Os arquivos não tão implacáveis do locutor-que-vos-fala guardam este relato de um breve encontro, em Londres, com a ex-primeira ministra britânica Margareth Thatcher.
O ano: 1995. Thatcher – que, na idade avançada, seria emudecida pela senilidade – ainda encontrava vigor para defender a bandeira do “Estado mínimo”, uma ideia que sempre teve adversários igualmente fervorosos. Dizia que o Estado deveria intervir o mínimo possível na vida do cidadão.
O problema é que, “na vida real”, o Estado que lava as mãos diante do jogo de forças da Economia pode contribuir, também, para injustiças, desigualdades e iniquidades.
O tema vai gerar discussões por décadas. A “Dama de Ferro” era um caso clássico da figura que despertava odios e admirações. Aqui, o texto escrito depois do encontro ( fugaz) com ela. Eu era, na época, correspondente do jornal O Globo em Londres:
Lá vem ela, lá vem a baronesa. Vista a dois palmos de distância, Margareth Hilda Thatcher é um atestado ambulante de que o poder, quando falta, envelhece os poderosos. As rugas da pele, pálida como uma folha de papel, vão redesenhando os traços do rosto. Setenta anos, afinal, não são setenta dias. A pele pende do pescoço. A magreza, adquirida depois que deixou de ser a Dama de Ferro para se transformar na Baronesa, surpreende.
Assessores cochicham que o abatimento se deve a um tratamento dentário. Se um mero tratamento dentário é capaz de tal devastação, então Papai Noel existe, a lua é vermelha e Edmundo Animal é um modelo de bom comportamento. O vestido, longo até os calcanhares, é de um azul sóbrio. Um broche – será diamante ? – reluz no peito esquerdo da Dama.
Quando começa a falar diante de um púlpito, a baronesa desfaz a má impressão causada pela aparência abatida. O grande tema deste final de século mobiliza todas as forças da Dama de Ferro: qual deve ser, afinal, o papel do Estado na vida das sociedades ?
A resposta de Thatcher é mais do que clara : o Estado deve se intrometer o menos possível na vida do cidadão comum. “Só um governo mínimo pode tornar máximo o potencial de cada um”, repete, como se estivesse recitando um mandamento que não admite contestação.
A oradora Thatcher ganha de novo o viço que parecer ter se evaporado. A plateia – duas mil pessoas aglomeradas no Westminster Central Hall em reverente silêncio para ouvir a vestal dos conservadores – explode em aplausos quando a baronesa solta frases fortes com aquele tom de voz de professora exigente diante de alunos relapsos.
Cada frase é pontuada por gestos incisivos coreografados com o punho fechado. “Eu detesto ser oposição . Detesto ! Porque oposição só fala, fala, fala. Não faz nada. E eu sou de fazer”. Delírio no anfiteatro. Depois de reinar por onze anos e meio como soberana da política inglesa – entre 1979 e 1990 -, Thatcher passou o bastão para o também conservador John Major.
Mas, se medalhões da política se recusam a vestir o pijama da aposentadoria quando se retiram da cena, por que a Dama de Ferro iria vestir a camisola ? “Meu elixir secreto é o trabalho” – ela avisa aos navegantes. “Não penso em me aposentar”.
Se quem foi primeira-ministra nunca perde a majestade, Thatcher recebe por onde passa reverências dispensadas a super-estrelas. Além de exalar carisma, a baronesa exercita uma qualidade reconhecida até por adversários : a paixão com que defende suas ideias – com um fervor que frequentamente traz pitadas de autoritarismo.
Que o digam os ministros defenestrados do gabinete por discordarem da Dama de Ferro durante os anos em que ela reinava. Ainda assim, a legião de admiradores é imensa.
Fãs disputam com guarda-costas um palmo de espaço para um foto ao lado da baronesa, antes, durante e depois da conferência no Westminster Central Hall. Um admirador arranca murmúrios da plateia ao pagar um mico sem o menor constrangimento: depois de faturar um autógrafo, oferece a ela uma medalha, beija-lhe a mão e quase se ajoelha diante da musa, em sinal de reverência.
Um japonês solitário quer porque quer tirar uma foto ao lado de Thatcher: implora ao vizinho na plateia que não perca a chance de registrar para a posteridade, com uma dessas máquinas fotográficas amadoras, a pose que ele fará ao lado de Thatcher na hora de colher um autógrafo.
Um funcionário da editora termina virando fotógrafo improvisado: fica encarregado de pegar máquinas fotográficas dos fãs para flagrá-los ao lado da estrela. Assessores e guarda-costas delicadamente vão guiando os intrusos para a porta de saída, depois que cada um desfruta dos quinze segundos regulamentares diante de Thatcher – tempo suficiente para a obtenção de um livro autografado.
Pergunto à Dama de Ferro se ela poderia se definir em uma só palavra. “Você quer que eu me defina em uma só palavra ? ” – desta vez, ela é que me pergunta, com ar de espanto.”Não, não posso me definir em apenas uma palavra. Vou assinar o meu nome e escrever a data de hoje.
Thank you very much !” – diz a baronesa, com aquela polidez estudada de quem ouve todo tipo de pedidos. A essa altura, um segurança que não faria feio como adversário de Rambo numa luta de boxe encerra a tentativa de entrevista.
Volta e meia, a Dama de Ferro pousa de novo nas manchetes. Virou uma espécie de oráculo dos conservadores. A última investida de Thatcher é o recém-lançado segundo volume de memórias – um tijolaço de 656 páginas batizado de The Path to Power. O lançamento do livro se transforma num excelente pretexto para que ela repita a pregação contra os demônios do Estado onipresente:
- O século vinte assistiu a uma experiência política e econômica sem precedentes. O modelo de sociedade baseado no controle centralizado foi tentado de várias formas – seja através do totalitarismo comunista ou nazista, seja através dos vários modelos de social-democracia e de socialismo democrático, seja através de um corporativismo tecnocrático não-ideológico.
O modelo descentralizado liberal também foi tentado – principalmente, na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos dos anos oitenta. O balanço do século mostra uma mensagem irresistível: qualquer que seja o critério de julgamento, seja ele político, social ou econômico, o coletivismo fracassou. Já a aplicação dos princípios clássicos liberais tem transformado países e continentes para melhor.
A Dama de Ferro garante que esta foi “a mais
importante vitória política do século”. Para ilustrar o que diz, recorre a exemplos do dia-a-dia do cidadão comum: “O que as pessoas querem é poder aproveitar os frutos do próprio trabalho, é gastar o próprio dinheiro do jeito que quiserem, terem suas próprias casas, em benefício dos seus próprios filhos”.
O que é, então, que um “governo mínimo” deve fazer ? Thatcher dá um exemplo que arranca aplausos da plateia: em vez de gastar dinheiro público construindo conjuntos habitacionais, o governo deve diminuir os impostos para que cada cidadão, com mais dinheiro no bolso, possa fazer o que quiser com o salário – inclusive, comprar uma casa.
A adesão de países latino-americanos aos mandamentos do credo liberal arranca exclamações da baronesa. Sem citar nominalmente o Plano Real, Thatcher classifica como “sério” o esforço do governo brasileiro para eliminar o fantasma da inflação:
- O Brasil, um dos maiores e mais populosos países, com enormes recursos minerais, indiscutivelmente tem o maior potencial na América Latina. As taxas de crescimento comprovam este potencial – apesar de políticas econômicas equivocadas adotadas no passado. Agora, medidas sérias foram tomadas para domar a inflação e o endividamento do governo e para promover a privatização. Mas ainda há muito o que fazer, para limitar os piores excessos da presença exagerada do governo e a consequente corrução” – diz a baronesa, em The Path to Power.
A Dama pode ser de ferro, mas nem tanto : depois de levantar a voz no púlpito para celebrar “a mais importante vitória política do século”, asssinar centenas de exemplares de suas memórias e exercitar os músculos do rosto incontáveis vezes em sorrisos para as máquinas fotográficas dos admiradores, a baronesa emite sinais de cansaço.
A plateia oferece-lhe um último gesto de simpatia: Thatcher é aplaudida de é, numa ovação que dura cerca de cinco minutos. O odio dos adversários só é correspondido, em igual medida, pelo entusiasmo de fãs conservadores.
Não existem meias palavras para Thatcher. Talvez ela tenha razão: com esse currículo de paixões e ódios, não deve ser nada fácil se definir em uma só palavra. (08 abr 2013)
01 de junho de 2013
Geneton Moraes Neto |
O problema é que, “na vida real”, o Estado que lava as mãos diante do jogo de forças da Economia pode contribuir, também, para injustiças, desigualdades e iniquidades.
O tema vai gerar discussões por décadas. A “Dama de Ferro” era um caso clássico da figura que despertava odios e admirações. Aqui, o texto escrito depois do encontro ( fugaz) com ela. Eu era, na época, correspondente do jornal O Globo em Londres:
Lá vem ela, lá vem a baronesa. Vista a dois palmos de distância, Margareth Hilda Thatcher é um atestado ambulante de que o poder, quando falta, envelhece os poderosos. As rugas da pele, pálida como uma folha de papel, vão redesenhando os traços do rosto. Setenta anos, afinal, não são setenta dias. A pele pende do pescoço. A magreza, adquirida depois que deixou de ser a Dama de Ferro para se transformar na Baronesa, surpreende.
Assessores cochicham que o abatimento se deve a um tratamento dentário. Se um mero tratamento dentário é capaz de tal devastação, então Papai Noel existe, a lua é vermelha e Edmundo Animal é um modelo de bom comportamento. O vestido, longo até os calcanhares, é de um azul sóbrio. Um broche – será diamante ? – reluz no peito esquerdo da Dama.
Quando começa a falar diante de um púlpito, a baronesa desfaz a má impressão causada pela aparência abatida. O grande tema deste final de século mobiliza todas as forças da Dama de Ferro: qual deve ser, afinal, o papel do Estado na vida das sociedades ?
A resposta de Thatcher é mais do que clara : o Estado deve se intrometer o menos possível na vida do cidadão comum. “Só um governo mínimo pode tornar máximo o potencial de cada um”, repete, como se estivesse recitando um mandamento que não admite contestação.
A oradora Thatcher ganha de novo o viço que parecer ter se evaporado. A plateia – duas mil pessoas aglomeradas no Westminster Central Hall em reverente silêncio para ouvir a vestal dos conservadores – explode em aplausos quando a baronesa solta frases fortes com aquele tom de voz de professora exigente diante de alunos relapsos.
Cada frase é pontuada por gestos incisivos coreografados com o punho fechado. “Eu detesto ser oposição . Detesto ! Porque oposição só fala, fala, fala. Não faz nada. E eu sou de fazer”. Delírio no anfiteatro. Depois de reinar por onze anos e meio como soberana da política inglesa – entre 1979 e 1990 -, Thatcher passou o bastão para o também conservador John Major.
Mas, se medalhões da política se recusam a vestir o pijama da aposentadoria quando se retiram da cena, por que a Dama de Ferro iria vestir a camisola ? “Meu elixir secreto é o trabalho” – ela avisa aos navegantes. “Não penso em me aposentar”.
Se quem foi primeira-ministra nunca perde a majestade, Thatcher recebe por onde passa reverências dispensadas a super-estrelas. Além de exalar carisma, a baronesa exercita uma qualidade reconhecida até por adversários : a paixão com que defende suas ideias – com um fervor que frequentamente traz pitadas de autoritarismo.
Que o digam os ministros defenestrados do gabinete por discordarem da Dama de Ferro durante os anos em que ela reinava. Ainda assim, a legião de admiradores é imensa.
Fãs disputam com guarda-costas um palmo de espaço para um foto ao lado da baronesa, antes, durante e depois da conferência no Westminster Central Hall. Um admirador arranca murmúrios da plateia ao pagar um mico sem o menor constrangimento: depois de faturar um autógrafo, oferece a ela uma medalha, beija-lhe a mão e quase se ajoelha diante da musa, em sinal de reverência.
Um japonês solitário quer porque quer tirar uma foto ao lado de Thatcher: implora ao vizinho na plateia que não perca a chance de registrar para a posteridade, com uma dessas máquinas fotográficas amadoras, a pose que ele fará ao lado de Thatcher na hora de colher um autógrafo.
Um funcionário da editora termina virando fotógrafo improvisado: fica encarregado de pegar máquinas fotográficas dos fãs para flagrá-los ao lado da estrela. Assessores e guarda-costas delicadamente vão guiando os intrusos para a porta de saída, depois que cada um desfruta dos quinze segundos regulamentares diante de Thatcher – tempo suficiente para a obtenção de um livro autografado.
Pergunto à Dama de Ferro se ela poderia se definir em uma só palavra. “Você quer que eu me defina em uma só palavra ? ” – desta vez, ela é que me pergunta, com ar de espanto.”Não, não posso me definir em apenas uma palavra. Vou assinar o meu nome e escrever a data de hoje.
Thank you very much !” – diz a baronesa, com aquela polidez estudada de quem ouve todo tipo de pedidos. A essa altura, um segurança que não faria feio como adversário de Rambo numa luta de boxe encerra a tentativa de entrevista.
Volta e meia, a Dama de Ferro pousa de novo nas manchetes. Virou uma espécie de oráculo dos conservadores. A última investida de Thatcher é o recém-lançado segundo volume de memórias – um tijolaço de 656 páginas batizado de The Path to Power. O lançamento do livro se transforma num excelente pretexto para que ela repita a pregação contra os demônios do Estado onipresente:
- O século vinte assistiu a uma experiência política e econômica sem precedentes. O modelo de sociedade baseado no controle centralizado foi tentado de várias formas – seja através do totalitarismo comunista ou nazista, seja através dos vários modelos de social-democracia e de socialismo democrático, seja através de um corporativismo tecnocrático não-ideológico.
O modelo descentralizado liberal também foi tentado – principalmente, na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos dos anos oitenta. O balanço do século mostra uma mensagem irresistível: qualquer que seja o critério de julgamento, seja ele político, social ou econômico, o coletivismo fracassou. Já a aplicação dos princípios clássicos liberais tem transformado países e continentes para melhor.
A Dama de Ferro garante que esta foi “a mais
importante vitória política do século”. Para ilustrar o que diz, recorre a exemplos do dia-a-dia do cidadão comum: “O que as pessoas querem é poder aproveitar os frutos do próprio trabalho, é gastar o próprio dinheiro do jeito que quiserem, terem suas próprias casas, em benefício dos seus próprios filhos”.
O que é, então, que um “governo mínimo” deve fazer ? Thatcher dá um exemplo que arranca aplausos da plateia: em vez de gastar dinheiro público construindo conjuntos habitacionais, o governo deve diminuir os impostos para que cada cidadão, com mais dinheiro no bolso, possa fazer o que quiser com o salário – inclusive, comprar uma casa.
A adesão de países latino-americanos aos mandamentos do credo liberal arranca exclamações da baronesa. Sem citar nominalmente o Plano Real, Thatcher classifica como “sério” o esforço do governo brasileiro para eliminar o fantasma da inflação:
- O Brasil, um dos maiores e mais populosos países, com enormes recursos minerais, indiscutivelmente tem o maior potencial na América Latina. As taxas de crescimento comprovam este potencial – apesar de políticas econômicas equivocadas adotadas no passado. Agora, medidas sérias foram tomadas para domar a inflação e o endividamento do governo e para promover a privatização. Mas ainda há muito o que fazer, para limitar os piores excessos da presença exagerada do governo e a consequente corrução” – diz a baronesa, em The Path to Power.
A Dama pode ser de ferro, mas nem tanto : depois de levantar a voz no púlpito para celebrar “a mais importante vitória política do século”, asssinar centenas de exemplares de suas memórias e exercitar os músculos do rosto incontáveis vezes em sorrisos para as máquinas fotográficas dos admiradores, a baronesa emite sinais de cansaço.
A plateia oferece-lhe um último gesto de simpatia: Thatcher é aplaudida de é, numa ovação que dura cerca de cinco minutos. O odio dos adversários só é correspondido, em igual medida, pelo entusiasmo de fãs conservadores.
Não existem meias palavras para Thatcher. Talvez ela tenha razão: com esse currículo de paixões e ódios, não deve ser nada fácil se definir em uma só palavra. (08 abr 2013)
01 de junho de 2013
Geneton Moraes Neto |