Nada se cria, tudo se copia,
dizem as gentes. Se existe um campo onde este axioma impera, este campo é o das
religiões. A começar pelo judaísmo. Não existe Bíblia sem o Egito, dizia Thomas
Römer, especialista em história bíblica. O monoteísmo judaico já está em
Akenathon. Com a diferença de que Akenathon teve existência atestada na
história. E de Moisés, o patriarca dos judeus, não temos sequer um sinal de sua
passagem no tempo. A autoria da Tanak – Pentateuco, para os cristãos – não
procede, pois no último dos cinco livros Moisés narra sua própria morte no
Deuteronômio. Nem Cristo ousou tanto, deixou este relato para os evangelistas.
Freud, em Moisés e a religião monoteísta, faz de Moisés um discípulo de
Akenathon que teria se associado aos judeus para ensinar-lhes a religião
monoteísta.
Quanto aos cristãos, tiveram ainda mais religião de quem
copiar. O Novo Testamento é uma apropriação indébita – para não dizer roubo – do
livro dos judeus, acrescido de mitos gregos e do pganismo. A História está
repleta de deuses nascidos de virgens e mortos no solstício de inverno. A vasta
proliferação de denominações cristãs era tendência já embutida no próprio
cristianismo. No Brasil contemporâneo, elas brotam como cogumelos após a chuva e
fazem feroz concorrência aos católicos.
Não há religião hoje que não seja
uma sopa de religiões antigas. Os tais de neopentescostais, que infestam as
cadeias de televisão no mundo todo, são outros que se apossam do Livro a seu
modo. O mesmo fizeram os espíritas. Hippolyte Léon Denizard Rivail, mais
conhecido como Allan Kardec, misturou evangelhos com a teoria do magnetismo
animal do austríaco Franz Anton Mesmer e construiu sua ficção. Mesmer era
médico, estudava teologia e criou a picaretagem da imposição das mãos.
Curiosamente, Kardec, que é francês e está sepultado no Père Lachaise, em Paris,
é praticamente desconhecido em seu país. Sua tumba está sempre cheia de flores,
colocadas geralmente por brasileiros.
Há alguns anos, recebi visita de
amiga que há décadas não via. Para minha surpresa, revelou-se espírita e
umbandista. Profundo mistério. Sempre vi o espiritismo como uma religião de
origem francesa, inspirada nas teorias de Mesmer, e a umbanda como um culto
animista de origem africana. Não via como alguém podia assumir coisas tão
díspares. Saí então a pesquisar. E descobri coisas que, como a jaboticaba, só
ocorrem no Brasil.
Segundo J. Alves Oliveira, em Umbanda Cristã e
Brasileira, no dia 15 de novembro de 1908, o Caboclo das Sete Encruzilhadas
se manifestou numa sessão espírita kardecista em Neves, São Gonçalo, município
fluminense próximo ao Rio, então capital federal. “Foi um escândalo" – escreve
Matinas Suzuki, na Folha de São Paulo -. “Embora haja indícios de
incorporações de espíritos de índios e de escravos negros nas diversas formas de
macumba que existiam no Rio de Janeiro do século 19, os kardecistas não os
admitiam por considerá-los espíritos marginais e pouco evoluídos. Quem recebeu o
caboclo indesejado, e logo em seguida o preto-velho Pai Antônio, foi Zélio
Fernandino de Moraes, um rapaz de 17 anos que se preparava para entrar para a
Escola Naval”.
O achado do Zélio Fernandino parece ter vindo de encontro
a alguma inconsciente aspiração brasílica e fez escola. Assim como os católicos
se apossaram do livro judaico, os umbandistas reivindicaram para si o
mediunismo, trouvaille de Allan Kardec. Segundo Alves Oliveira, o caboclo
teria assim se revelado: "Se julgam atrasados esses espíritos dos pretos e dos
índios [caboclos], devo dizer que amanhã estarei em casa deste aparelho [o
médium Zélio de Moraes] para dar início a um culto em que esses pretos e esses
índios poderão dar a sua mensagem e, assim, cumprir a missão que o plano
espiritual lhes confiou".
O espiritismo então abrasileirou-se, para
desalento de seus mentores europeus. Contei então a história do Zélio Fernandino
à minha amiga. Que a desconhecia totalmente. Ou seja, nem sabia como se havia
operado a fusão de duas religiões em seu cerebrinho. A lambança é tal que já há
centros orixás da umbanda, santos católicos e retratos de pregadores do Santo
Daime posicionados em lugares estratégicos dos terreiros. E já existe inclusive
o umbandaime, que promove a mistura entre a doutrina do daime com a religião
afro-brasileira.
O Santo Daime desbundou. É um culto sem pé nem cabeça,
criado por um seringueiro da Amazônia, cujas cerimônias consistem na ingestão da
ayahuasca, beberagem feita de um cipó, que produz vômitos e diarréias, as
chamadas “peias”. A nova empulhação cultua o Cristo, a Virgem... e a floresta
amazônica, ecologia oblige. Pelo jeito, as tais de peias não eram muito
convincentes a ponto de por si só arrebanhar acólitos. O Santo Daime então
adaptou-se. Assumiu elementos de hinduísmo, umbanda e hare krishna. Deus para
todos os gostos. Aqui pertinho de São Paulo, em Nazaré Paulista, a escola
espiritual tem dois gurus, um tal de Sri Prem Baba, o mestre da cerimônia, que
pelo jeito é tupiniquim com nome indiano para melhor enganar. Mais o guru Sri
Hans Raj Maharaji, que vive na Índia, mas já apita no Santo Daime. Mais o
sedizente mestre Raimundo Irineu Serra, seringueiro brasileiro neto de escravos,
que morreu em 1971, e teria sido o fundador da doutrina do chá de
cipó.
São Paulo, com a maior clientela de crentes potenciais do país, é
um semental de novas fés. Outro dia, zapeando na televisão, descobri uma nova
igreja, a bereana. E porque bereana? Porque em Atos está escrito: “E logo,
durante a noite, os irmãos enviaram Paulo e Silas para Beréia; ali chegados,
dirigiram-se à sinagoga dos judeus. Ora, estes de Beréia eram mais nobres que os
de Tessalônica; pois receberam a palavra com toda a avidez, examinando as
Escrituras todos os dias para ver se as coisas eram, de fato, assim”. A
palavrinha se repete só mais duas vezes e já deu origem a uma igreja. Afinal os
judeus de Beréia era mais nobres que os de Tessalônica. E mais nada sabemos de
Beréia. Mas quando descobri a nova crença – há coisa de uma semana – as igrejas
já eram três: temos a Igreja Evangélica Bereana, a Batista Missionária Bereana e
a Adventista Bereana. Com tantos pastores proclamando a independência, a igreja
deve ser das mais lucrativas.
E as religiões continuam saltando como
pipocas na panela. Em 11 de novembro do ano passado foi criada a Igreja
Templária de Cristo na Terra. Seus adeptos seriam nada menos que a reencarnação
dos Cavaleiros Templários, braço militar da Igreja Católica formado por monges
com voto de pobreza que aceitaram a tarefa de proteger os cristãos dos
muçulmanos. De novembro para cá, são apenas seis meses. E a novel igreja já tem
um primeiro-ministro, quatro bispos, 20 ministros e 560 mestres, cada qual
encarregado de cuidar de 70 fiéis. Walter Sandro Pereira da Silva, o apóstolo
fundador, vive “uma vida simples”, em uma casa em São Bernardo do Campo (o “solo
sagrado”), com nove dos ministros, sua mãe e cerca de 80 cães e gatos – a igreja
tem como tarefa tirar animais da rua.
Quem nos conta é Willian Vieira,
repórter da CartaCapital. Com 70 fiéis para 560 mestres, temos 39.200
seguidores. Tudo isso em seis meses, o que dá mais de 6.500 adeptos por mês. O
que dá mais de 1600 conversões por semana. Mais de 230 por dia. Mesmo sentado à
mão direita do Pai, o Cristo – que, após três anos de pregação, mal teve um gato
pingado para acompanhá-lo ao monte Calvário – deve estar se roendo de
inveja.
Walter Sandro, pernambucano pobre de Gravatá, descobriu cedo sua
missão. Tinha 2 anos e meio e procurava desesperado a chupeta perdida, quando o
Arcanjo Miguel veio em seu auxílio pela primeira vez. “Foi quando apareceu este
ser dizendo que ela estava debaixo da cama e que eu devia procurar o Salmo 91.”
Quando os pais encontraram o pequeno, ele tinha a chupeta na boca e a Bíblia na
mão: milagre. “Nenhum mal te sucederá, nem praga alguma chegará à tua tenda.
Porque aos seus anjos dará ordem a teu respeito, para te guardarem em todos os
teus caminhos”, dizia o premonitório texto bíblico.
Walter Sandro veio
para São Paulo bebê e só voltou a falar com o arcanjo aos 13 anos, quando foi
visitar sua cidade natal. Miguel disse-lhe que deveria pregar. Virou evangélico.
Anos depois, quando começou a vender seguros, descobriu o dom da retórica e
passou a dar palestras motivacionais: deixe de fumar, emagreça, conquiste o
amor.
A epifania mesmo só ocorreu em novembro passado, quando Walter
Sandro estava prestes a entrar no ar pelo canal UHF 58. Um novo milagre se deu.
“O Arcanjo Miguel materializou-se e disse para eu abrir a igreja. Foi tão forte
que tive uma crise de cálculo renal. Fui ao banheiro e ele veio e disse pra
botar a mão na urina. Eu pus. E saiu uma pedra do tamanho de meio grão de
feijão.” À meia-noite o programa foi ao ar já com o nome de Igreja Templária. As
reuniões começaram como uma espécie de maçonaria, que aos poucos incorporou
doses de Reiki, ioga e passe espírita. Uma pitada de Oriente, outra de
espiritismo. Jogue tudo num caldo de cristianismo, misture e agite bem. Está
criada uma nova religião.
Com apenas seis meses de existência, além do
prédio na Rua Leais Paulistanos, a igreja tem sedes no Rio de Janeiro, no
Espírito Santo e em Minas Gerais. É mantida pelo “Carnê da Gratidão”, um boleto
com depósito de 33 reais em uma conta do Banco do Brasil. “A pessoa não paga.
Ela doa.” E ganha, de quebra, o número do celular de um dos mestres para ligar
quando quiser, todo dia até as 2 da manhã. “Qual seu problema? Bem, às vezes
Deus não cura agora para testar sua fé”. Vinte pessoas se revezam em três turnos
para atender 3 mil ligações por dia no telemarketing. Se tudo der certo e o
arcanjo ajudar, em breve a igreja terá seu canal UHF (que custou 120 mil reais)
para levar, “em cadeia nacional”, a mensagem do fim do preconceito. “Nós não
temos nenhum.”
Você está desempregado e o mercado não está para peixe?
Crie uma religião. É aposta segura. Nenhum outro ramo do trabalho lhe
proporcionará tais retornos em apenas meio ano.
19 de maio de 2012
janer cristaldo