Leio no UOL que uma união conjugal entre três pessoas foi lavrada em um cartório em Tupã, interior de São Paulo. Segundo Claudia Domingues do Nascimento, tabeliã do cartório e redatora do texto, a escritura estabelece regras relativas aos bens dos parceiros, na hipótese de algum deles adoecer, morrer ou mesmo desistir da relação. “É como um contrato particular de compra e venda.”
A tabeliã afirmou que o trio tentou, sem sucesso, formalizar a escritura de união estável em outros cartórios. “Aí eles descobriram que minha tese de doutorado é sobre união poliafetiva [entre mais de duas pessoas] e me procuraram”, disse. Se antes era o Legislativo que determinava o regime legal do casamento, ao que tudo indica hoje tese de doutorado produz legislação. Segundo o UOL, o documento lavrado “pode ser a primeira escritura de união conjugal entre três pessoas no país”.
Pelo jeito, os neojornalistas perderam a memória. Ou têm preguiça de pesquisar. Há quatro anos, em Porto Velho, Rondônia, uma mulher obteve na Justiça o direito de receber parte dos bens do amante com quem conviveu durante quase 30 anos. Ele era casado e morreu em 2007, aos 71 anos. O juiz Adolfo Naujorks, que concedeu à moça o direito de herança, baseou-se em artigo publicado num site jurídico segundo o qual uma teoria psicológica, denominada "poliamorismo", admitia a coexistência de duas ou mais relações afetivas paralelas em que casais se conhecem e se aceitam em uma relação aberta.
Ou seja, a teoria não surgiu ontem. E sites jurídicos não só estão substituindo o Legislativo, como modificando o regime de transmissão de bens entre herdeiros. Mais ainda, estão legitimando a poligamia. Nada contra. Estou apenas constatando.
Já escrevi sobre o tal de poliamor. Apesar de ter vivido muito mais de duas relações paralelas, confesso desconhecer tal teoria. Em meus dias de jovem, chamava-se isto amasiamento, adultério, infidelidade. Ou ainda, vendo a coisa por outro ângulo, de donjuanismo. Ou casanovismo.
Mais adiante, anos 70 para cá, começou-se a falar em relação aberta. Tudo dependia do consenso do casal. Conheci casais que viveram unidos a vida toda, mantendo este tipo de relação. Era um relacionamento honesto, sem mentiras. Mas o Direito jamais reconheceu direito à herança por parte de quem não fosse a mulher legítima. Neste sentido, o matrimônio funcionava como proteção. O marido podia ser infiel à vontade, sem precisar dividir seus bens com a Outra, como se dizia então.
Poliamorismo soa mais elegante. Procurei a palavrinha nos dicionários. Não encontrei. Nem meu processador de texto reconhece a palavra, sempre a sublinha em vermelho. Fui ao Google. Já está lá. Escreve um jurista: “As relações interpessoais de cunho amoroso, por vezes destoam do padrão habitual da monogamia entre os casais formados por pessoas de sexos diferentes. Assim, encontramos relacionamentos afetivos que envolvem um casal, vale dizer um dos cônjuges e um parceiro ou parceira, os quais se desenvolvem simultaneamente. Ditas relações são denominadas de poliamorismo ou poliamor, e se constituem na coexistência de duas ou mais relações afetivas paralelas ao matrimônio”.
Ah! As palavras... Eu conhecia poligamia, poliandria, até mesmo policromia. Mas o tal de poliamorismo é para mim novidade. Quem diria? Cheguei aos sessenta e ainda descubro palavrinhas exóticas. Me restam no entanto algumas dúvidas. Já que a palavrinha amor é parte constitutiva do novo palavrão, me pergunto: é preciso que exista o tal de amor? Ou sexo puro também serve? O conceito é extensivo a todas as profissionais que curtimos em nossas vidas, ou profissional não vale? Aquela distante namorada, que encontramos de ano em ano, é poliamor? Ou um amorzinho mixuruca, sem direito à herança?
Os muçulmanos são mais práticos. Todo crente tem direito a quatro mulheres e estamos conversados. Não se fala em amor nem poliamor. Mas não precisamos ir até o Islã. No livro que embasa a cultura ocidental, temos o rei Salomão. “Tinha ele setecentas mulheres, princesas, e trezentas concubinas; e suas mulheres lhe perverteram o coração”, lemos no I Reis. Poliamantíssimo, o sábio rei. Bem que gostaria de ter meu meigo coração assim pervertido.
Após a morte do empresário de Rondônia, a amante, que por lei não teria direito à partilha de bens, entrou na Justiça com uma ação declaratória de união estável, dizendo que dependia financeiramente dele e que compartilhou com ele esforço comum na formação do patrimônio. O pedido foi contestado pelos dois filhos do casamento, que pediram a condenação dela por má-fé e argumentaram que a lei nacional baseia-se no relacionamento monogâmico. Segundo trecho do artigo usado na sentença, "as pessoas podem amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo".
Alvíssaras! Novidade na cultura ocidental. Finalmente o Direito reconhece que o tal de amor não precisa ser monogâmico. Mas minhas dúvidas permanecem. A sentença não estabelece quantas pessoas se pode amar ao mesmo tempo. Só duas? Ou vinte também vale? E o harém do rei Salomão? Pode? Tampouco esclarece se uma mulher pode amar dois ou mais homens. Pelo que se deduz da questão, quando um homem ama duas mulheres é poliamor. Já uma mulher amando dois ou mais homens, vai ver que é puta mesmo.
Segundo a tabeliã de Tupã, o trio é formado por um homem e duas mulheres, todos profissionais liberais, sem filhos, solteiros e residentes no Rio de Janeiro. “Eles se conhecem há muito tempo, e, desde 2009, passaram a viver uma relação estável.”
A tabeliã disse que existem muitas pessoas que vivem nessa situação, mas que não sabem que é possível formalizá-la em documento. “Eu estou surpresa com a repercussão desse fato. Estou sendo procurada por pessoas que vivem em condições semelhantes.” É o milagre dos neologismos. Se amasiamento, adultério ou infidelidade soavam mal, poliamor é louvável, digno e justo. O mesmo aconteceu com homossexualismo. Segundo o ministro Carlos Ayres Britto, do STF, homossexuais não mais existem. Agora são todos homoafetivos.
Comentei há pouco. Em defesa da nova terminologia, o ministro disse que o vocábulo foi cunhado pela vez primeira na obra União Homossexual, o Preconceito e a Justiça, de autoria da desembargadora aposentada e jurista Maria Berenice Dias, consoante a seguinte passagem:
“Há palavras que carregam o estigma do preconceito. Assim, o afeto a pessoa do mesmo sexo chamava-se 'homossexualismo'. Reconhecida a inconveniência do sufixo 'ismo', que está ligado a doença, passou-se a falar em 'homossexualidade', que sinaliza um determinado jeito de ser. Tal mudança, no entanto, não foi suficiente para pôr fim ao repúdio social ao amor entre iguais”.
Pena que o neologismo está errado. Há horas venho afirmando – e parece que sou o único alfabetizado a perceber isto – que o homo, de homossexual, é palavra grega que quer dizer mesmo. Homossexual, mesmo sexo. A palavra homoafetivo, se formos fiéis ao étimo, quer dizer mesmo afeto. Ora, mesmo afeto não quer dizer nada específico. Quer dizer apenas que você tem o mesmo afeto que outra pessoa tem por você. Mas homoafetivo, segundo a desembargadora desocupada, seria um eufemismo para homossexual. Não é. É palavra que foi construída errada.
Independentemente de ser uma construção errada, o novo conceito trará insuspeitadas conseqüências jurídicas. Homoafetivos já podem casar. Homoafetividade exclui o tal de poliamor? Obviamente não. Se um homem pode amar duas mulheres, por que não poderia amar dois homens? Nada impede.
Se obedecermos à boa lógica, em breve teremos três ou mais homens (ou mulheres, por que não?) registrando suas relações estáveis em cartório. O velho casamento católico vai virar partouse. De novo, nada contra. Apenas constato.
Segundo o tabelião Angelo Faleiros Macedo, do 5º Cartório de Notas de Ribeirão Preto, “a legislação ainda não prevê isso, mas as relações poliafetivas precisam ser protegidas. Elas existem de fato. No começo vai haver alguma dificuldade na elaboração do documento, pela novidade, mas depois será algo corriqueiro.” Segundo ele, a escritura feita em Tupã deverá provocar um aumento na procura aos cartórios para o registro de relações poliafetivas.
E ainda há astrólogos que crêem ser o comunismo o grande inimigo da família ocidental e cristã.
25 de agosto de 2012
janer cristaldo