarretou "o dispêndio de recursos públicos diretamente contrários aos
princípios constitucionais orçamentários da legalidade, legitimidade e
economicidade". Em visita que fez à cidade depois de ter deixado o Ministério,
Bastos reclamou publicamente do fechamento do Juizado Federal de
Cruzeiro.
Às dez da manhã de uma segunda-feira, o ministro Carlos Ayres
Britto, do Supremo Tribunal Federal, estava em seu apartamento funcional, em
Brasília. Vestia blazer sem gravata, e não disfarçava a cara de sono. Fora
dormir às cinco e meia da manhã, quando terminou de escrever um artigo jurídico.
"Nós, os poetas, tocamos na palavra como quem toca na realidade", disse, no sofá
de sua sala de visitas. Britto, sergipano, é poeta com cinco livros publicados.
O último tem o título de Varal de Borboletras - ele é um craque em trocadilhos.
"O Brasil ainda não chegou na idade da ração", lê-se, por exemplo, no Varal,
além de achados como "Que danosa persistência: a influência do tráfico e o
tráfico de influência".
Foi Thomaz Bastos que fez Ayres Britto ministro
do Supremo - um dos sete que avalizou, dos onze que hoje integram a Cote.
Conheceram-se na oab, quando Bastos era presidente. Indicou Britto, como
conselheiro, para uma Comissão de Estudos Institucionais que abastecia
a
discussão constituinte. Reencontraram-se quando Bastos virou
ministro.
"Ele me chamou no gabinete para dizer que eu me preparasse
psicologicamente para a possibilidade de ser indicado a ministro do Supremo",
contou Britto. As palavras do ministro da Justiça, na sua memória, foram:
"Carlinhos, o Celso Antunes, o Fábio Comparato e outros intelectuais estão
patrocinando sua candidatura a ministro do Supremo. O difícil é saber quem gosta
mais de você: se o presidente da República ou o ministro da Justiça."
"A
coisa tem futuro", achou Britto. Era abril de 2003. Em junho, o presidente Lula
o indicou. "Eu e o Márcio somos democratas sociais, irmãos de ideias e de ação",
disse o autor de DNAlma, o provável título de seu próximo livro.
Ambos os
ministros - um do Executivo, outro do Judiciário - amiudaram a relação na
convivência brasiliense. "Nós passamos a tomar os nossos vinhos em alguns
jantares", disse Ayres Britto. "Ele cuida do físico, e eu também. Não como
carne, nem peixe, nem frango. Teve olho, eu não como. O Márcio sempre me
perguntava: 'Carlinhos, e essa sua calma, esse seu modo zen de ser?' Eu
respondia: 'Márcio, eu faço meditação oriental há dezessete anos.'" E foi assim
que o ministro da Justiça aprendeu meditação, como também me
contou.
"Expliquei a posição budista de lótus, a ficar ereto, numa
postura de atenção, olhos fechados como quem está acordado, e de relaxamento
como quem está dormindo, atento, mas não tenso. Aos poucos você vai percebendo
que o seu papel é observar o que vai passando na passarela da sua mente",
explicou Ayres Britto. Thomaz Bastos não chegou a todo esse entusiasmo.
Experimentou por uns tempos, se animou mais quando Britto acrescentou que os
exercícios eram vasodilatadores, mas, pragmático como um fármaco de ação
instantânea, nunca passou de um simpatizante.
Thomaz Bastos não tem mais
idade para ser ministro do Supremo. E disse que não gostaria de ter sido: "Não
tenho vocação de juiz. Eu nunca ia ser um bom juiz. Eu sou parcial. Eu escolho
lado. Não tenho aquela distância dos fatos."
Eros Grau, outro juiz do
Supremo, ficou amigo de Thomaz Bastos nos anos 60, quando trabalhavam para a
Companhia de Melhoramentos de Paraibuna. Em novembro de 2002, hospedaram-se no
mesmo hotel, em Salvador, durante uma conferência da oab. Já escolhido ministro,
Bastos o chamou ao apartamento que ocupava e lhe disse: "Haverá três vagas no
STF e o seu nome está na cabeça do presidente da República." Eros Grau pediu
para não ser indicado naquele ano - quando acabou entrando Cezar Peluso, que
Fernando Henrique não indicara.
Na Semana Santa de 2004, Grau descansava
em Tiradentes, em Minas, e o ministro da Justiça ligou. "Você é o novo ministro
do STF, mas ainda não conta para ninguém", disse. O novo juiz tomou posse em
junho. "Tive dificuldades de me acostumar com as formalidades", contou. Exemplo
foi a visita que lhe fez um velho amigo de mesa de bar. "Excelência!", saudou-o,
quando Eros Grau o recebeu no gabinete do STF. "Excelência é a puta que o
pariu!", respondeu.
"O Márcio é um cara agudo e sereno", disse Grau. "É
um sujeito capaz de equacionar todos os dados de um problema. Ele fez isso para
o presidente da República. Foi ao mesmo tempo ministro, advogado e conselheiro.
Conseguiu ser as três coisas, quando uma coisa normalmente anula a
outra."
Cármem Lúcia Antunes Rocha foi convidada, no início de 2006, para
um almoço em Belo Horizonte com o ministro da Justiça, que fez algumas
perguntas, mas não falou nada de concreto. "Ele é discreto como os mineiros, até
o silêncio dele fala", disse a ministra em sua mesa de trabalho. Cármen Lúcia
entendeu que era uma sondagem, mas também ficou calada. Num telefonema
posterior, o ministro disse que havia uma cogitação sobre o nome dela. Em maio,
avisou-lhe que seria indicada juíza do STF. "Ele e o presidente Lula me
ofereceram uma oportunidade única, pela qual eu sempre vou ser grata",
afirmou.
"Gostei demais de ser ministro, mas estava na hora de sair",
disse Márcio Thomaz Bastos sobre sua saída do governo, em março de 2007, no
começo do segundo mandato de Lula. O presidente pediu que ele ficasse, até
insistiu, mas ele não quis. "Fui para fazer uma coisa que sabia o que era - a
reforma do Judiciário, por exemplo. E voltei para fazer o que eu gosto. Estou
muito mais alegre agora do que eu estava quando era ministro."
Quando vai
a Brasília a trabalho, o ex-ministro passa no Planalto para um abraço em
Gilberto Carvalho, na ministra Dilma e, quando possível, no presidente. Ligou
poucas vezes para falar com ele. Acha mais adequado que o presidente telefone,
na eventualidade de querer lhe falar. Se foi chamado para alguma questão
relevante, Thomaz Bastos não conta. Também não comenta a atuação do seu
sucessor, Tarso Genro, mas não esconde que não foi ele quem o indicou. Já com
Dilma conversa com frequência. Levou-a para jantar no Vecchio Torino, outro
restaurante nas imediações da Faria Lima.
Como influi na indicação de
oito ministros do STF - incluindo o falecido Carlos Alberto Menezes Direito* - e
de vários do Superior Tribunal de Justiça - , sem contar seu prestígio, sem
contar seu prestígio em setores da Polícia Federal, ele resolveu não advogar
durante alguns meses. "A quarentena não era obrigatória, mas eu me impus isso",
falou. O plano era passar uma temporada na Europa. Embarcaria em maio de
2007.
Bastos é hipocondríaco. Não dos que vivem tomando remédios, mas dos
que não perdem oportunidade de fazer exames médicos. "Faço toque de próstata
desde 1990, sem maiores traumas e sem maiores atrações", disse. Antes da viagem
à Europa, fez um check-up. No dia 24 de abril, ao conferir o resultado de uma
radiografia, leu: "Concavidade espessa de 3 centímetros no lóbulo superior
esquerdo." Assustou-se. "Eu já estava me sentindo fodido", contou.
Uma
tomografia confirmou a suspeita: tumor no pulmão. No começo de maio, uma biópsia
feita por Isidio Calich completou o diagnóstico. "Deu maligno e você vai ter que
operar", disse-lhe o médico. "Mas as células são grandes e a chance de metástase
é pequena." O oncologista Riad Yunes, do Hospital Sírio-Libanês, optou por uma
ablação total do lado atingido do pulmão, o esquerdo.
Yunes fez a
cirurgia no dia 9 de maio. Foram quatro dias de hospital, um deles na terapia
intensiva. "O tumor saiu inteiro, a sorte foi o check-up", disse o ex-ministro.
Ele não aceitou a opinião médica de que a quimioterapia não era necessária. "Vou
fazer assim mesmo", disse para Malheiros Filho. "Márcio, o médico disse que não
é preciso!", retrucou o amigo. "Se bem não fizer, mal não vai fazer", decidiu. A
quimio foi feita sob os cuidados de Drauzio Varella.
Retomou a advocacia
no final de 2007. Poderia ter voltado à velha turma da avenida Liberdade, 65,
mas achou que seus mais de quatro anos de ausência mudaram hábitos e métodos no
escritório. Optou por um sistema diferente: advocacia com parcerias. "Pego os
casos e trabalho com alguns escritórios", explicou. Entre os seus parceiros
estão Dora Cavalcanti, Sônia Ráo & Luiz Fernando Pacheco e Arnaldo Malheiros
Filho.
O ex-ministro sempre emposta a voz ao atender o telefone. Mesmo um
simples "Alô" sai com ponto de exclamação. Sendo um "Ministro!", nem se fala.
Foi assim, numa tarde de setembro, quando atendeu uma ligação do advogado-geral
da União, José Antonio Dias Toffoli. Ele mencionara o nome de Toffoli no início
do mês. Bastos abriu com cuidado a porta da sala em que seu sobrinho José Diogo
me dava uma entrevista, e perguntou: "Vocês viram que o Direito morreu?",
referindo-se ao ministro do Supremo Carlos Alberto Menezes Direito, que falecera
naquela madrugada. Quem será o substituto?, perguntei. "O Toffoli", respondeu
sem hesitar. Agora, passados uns dias, era Toffoli quem
ligava.
"Ministro!!!", saudou-o Thomaz Bastos. "Agora é força total. Pode
deixar que eu vou cuidar. Qualquer avanço você me liga, está bom? Abração,
querido." Minutos depois, nova ligação de Toffoli. O ex-ministro ouviu e só
falou no final: "Tudo bem. Eu vou falar com o nosso baixinho." É como ele se
refere a Gilberto Carvalho. Toffoli foi nomeado ministro semanas
depois.
O carioca Luis Felipe Salomão, de 46 anos, é o ministro mais novo
do Superior Tribunal de Justiça. Quando tinha 23, em 1986, foi transferido para
Cruzeiro, onde foi promotor. Thomaz Bastos não morava mais lá há décadas, mas
foi advogado de um médico local que Salomão indiciara em inquérito por suposto
erro durante um parto. O médico foi preso. "Você é um bom promotor, tem muito
futuro, mas nesse caso específico, tomado pela paixão, está cometendo um erro",
disse-lhe o advogado no intervalo de uma audiência. Thomaz Bastos conseguiu a
soltura e a absolvição do médico.
Reencontraram-se muito tempo depois,
quando Thomaz Bastos era ministro da Justiça e Salomão, já desembargador,
presidia a Associação dos Magistrados do Rio de Janeiro. "O senhor se lembra de
um rapaz que era promotor em Cruzeiro?", perguntou Salomão. "É claro que lembro
de você, Salomão", respondeu o ministro.
O ministro deixou de ser
ministro, o desembargador continuou desembargador e, no ano passado, Salomão
entrou na lista quádrupla dos que poderiam ser indicados para o Superior
Tribunal de Justiça, a critério do presidente Lula. Salomão foi ao escritório da
Faria Lima. "Estou na lista e queria o seu apoio", disse. "Vou falar com o
presidente", prometeu o ex-ministro da Justiça.
No começo de junho,
Bastos ligou de volta. "Já dei meu depoimento a seu favor, está tudo bem
encaminhado", disse-lhe. Três dias depois, Salomão foi nomeado ministro do STJ.
Voltou à Faria Lima, para agradecer, e lhe deu de presente uma gravata
azul-clara da Elle et Lui (no valor
de 85 reais, das mais baratas da coleção
de Thomaz Bastos). "Fiz o que achei melhor para o país e para o Tribunal",
respondeu o criminalista ao desembargador.
Salomão depois homenageou o
ex-ministro com um jantar. "O vinho tem que ser bom", brincou Thomaz Bastos ao
ser convidado. O escolhido foi o argentino Catena Zapata. Tomaram algumas
garrafas, comeram um cordeiro de forno, e o advogado, um divertido contador de
histórias, foi o centro das atenções. Usava a gravata azul-clara.
É no
escritório da Faria Lima que Thomaz Bastos tem passado boa parte de seu tempo -
advogando como nunca, prestando consultoria e cobrando, assumidamente,
honorários superiores aos de qualquer outra banca criminalista. Para a
construtora Camargo Corrêa, que tem diretores e funcionários como alvos de
inquérito na Polícia Federal - na Operação Castelo de Areia -, ele cobrou 15
milhões de reais, um recorde. A empreiteira aceitou e se comprometeu a pagá-los
no período de um ano. A cifra não inclui os honorários dos escritórios que o
próprio Thomaz Bastos escolheu para atuar na causa: Malheiros Filho, Celso
Vilardi, Dora Cavalcanti, Luiz Fernando Pacheco e Sônia Ráo. Cada um deles
levará, em média, 1,5 milhão de reais.
No final de novembro, o repórter
Fausto Macedo publicou, n'O Estado de S. Paulo, que a investigação da Polícia
Federal sobre a Camargo Corrêa indicava pagamentos da empreiteira a políticos e
administradores públicos. Entre 1995 e 1998, os pagamentos chegaram a 178
milhões de reais, em valores da época. Um dos beneficiados, segundo o Estadão,
foi o deputado Michel Temer. Hoje presidente da Câmara dos Deputados, ele teria
recebido quase 300 mil dólares. Temer não quis me dar entrevista.
O caso
Camargo Corrêa provocou um dos raros atritos do ex-ministro. Ele se deu com
outro totem da advocacia criminal paulista - Antônio Cláudio Mariz de Oliveira,
afamado pelo pavio curto, que ganhou até neologismo nos meios jurídicos: as
"marizadas". Eles eram bons colegas desde tempos imemoriais e Bastos, ministro,
o nomeou para a presidência do Conselho Nacional de Política Criminal e
Penitenciária, cargo não remunerado. Mariz o exerceu sem uma única trombada com
o ministro.
Advogado criminal da Camargo Corrêa desde os anos 90, Mariz
assumiu o caso Castelo de Areia. Entrou com habeas corpus para soltar os
diretores presos e fez reuniões com os soltos, que viviam em pânico. Um deles,
engenheiro, lhe disse numa reunião na sede da empresa: "Doutor Mariz, eu acordo
às sete da manhã, faço a barba, tomo café, ponho o terno e fico aguardando a
polícia chegar." Até com duas das herdeiras de Sebastião Camargo ele esteve,
acalmando-as e orientando sobre o que fazer. Pediu 1,8 milhão de
honorários.
Mas ocorre que Carlos Pires, o presidente da Camargo Corrêa,
é amigo de Márcio Thomaz Bastos, que o chama de Caco. Foi ele quem contratou o
ex-ministro para entrar no caso e avisou Mariz que trabalhariam juntos. Mariz
concordou.
Em junho passado, quando os diretores da empresa foram
denunciados pelo Ministério Público, Carlos Pires, Thomaz Bastos e Mariz
combinaram um almoço, no restaurante Freddy, para definirem uma estratégia. A
conversa tratou da necessidade de novos advogados, já que os réus eram sete.
Pires citou os nomes que já estavam escolhidos: Arnaldo Malheiros Filho, Celso
Vilardi e Sônia Ráo. Todos ligados ao ex-ministro. Mariz abespinhou-se e
perguntou a Pires de que cartola ele tirara aqueles nomes. O empresário
enrolou-se. "Ora, é evidente que quem indicou foi o Márcio, não foi Márcio?",
perguntou ele ao amigo. "Não fui eu, não", respondeu Thomaz Bastos com
veemência. Aborrecido, Mariz disse que estava fora do caso - e efetivamente
saiu.
Findo o almoço, Mariz deu carona para Thomaz Bastos. Reiterou sua
contrariedade por terem vindo com a lista pronta de novos advogados, e o
ex-ministro continuou negando responsabilidade pela indicação dos nomes. No dia
seguinte, Thomaz Bastos ligou para Mariz e perguntou se queria que ele saísse do
caso. Mariz disse que não.
"Achei que o Márcio me desconsiderou, e fiquei
realmente magoado", disse no seu escritório, onde as balas e os chocolates têm
invólucro personalizado. "Houve uma descortesia, e ele sabe." Thomaz Bastos não
quis se estender sobre o caso. Mas disse: "O único sujeito que vai falar mal de
mim é o Mariz. Nós fomos grandes amigos, mas tivemos um mal-estar, e ele acabou
saindo da causa." Os 15 milhões de reais que o ex-ministro está ganhando da
empreiteira são mais do que o dobro do faturamento do escritório de Mariz no ano
passado.
Desde que reabriu a banca, o ex-ministro conseguiu quase
cinquenta novos clientes. Entre eles estão o empresário Eike Batista, a dona de
lojas de luxo Tania Bulhões, a Federação Brasileira de Bancos (num proveitoso
desvio cível, em parceria com o advogado Ives Gandra Martins) e a advogada Carla
Cepollina, denunciada pelo assassinato do coronel Ubiratan Guimarães. Defende
Cepollina gratuitamente, pelo desafio e pelo potencial de repercussão do
caso.
Um dos novos clientes fez Marcela Bastos dar outro esperneio - o do
médico Roger Abdelmassih, denunciado e preso por estupro e abuso sexual de
dezenas de pacientes. "Senti um friozinho na barriga quando soube", disse a
filha do ex-ministro. O caso já tinha dono. Era José Luis Oliveira Lima, de 43
anos. No seu escritório, no Edifício Itália, Oliveira Lima, que os amigos chamam
de Juca, tem fotos de um cliente famoso abraçando seus filhos, o ex-ministro
José Dirceu.
Thomaz Bastos telefonou para Oliveira Lima, em setembro, e
disse: "Juca, querido, fui convidado para entrar no caso do Roger. Você se
importa?" "Imagina, dr. Márcio, é uma honra", respondeu o colega. O ex-ministro
entendeu que Oliveira Lima não gostou. Passaram a trabalhar juntos para tirar
Abdelmassih da cadeia. Não conseguiram, e o caso subiu para o Supremo Tribunal
Federal.
Na sala de onde contempla as musas esculturais da Faria Lima,
Márcio Thomaz Bastos tem, num cabideiro, duas becas. Uma ele comprou em Paris,
por 500 euros, e nunca usou. A outra, surrada, é a de estimação. Para um
supersticioso como ele - não pode ouvir a palavra azar que bate na madeira -, a
velha beca lhe dá sorte. Uma vez, a esqueceu antes de um júri e Luiz Fernando
Pacheco teve que ir buscá-la, na avenida Liberdade 65. Thomaz Bastos lhe disse
que queria ser enterrado com a beca velha. É a tradução indumentária de uma de
suas frases: "Eu fui ministro quatro anos e uns meses, e advogado por 45 anos. O
que eu sou mesmo é advogado."
* Alteração em relação à versão impressa.
11 de abril de 2012
revista piauí ed.67