Hoje é sexta-feira, dia de um pouco mais de amenidades. Se é que sujeira é amenidade, o jornalista Eduardo Bueno, um pesquisador incansável da História do Brasil, tem um livro que, embora se chame "Passado a Limpo", tem mais porcarias que qualquer outra coisa.
Em “Passado a Limpo – História da Higiene Pessoal no Brasil” ele revisa a evolução das práticas públicas e privadas de higiene no Brasil. O livro começa com um resumo da evolução da limpeza pessoal no mundo, para então examinar, com mais detalhes, as particularidades do Brasil.
O contraste entre a sujeira dos viajantes portugueses e a relativa limpeza dos índios, as péssimas condições sanitárias do Rio de Janeiro imperial e até o estilo de cabelo de Lula e de Collor na eleição de 1989 são alguns dos temas.
Um trecho do livro:
O Brasil descobre a sujeira
Os homens peludos estavam na proa. Os homens pelados estavam na praia. No instante em que se encontraram, no alvorecer de 22 de abril de 1500, o Brasil entrou socialmente no curso da história. Os homens peludos vinham do leste a bordo daquilo que os homens pelados julgaram ser “montanhas flutuantes”. Após 44 dias em alto-mar, os peludos estavam fatigados – e imundos, embora, como se verá, sua sujeira não estivesse ligada apenas àquela cansativa navegação.
Os pelados também tinham vindo do leste – mas haviam chegado àquela praia de areias faiscantes havia mais de quinze séculos.
Os peludos tinham barbas e vastas cabeleiras sebosas. Os pelados não estavam apenas desnudos, mas depilados. Os barbudos, quase todos, eram gordos ou magros demais e seus dentes, quando os tinham, estavam cariados. Os depilados exibiam dentes alvos, “bons rostos e bons narizes”, “cabelos corredios e bem lavados”, troncos, pernas e braços musculosos.
Os barbudos raramente tomavam banho, mas a óbvia ausência de chuveiros em suas embarcações nada tinha a ver com aquilo: mesmo quando se achavam em sua terra natal, costumavam lavar-se “de corpo inteiro” apenas duas vezes… por ano. Já os depilados pareciam anfíbios: banhavam-se nos rios, nas cachoeiras ou no mar de dez a doze vezes… por dia.
Não havia mulheres entre os peludos: elas haviam ficado em casa, a milhares de quilômetros dali, com seus afazeres e seus muitos pêlos. Para sorte delas, julgava-se que a presença feminina a bordo “dava azar”. Já os pelados que se amontoavam na praia - “obra de 60 ou 70” – eram de ambos os sexos, e as mulheres exibiam suas vergonhas “tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que nós, de as muito bem olharmos, não tínhamos vergonha alguma”.
Os peludos eram portugueses, e estavam sob o comando do rígido capitão que atendia pelo nome de Pedro Álvares Cabral. Os pelados se autodenominavam “tupis” (“os primeiros”, em sua língua), e os portugueses julgaram que eles não tinham “nem fé, nem lei, nem rei”. De seu encontro – e futuros desencontros – nasceria o Brasil.
O momento histórico foi registrado em minúcias pelo cronista Pero Vaz de Caminha. Em sua carta inaugural, tão plena de viço e vigor, Caminha fala da bondade das águas e dos ares, da salubridade do clima e da beleza virginal do território então descoberto. Seu texto soa como um cântico à saúde não só da nova terra – “de águas infindas e de tal maneira graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo” –, mas de seus habitantes nativos.
Dos homens pelados que circulavam pela praia, diria o cronista: “Andam muito bem curados e muito limpos. E nisso me parece que são como aves ou animais monteses, aos quais faz o ar melhores penas e melhor cabelo que aos mansos, porque os corpos seus são tão limpos, tão gordos e tão formosos, que mais não podem ser”.
Mas não eram apenas os bons ares que faziam os indígenas tão saudáveis; Caminha supôs que a dieta equilibrada também contribuísse para o bom estado dos nativos: “Não comem eles senão deste inhame (a mandioca), que aqui há muito, e das sementes e frutos que a terra e as árvores lançam de si. E com isso andam tais e tão rijos, que o não somos nós tanto, com tanto trigo e legumes comemos”.
Apesar da fertilidade luxuriante, a terra recém-encontrada não revelou, à primeira vista, possuir “ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal”. Mas tal constatação não pareceu perturbar Caminha, pois, segundo ele, “o melhor fruto” que dela se poderia tirar não eram lucros materiais, mas a conversão dos nativos à “verdadeira religião”, tarefa que, acreditava ele, seria facilitada pela própria saúde e evidente asseio de seus habitantes: “Creio que essa gente se há de se fazer cristã e crer em nossa santa fé, pois Nosso Senhor, que lhe deu bons corpos e bons rostos, como a bons homens, aqui nos trouxe, e creio que não foi por outro propósito”.
Tal viria a ser o impacto da carta de Caminha no processo de construção do imaginário nacional que, cinco séculos depois, o senso comum ainda julga que seu relato foi o único registro sobre o desembarque oficial dos portugueses em terras hoje brasileiras. Mas o fato é que várias outras missivas foram redigidas ao longo dos dez dias em que a frota de Cabral permaneceu ancorada nas águas translúcidas de Porto Seguro, no sul da Bahia. Ainda assim, apenas um outro relato sobreviveu à voragem do tempo: é a chamada Carta de Mestre João. Como o profético texto de Caminha, também ela faz alusão direta às questões de higiene pessoal – só que, nesse caso, a dos próprios portugueses… .
Após pesquisas meticulosas, os historiadores descobriram que mestre João era Juan Faras, um “bacharel em artes e medicina” que fora “cirurgião particular” de D. Manuel, rei de Portugal. Embora se detenha na análise do céu e das estrelas dos trópicos – a carta seria responsável pelo batismo do Cruzeiro do Sul –, Mestre João revela que estava com “uma perna muito mal, que de uma coçadura se me fez uma chaga maior do que a palma da mão”. O que pode ser mais revelador das condições higiênicas a bordo das naus e caravelas do descobrimento do que o fato de um médico, muito possivelmente cristão-novo, bem versado em questões de saúde, ter sido atingido por uma doença de pele, fruto, é certo, de contágio, mas também do desleixo pessoal?
Os imundos “quartéis flutuantes”
As narrativas da época de fato pintam um quadro aterrador da imundície e da falta de higiene a bordo dos autênticos quartéis flutuantes que eram os navios lusos dos séculos 15 e 16. Graças à rígida disciplina militar imposta pelos capitães, a vida organizava-se rotineira e regrada na promiscuidade hierarquizada das cobertas e entrecobertas das embarcações – que os enjôos e o relaxamento iam tornando progressivamente “sujas e infectas, porque a maior parte da gente não toma o trabalho de ir acima para satisfazer suas necessidades, o que em parte é causa de morrer ali tanta gente”, como atestou o viajante Pyrard de Laval.
Embora fidedigno, o depoimento de Laval é um tanto rigoroso: afinal, é bem conhecido o fato de que muitos dos homens a bordo eram marinheiros de primeira viagem; por isso, tão logo os navios venciam o banco dos Cachopos, na barra do Tejo, sacolejando nas ondulações do mar-oceano, os novatos começavam a vomitar, “sujando-se uns aos outros”. Vários deles passavam tão mal que sequer conseguiam se mexer, deixando-se ficar prostrados nos porões – e lá fazendo todas suas necessidades.
Além disso, não havia banheiros nas embarcações – o que, aliás, não consistia surpresa alguma, na medida em que tais instalações inexistiam nas próprias cidades européias. Se urinar não configurava problema – bastando, para tal, aproximar-se das amuradas e aliviar-se no mar –, o mesmo não ocorria no momento em que era chegada a hora de esvaziar os intestinos. Nesse caso, os marujos serviam-se de baldes deixados no convés para aquele fim. Depois de usados, eles eram atirados ao mar, presos por uma corda.
Girando na água à medida que os navios seguiam seu rumo, os baldes eram puxados para bordo e usados outra vez. Para limpar-se, não havia nada que se assemelhasse com papel higiênico: os marujos serviam-se de uma corda sempre suspensa na amurada, com a ponta desfiada dentro da água. Essa espécie de pincel encharcado era içado para bordo e, depois de cumprir sua função, voltava a ser mergulhado no mar.
Os problemas de higiene não se limitavam aos mais óbvios. Baseada nos “biscoitos de marear” – espécie de bolacha, dura e seca, “via de regra toda podre das baratas e com bolor mui fedorento” –, a alimentação a bordo revelava-se precária e deficiente, raramente ultrapassando 1500 calorias diárias.
Embora fidalgos e religiosos dispusessem de seus próprios víveres, não conseguiam protegê-los da podridão e dos vermes. Os animais vivos e aves de criação levados para bordo, bem como qualquer alimento fresco, esgotavam-se rapidamente, ao passo que o intenso calor equatorial ia rançando e estragando tudo o que já não apodrecera devido à umidade – flagelo permanente nos barcos de madeira.
“Os víveres que nos restavam encontravam-se podres e largavam um cheiro tão repugnante que o momento mais duro de nossos tristes dias eram aqueles em que a sineta de bordo tocava para anunciar as refeições”, anotou em 1769 o viajante francês Louis-Antoine de Bouganville. “Que alimentação era a nossa, Deus meu! Bolachas cheias de mofo, e carne que nem os mais intrépidos podiam suportar o odor depois que a dessalgavam”.
O lamento de Bouganville soa quase despropositado se comparado aos horrores vividos dois séculos e meio antes pela tripulação de Fernão de Magalhães. “Para não morrermos de fome”, narra o italiano Pigafetta, um dos poucos sobreviventes e o principal cronista da expedição que em 1521 se tornaria a primeira a dar a volta ao mundo, “chegamos ao terrível transe de comermos os couros que revestiam os mastros.
Estavam tão duros que os deixávamos de molho no mar por cinco dias e então os cozinhávamos por longas horas. Muitas outras vezes, comíamos apenas serragem; e até os ratos, tão repugnantes ao homem, se tornaram um manjar disputado, pelo qual havia quem pagasse meio ducado”.
Em meio à vastidão salgada do oceano – longe das plataformas continentais e dos bancos de pesca –, a água doce constituía uma dificuldade adicional: armazenada em tonéis, logo adquiria cor turva e péssimo gosto, pois a madeira reduzia os sulfatos, transformando-os em cloretos nauseabundos, sem falar do acúmulo de bactérias, responsáveis por diarréias e infecções. Quanto à água da chuva recolhida ao largo da costa da África, o padre Andrés de Cabrera não hesitou em afirmar, em 1564, que possuía a “virtude de se converter em larvas em menos de uma hora”.
Como não é difícil supor, em meio a condições de higiene tão precárias, pululavam as mais variadas pestes e moléstias. Embora atingissem aos marujos, a maioria deles já havia adquirido anticorpos e, por uma dramática ironia da história, as doenças iriam se revelar inestimáveis aliadas no processo da conquista colonial, já que dizimariam os nativos. Embora muitos marinheiros sobrevivessem às enfermidades inúmeros sucumbiam nos naufrágios, já que dois de cada três navios que zarpavam de Lisboa não retornavam.
Além disso, à medida que as viagens foram ficando cada vez mais “largas” – enquanto prosseguia a obsessiva busca dos portugueses pelas riquezas da Índia –, uma nova e devastadora doença irrompeu em cena. De início, a misteriosa moléstia, que parecia esconder-se na terrível cloaca do porão dos navios, não tinha nome.
Cerca de um século após ter eclodido pela primeira vez, foi batizada de “escorbuto” – palavra holandesa que significa “ventre aberto”. Sorrateiramente, em meio a tantas doenças de pele, chagas e misérias cotidianas, o “mal das embarcações” rompia a parede dos vasos sangüíneos, fazia inchar as gengivas, provocava a queda dos dentes e produzia insuportável mau hálito. Os horrores da moléstia foram cantados por Luís da Camões:
“E foi que de doença crua e feia
A mais que eu nunca vi, desampararam
Muitos a vida, em terras estranhas e alheias
Os ossos para sempre sepultaram
Quem haverá que, sem o ver, o creia?
Que tão disformemente ali lhe incharam
As gengivas na boca, que crescia
A carne, e juntamente apodrecia”
O escorbuto manifestava-se após 68 dias de alimentação desprovida de vitamina C, causando a morte depois de três meses de indizíveis sofrimentos As péssimas condições sanitárias a bordo e a virtual ausência de hábitos de higiene pessoal faziam com que a doença se espalhasse com espantosa velocidade.
Os marinheiros de Vasco da Gama foram os primeiros a sofrer da estranha moléstia que cessou, sem motivo aparente, tão logo a expedição aportou na costa oriental da África e lá recolheu frutas e legumes frescos.
Vasco da Gama malcheiroso na Índia
Naquela breve escala em Mombaça, no Quênia, ocorrida em 7 de abril de 1498, Vasco da Gama não obteve apenas víveres: ali capturou também um piloto árabe, cuja identidade se mantém controversa. Com a ajuda dele e das monções, os portugueses puderam cruzar o oceano Índico em apenas 41 dias, seguindo a rota que os muçulmanos dominavam há séculos. E assim, no entardecer de 18 de maio de 1498, Gama e seus homens avistaram o Monte Eli, “o trono do deus Shiva”, ponto culminante das montanhas vestidas de verde do Malabar. Tinham acabado de “descobrir” a Índia.
Aquele dia tem sido apontado como o do advento da Idade Moderna – ou, quando menos, o momento em que se iniciou o que já foi chamado de “a era da dominação européia na história”. Pois foi exatamente então que, após 80 anos de tentativas incessantes, os lusos desvendaram o caminho marítimo para as Índias, abrindo as portas para o mundo globalizado. Trata-se também do instante a partir do qual os costumes dos europeus e seus hábitos de higiene (ou a falta deles) foram observados pela primeira vez pelos hindus – e lhes causaram grande consternação.
“Jamais se viu gente tão inculta, bárbara e suja quanto aquela que acaba de desembarcar aqui”, informou um mercador árabe a seu patrão, sediado no Cairo. Mesmo levando-se em conta o fato de tal depoimento ter sido dado por um inimigo da cristandade, a verdade é que, após dez meses no mar, os recém-chegados estavam maltrapilhos e mal-cheirosos. E isso só fez aumentar o constrangimento que caracterizou o primeiro encontro entre Vasco da Gama e Glafer, o rajá de Calicute – cidade na qual os portugueses aportaram ao final de uma viagem épica.
Embora vestidos com suas melhores roupas – “mui bem ataviados”, como disse o cronista Álvaro Velho, testemunha ocular da história –, Gama e seus acompanhantes foram vistos como visitantes de segunda categoria assim que o altivo Samutri-raj, ou “senhor do mar” de Calicute, dignou-se a lhes conceder uma audiência. Para isso certamente contribuiu a mesquinhez dos presentes que os portugueses tinham a oferecer àquele soberano: quatro capuzes de lã, seis chapéus, quatro colares de coral, seis bacias de cobre, dois barris de azeite e dois de açúcar.
“Até o mais pobre mercador de Meca é capaz de ofertar mais” disseram os assessores do samorim, recusando-se a entregar as oferendas. “O que, afinal, vieram vocês descobrir aqui: pedras ou homens?”, perguntaram. “Se foram homens, porque trouxeram presentes tão pobres?”.
Embora os rubis, as esmeraldas e as pérolas da Índia – muitas das quais adornavam o corpo e as roupas de musselina e de seda do rajá – evidentemente interessassem aos lusos, eles na verdade não estavam ali em busca nem de pedras nem de homens. Como qualquer secundarista sabe, o que os levou até o Oriente foram as especiarias. Em meio à obsessão européia por temperos e ervas – então transformados em mercadorias de grande valor especulativo –, ressaltam-se questões de higiene (tanto pública quanto privada), uma vez que tal busca estava ligada diretamente à preservação de alimentos e à procura de medicamentos.
Fora para driblar a barreira imposta pelo Islã após a tomada de Constantinopla, em 1453, que os portugueses – financiados por capitais florentinos e genoveses – lançaram-se em sua aventura ultramarina. Mas não era só a pimenta que interessava àqueles aventureiros e a seus sócios. A noz-moscada, o cravo, a canela, o açafrão e o cardamomo – todas as especiarias, enfim – eram tidas em alta conta. Mais do que meros temperos e conservantes, eram remédios de reputado valor: o cravo mitigava a dor de dente, um dos tormentos mais freqüentes dos europeus desde o início da Idade Média; a canela era anti-séptica e boa para os pulmões; usado em pílulas o açafrão servia para combater a peste.
O contraste entre o estilo de vida europeu e o indiano não poderia ficar mais claro do que no encontro entre Vasco da Gama e o samorim, ocorrido a 29 de maio de 1498. Enquanto o primeiro exalava o odor acre de quem não se banhava há mais de ano e cuja alimentação não incluía produtos frescos, o samorim dispunha de fontes termais, ungüentos, cosméticos e perfumes, alimentando-se de peixe, arroz, laticínios e frutas. Sua cidade era limpa e ajardinada, repleta de fontes e cisternas que adornavam templos nos quais sacerdotes também desempenhavam funções médicas e distribuíam conselhos sobre higiene pessoal.
Quando o samorim enfim chamou os portugueses para o interior da salão real, os sacerdotes espargiram os estrangeiros com borrifos de um líquido perfumado, que os recém-chegados interpretaram como sendo “água benta”. Ao lhes servirem de água, os assessores de Glafer solicitaram que não tocassem com os lábios nos recipientes de prata – “por medo da sujidade de nossos beiços” – e determinaram que, ao dirigirem a palavra ao samorim, tapassem a boca com a mão esquerda, “para não o macular com seu bafo”, exigindo ainda que se abstivessem “de escarrar e arrotar”.
Na solene penumbra da sala, o rei de Calicute sentava-se no topo de um estrado drapeado de veludo verde, recoberto por uma túnica bordada com rosas de ouro e adornado com uma tiara reluzindo de pérolas e pedrarias. Seus longos cabelos negros cintilavam, sedosos. As unhas de suas mãos e pés estavam imaculadamente esmaltadas e ele mascava uma mistura aromática constituída de bétel, cânfora e âmbar utilizada para purificar o hálito.
07 de julho de 2013