Se entendermos o antissemitismo como uma forma
sofisticada de racismo, alicerçada nos sentimentos tribais difusos na massa,
alimentando-se de conhecimentos de Teologia, História, Antropologia e Biologia;
e se pensarmos em Joseph Goebbels como um doutor em Filosofia que defendera uma
tese sobre um obscuro poeta romântico; como um escritor frustrado que lançara a
medíocre novela Michael; e como um propagandista ambicioso que desejava
aposentar-se como o autor de uma “grande obra” sobre a dramaturgia do cinema,
é de se imaginar que ele também tenha concebido para este meio uma sofisticada
propaganda antissemita.
Pode-se argumentar contra minha tese que o
Holocausto era o mais bem guardado segredo do Estado nazista, e que os
produtores do cinema alemão não poderiam, de forma alguma, tê-lo abordado sob
qualquer aspecto. Mas controlado de ponta a ponta por Goebbels, o cinema alemão
preparava, como não podia deixar de ser, o terreno espiritual propício para a
destruição massiva dos judeus. O que desviou a atenção dos historiadores foi o
fato de que, na dramaturgia do cinema nazista, os apelos à destruição dos
judeus não eram tão evidentes quanto na linguagem oral-gráfica, verbal,
discursiva, assumindo a forma de metafóricas, não percebidas sem as
necessárias referências.
As fantasias de destruição do cinema nazista não
encontram outra razão de ser. Elas são um reforço visual, mental, estético e
emocional à gigantesca operação de extermínio dos judeus. O que desviou a
atenção dos historiadores para o “conteúdo objetivo” do cinema nazista foi a
natureza não discursiva do apelo à destruição presente na sua dramaturgia. Esse
apelo assumiu formas metafóricas inteiramente novas, atingindo os espectadores
num nível irracional e profundo, não percebido pelos críticos contemporâneos.
Susan Sontag soube identificar uma estética fascista
a partir dos filmes de Leni Riefenstahl, e os discursos políticos que recorriam
aos discursos médicos para elaborar metáforas que estigmatizavam o “inimigo” em
A doença como metáfora (1984) e A AIDS como metáfora (1988),
criticando inclusive o uso que ela própria havia fez da metáfora da doença
associada à “raça branca”, em sua Viagem a Hanói. A solução seria a
retirada de circulação das metáforas que relacionavam os processos patológicos
a operações militares. Seus ensaios brilhantes concentraram-se, porém, no campo
da literatura: Sontag citava apenas os discursos oral-gráficos de Hitler que
associavam os judeus à doença, ignorando o uso das mesmas metáforas na
linguagem audiovisual do cinema nazista, deixando de observar as metáforas da
doença nos Ärtzefilme.
Metáforas no sentido clássico que lhe dera
Aristóteles: “A metáfora consiste no transportar para uma coisa o nome de
outra, ou do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero, ou da espécie
de uma para a espécie de outra, ou por analogia”[22]. Mas metáfora, sobretudo,
no sentido que lhe deu Susan Sontag ao observar que toda moléstia importante
cuja causa é obscura e cujo tratamento é ineficaz (peste, sífilis, tuberculose,
câncer, AIDS) tende a ser sobrecarregada de significados:
Primeiro, os objetos do medo mais profundo
(corrupção, decadência, poluição, anomia, fraqueza) são identificados com a
doença. A própria doença torna-se uma metáfora. Então, em nome da doença (isto
é, usando-a como metáfora), aquele horror é imposto a outras coisas. A doença
passa a adjetivar… As doenças epidêmicas eram comumente usadas em sentido
figurado como designativas de desordem social. Da pestilência (peste bubônica)
veio “pestilento”, cujo sentido figurado, de acordo com a Oxford English
Dictionary, é “injurioso à religião, à moral ou à tranqüilidade pública –
1513”; e “pestilencial”, que significava “moralmente nocivo e pernicioso –
1531”. Os sentimentos relacionados com o mal são projetados numa doença. E a
doença (assim enriquecida de significados) é projetada no mundo.[23]
Não apenas o discurso oral-gráfico (em
artigos, manuais e livros de doutrinação do Partido e de seus líderes) produziu
e produz metáforas antissemitas. Também o discurso audiovisual (nos filmes
nazistas) as produziu e produz. No cinema coordenado por Goebbels, a propaganda
através de metáforas audiovisuais que transportavam para uma coisa não
apenas o nome de outra, como também sua imagem e som. Goebbels criou uma
linguagem audiovisual para seu cinema coerentemente articulada com a linguagem
oral-gráfica disseminada pelo regime a partir dos estigmas teológicos do
cristianismo e dos estigmas “científicos” do social-darwinismo.
Desde 1933, centenas de filmes de entretenimento
amalgamaram a figura do vilão à imagem do judeu, fundindo certas profissões
estigmatizadas a tipos psicológicos tradicionalmente desprezados. O vilão do
cinema passou a ser caracterizado segundo biótipos sociais. Era o “sedutor”,
que corrompia a pureza de jovens louras; o “vigarista casamenteiro”, que
explorava mulheres ingênuas; o “grande capitalista”, que prejudicava a
sociedade com seu amor ao dinheiro; o “criminoso de cartola”, que falsificava
valores; os “ingleses”, apresentados como plutocratas, aventureiros
inescrupulosos, tiranos cruéis ou brutais criminosos; o “espião”, sempre de
origem eslava, russa ou polonesa; o “jornalista”, representante da
social-democracia; e o “tirano”, visto como um protetor dos “inimigos do povo”.
Esses “vilões” associavam-se aos “judeus” da literatura antissemita, descritos
como corruptores, vigaristas, capitalistas, criminosos, espiões e comunistas,
também confundidos com ingleses, eslavos e ciganos.
As técnicas de criação dessa imagética
estigmatizante, o complexo modo de produção cinematográfico nazista, com suas
estruturas narrativas características, revelam que o antissemitismo desempenhou
um papel muito mais importante na produção cinematográfica do ‘Reich’ do que
aquele atribuído pelos historiadores. E a forma mais surpreendente do realismo
biológico foram os Ärtztefilme (filmes de médicos), onde o “inimigo
racial” assumia a configuração da doença, da peste, do vírus, do bacilo. Paralelamente
ao Kulturfilm biológico, os Ärztefilme constituíram um importante
subgênero do cinema nazista.
Essa subcultura ganhou as massas através dos
“filmes biológicos” e dos “filmes nacionais” da Ufa, sob o controle de Alfred
Hugenberg, que propagava uma ideologia que só reconhecia como “nacionais” os
homens cujas origens familiares remontavam à noite dos tempos, lá onde o sangue
da tribo confundia-se com o território sagrado dos ancestrais. A vontade
política do governo alemão de exterminar os judeus “como parasitas” foi
sublimada no cinema numa estética onde o “inimigo racial” assumia
surpreendentes configurações.
Mesmo Susan Sontag, cujo conceito de doença como
metáfora política nos inspirou, não percebeu a metáfora da peste no cinema
nazista, limitando-se a citar alguns discursos de Hitler para exemplificar seu
conceito[24]. Goebbels logrou criar uma nova linguagem cinematográfica,
coerentemente articulada com a ideologia do regime, formada a partir dos
estigmas teológicos do cristianismo, renovados pelos estigmas científicos do
social-darwinismo. A catástrofe humana da Primeira Guerra, as epidemias
devastadores que a sucederam, em conjugação com as sucessivas crises econômicas
e políticas da República de Weimar popularizaram o social-darwinismo.
Desde 1933, centenas de filmes de entretenimento
amalgamaram a figura do vilão à imagem do judeu, fundindo certas profissões
estigmatizadas a tipos psicológicos tradicionalmente desprezados. As técnicas
de criação dessa imagem-estigma, o complexo modo de produção cinematográfico
nazista, com suas estruturas narrativas características, revelam que o
antissemitismo desempenhou um papel muito mais importante na produção
cinematográfica do ‘Reich’ do que aquele atribuído pelos historiadores, até
hoje.
Os discursos escritos e falados, as transmissões em
rádio e alto-falantes; as aulas e palestras; as reuniões e marchas “reeducavam”
o povo. Mas o cinema agia em profundidade: penetrava no subconsciente, no
inconsciente, no mais fundo da alma. Apoderando-se da gigantesca indústria de
produção de imaginários que era o cinema alemão em 1933, Goebbels precisou
apenas “reorientá-lo” para as novas tarefas do regime, dando ao público novos
mitos, sonhos, fantasias, ilusões, ideais, esperanças e temores. Com a formação
de uma indústria cultural nazista, transmitindo para a Alemanha, e
depois para toda a Europa ocupada, fantasmagorias encarnadas por cinétipos
de aparência real dentro de uma visão mórbida do mundo, Goebbels logrou a mais
radical manipulação de massas: a doutrinação do olhar.
Além da forma radical de controle ideológico com
base em critérios racistas, operando no “corpo social” da indústria
cinematográfica, os nazistas souberam criar formas originais de expressão
visual para o antissemitismo. Os discursos escritos e falados – as brochuras,
os jornais, as revistas, os livros, as transmissões radiofônicas, as aulas, as
conferências, as palestras, as reuniões, os comícios – “reeducavam” o povo. Mas
o discurso ideológico das imagens – primeiro na caricatura, depois no cinema –
era um complemento essencial a essa gigantesca operação de reeducação nacional.
Toda uma linha de filmes políticos de caráter
biológico e de filmes biológicos de caráter político foi produzida pela
indústria cultural do nazismo, contaminando um gênero muito apreciado na
Alemanha desde a Primeira Guerra: os Ärklärungsfilme (“filmes de
esclarecimento”). No inicio do cinema sonoro, o Kulturfim biológico,
gênero protonazista surgido na Ufa ainda no cinema mudo[25], foi incrementado com a produção de uma série de
filmes sobre a vida dos micróbios e dos insetos.
Num desses filmes, via-se, pela primeira vez no
cinema, como uma Amebaproteus devorava um Paramecium Caudatum. Der
Ameisenstaat (“O Estado das formigas”, 1934), de Ulrich Schulz, sobre a
vida das formigas em seus formigueiros, produzido com técnicas inovadoras de
microscopia que custaram um ano de trabalho, foi premiado no Festival de
Veneza. “Agora se vai com conhecimentos médicos direto dentro do povo”,
vangloriavam os releases com as primeiras imagens de bactérias vivas e
das operações do obstetra Prof. Dr. Döderlein [26]. Seguiram-se Die
Bienenstaat (“O Estado das abelhas”, 1938), de Wolfram Junghans e Ulrich
Schultz, sobre a vida das abelhas em suas colméias, também premiado no Festival
de Veneza; e Im Reich der Liliputaner (“No reino dos liliputianos”,
1939), de Friedrich Goethe, Herta Jülich e Ulrich Schultz.
Na mesma linha da produção de Kulturfime
biológicos, surgiu, então, um dos primeiros documentários a pregar abertamente
a esterilização dos doentes mentais, hereditários e mal-formados: Alles
Leben ist Kampf (“Toda vida é luta”, 1934, 10’), de H. Gerdes. O filme
passava a idéia de que a vida era uma luta pela existência, e que apenas os
mais fortes tinham o direito de viver: “Toda vida na Terra é luta, luta pela
existência, para a conservação da raça. Na luta pela existência, aquele que é
fraco e inapto à vida não comerá conforme a sua fome. Na luta pela fêmea, o
animal mais sadio vence, para que apenas o forte se reproduza. É com uma
inexorável dureza que aquele que não se conforma à vida natural é eliminado.
Isso é válido para as plantas, para os animais e no mesmo grau para os homens.”
As estruturas da organização dos mundos animal e
vegetal e a da sociedade humana são equiparadas. As noções de força, saúde,
submissão, dominação, agressividade e de hierarquia são aplicadas aos
mecanismos comportamentais de insetos ou mamíferos. Floresta e do serrado lutam
contra o pântano para seu espaço vital, assim como o fazendeiro de Frise tem de
reconquistar constantemente seu campo sobre o mar, embora o mar, de vez em
quando o invada e destrua o trabalho de anos.
Nessas analogias toma forma a visão nazista da
História, seguindo o título do estudo pioneiro sobre os Kulturfilme de
Christian Delage[27]. A evolução social é substituída
pelas leis cíclicas da natureza, onde a pureza da raça encontra-se ameaçada. As
tentativas de importar espécies animais seriam ilógicas e fadadas ao fracasso.
O homem não deveria contribuir para a permanência de vidas inúteis
transplantadas para um espaço sociobiológico alheio. A domesticação de animais
selvagens geraria existências anti-naturais. A seleção natural purificaria os
seres, eliminando os maus genes e melhorando as características dos mais aptos
a transmitir um patrimônio hereditário positivo.
Infelizmente, segundo o filme, não era possível
fiscalizar, em cada lar alemão, a normalidade dos nascimentos. Os hospitais
estavam lotados de doentes mentais. A maioria dos internados em asilos era
constituída de deficientes mentais atingidos de doença mental hereditária. Os
maus genitores podiam não apresentar traços visíveis de sua inaptidão para
gerar uma descendência sã. Era preciso, pois, submeter os casais a exames e
privar os inaptos da possibilidade de se multiplicarem.
O governo forneceria os instrumentos legais para
impedir que novas gerações fossem atingidas por doenças hereditárias. Os
“degenerados” seriam preventivamente esterilizados, liberando assim a Alemanha
de doenças sem esperança. Cada alemão deveria sentir-se solidário e responsável
pela saúde da população. A República de Weimar gastara muito com centros de
convivência para deficientes e nada fizera pela população sadia mais pobre:
imagens de hospitais luxuosos contrastam com ruas sórdidas onde crianças
maltrapilhas brincam na sujeira. As estatísticas revelam aos espectadores o
alto custo dos doentes físicos e mentais.
Em 1935, foram criados “institutos de biologia
hereditária”, o primeiro deles dirigido pelo Prof. Von Verschuer, e onde jovens
médicos, como o futuro Dr. Mengele, foram formados com experiências sobre
gêmeos. Verschuer mostrou-se satisfeito: Hitler era o primeiro estadista a
fazer da biologia hereditária uma política pública. Neste ano, Das Erbe
(“A herança”, 1935, 12’), de Carl Hartmann, apresenta-se como um documentário
pedagógico patrocinado por doutores universitários.
Num laboratório, um técnico exibe a luta entre dois
insetos. Cenas de um inseto sobre uma flor, de um cachorro latindo para um
porco espinho, de um gato comendo uma perdiz. Trata-se da “luta permanente pela
vida” e da “seleção natural segundo a lei do mais forte”. O perigo da
proliferação de degenerados para a “herança genética da raça” era
ilustrado por “monstros humanos” avançando em direção à câmera, em imagens que
sugeriam uma invasão de criaturas abjetas em constante multiplicação, ameaçando
predominar sobre a população sadia.
Homens, mulheres e crianças com graves deficiências
aparecem como condenados a passar a vida em estado vegetativo, recebendo
cuidados nas clínicas e hospitais, enquanto as saudáveis enfermeiras têm sua
juventude estragada por esse trabalho. Os pacientes são acusados de todos os
crimes, qualificados como idiotas, bobos, fracos da cabeça e do corpo, esquizofrênicos
e negros bastardos. Termos médicos mesclam-se a insultos e troças racistas.
Impedir o nascimento de uma nova geração atingida por doenças hereditárias
seria colocar em pratica “o amor ao próximo” e respeitar “as leis divinas da
natureza”.
E para garantir a expansão da Alemanha, não se
poderia ser egoísta: ter uma família numerosa “é uma obrigação quando se tem a
sorte de ter recebido em herança genes bons da raça ariana”. São covardes
aqueles que restringem voluntariamente o número de filhos, e ainda mais
culpados que aqueles que, atingidos pelo mal hereditário renunciam a procriar.
O aumento da população provoca o crescimento da economia: são os jovens sadios,
cheios de energia, de força, de coragem, de vontade e de determinação que devem
carregar o “Reich eterno dos alemães”.
Desde então, diversos documentários passaram a
pregar abertamente a esterilização dos portadores de doentes mentais,
hereditários e mal-formados. Mas nessa proposta já estava implícita a
necessidade de medidas mais radicais – sugestivamente, o extermínio em massa de
todos os “degenerados”: Erbkrank (“Doente hereditário”, 1934, 23’); Sünden
der Väter (“Pecados dos pais”, 1935); Abseits vom Wege (“Desviados
do caminho”, 1935); Sterilization beim Manne durch Vasorektion (“Esterilização
entre os homens através da vasectomia”, 1936, 5’)…
A eutanásia era apresentada como um dever de
médicos e enfermeiras politicamente engajados, numa ação hipocritamente
“inspirada” em conceitos cristãos. Era “importante”, segundo a propaganda,
enfrentar com coragem a “urgente questão” da “eliminação das vidas indignas de
viver”. Eram invocadas as “leis da natureza dadas por Deus” (gottgegebenen
Naturgesetzen) contra os “pecados dos pais” (Sünde der Väter) que,
por não terem se submetido a uma voluntária esterilização, haviam transmitido
sua má “herança” (Erbe) aos filhos, cuja “redenção” (Erlösung)
haveria de vir pela “morte misericordiosa” (Gnadentod).
Por outro lado, a chancelaria privada de Hitler
(Kanzlei des Führers, ou KdF) tinha o extermínio (Vernichtung) dos
doentes hereditários e mentais como Geheime Reichssache (“assunto
secreto do Reich”). Toda discussão pública em torno do “Programa de Eutanásia”
estava proibida, presumivelmente pelo próprio Führer[28].
Como então explicar que a RPA – Reichspropagandaamt
(Escritório de Propaganda do Reich), juntamente com a RPL –
Reichspropagandaleitung (Diretório de Propaganda do Reich) do NSDAP, produzisse
e distribuísse filmes de propaganda de esterilização e eutanásia desde 1935?
Esta aparente contradição entre as ações secretas e suas sublimações
cinematográficas ajuda a entender os estranhos mecanismos da propaganda
nacional-socialista.
A partir de casos singulares, a propaganda nazista
de esterilização e eutanásia apenas sugeria o assassinato em massa. Essa
sugestão tinha, contudo, um efeito real sobre a realidade, com vasto alcance
social. Através de uma fórmula modesta e razoável, o filme procurava obter o
assentimento do público para casos distantes, abstratos, particulares, exibidos
como exemplos. Esses casos transformavam-se, na prática “secreta” do regime, em
ações sistemáticas de matança de populações.
Nesse sentido, a imagem patética de um doente
incurável exibida na tela significava que milhares de doentes estavam sendo
assassinados em surdina na realidade. Um judeu executado num filme de ficção
significava que, naquele exato momento, milhares de judeus estavam sendo
levados às câmaras de gás. Aparentemente microscópica, a propaganda nazista
tinha um efeito devastador. As técnicas e os métodos das “ações” deviam
permanecer ignorados do público, através de estritas proibições. Ao mesmo
tempo, oferecendo alguns flashes dessa realidade, a propaganda buscava o
assentimento do público para os crimes cometidos em seu nome, e que deveriam
ser vagamente imaginados.
Opfer der Vergangenheit (“Vítimas do passado”, 1937,
26’), de Gernot Bock-Stieber, exibido em 5300 salas alemãs, comparava os
doentes hereditários a ervas daninhas, pregando o restabelecimento da lei de
seleção natural por meios artificiais, em nome do saneamento da população. O
público era incitado a colaborar com a política biológica deixando-se examinar
preventivamente pelos médicos. Às imagens de mal formados e cretinos
incuráveis, em introversões mórbidas dentro de hospícios, contrapunham-se cenas
de homens fortes trabalhando e de jovens hitleristas marchando, culminando com
imagens de operários montando aviões numa fábrica, dados como exemplo da
eficiência do homem sadio.
O público era incitado a colaborar com a política
biológica deixando-se examinar preventivamente: uma cena em estúdio com atores
mostra a visita de um jovem casal ao médico, que os alerta sobre os perigos da
gestação sem controle, explicando a importância da hereditariedade para a saúde
do indivíduo. Em inserto, aparece o Diário Oficial do Reich de 14 de
julho 1933 reproduzindo o texto da lei referente ao exame pré-nupcial
obrigatório. As autoridades médicas recomendavam a esterilização de todos os
portadoras de doenças hereditárias: “Toda vida é luta pela existência. Apenas o
forte pode sobreviver. Contra essa lei natural o homem pecou terrivelmente nas
últimas décadas. A multiplicação da vida indigna de viver deve ser, por lei,
impedida”.
Uma importante transição da propaganda do “Programa
de Eutanásia” para a propaganda da “Solução Final da Questão Judaica” surge no
documentário Was du ererbt (“O que você herda”, 1938), de Herbert
Gerdes, exibido como subsídio e seqüência de Erbkrank, retomando os
temas da esterilização e da eutanásia, mas introduzindo o do “perigo da contaminação
do sangue através da mistura de raças”. O filme pregava a necessidade de um
“saneamento da herança racial”. Na Alemanha, as pesquisas científicas para a
“solução da questão judaica” já haviam começado[29].
Na conferência Der Kampf um die Freiheit der
Forschung (“A luta pela liberdade da pesquisa”, 1938, 24’), Alfred
Rosenberg afirmou serem os judeus “o parasita no corpo da Europa” que precisava
ser eliminado, pois “uma raça só pode ser eterna quando ela não é envenenada
fisicamente por uma raça estranha”. O racismo era apresentado como um fator de
mudança da História e de reorganização do pensamento, como a fonte de uma “nova
liberdade, uma nova formação de idéias… de novas experiências e novas tarefas”.
A liberdade de pesquisa na Alemanha deveria ser submetida ao princípio da Rassenkunde,
sendo a arte e a ciência essencialmente “biológicas”, indissociavelmente
ligadas ao sangue[30]. Um primeiro meio técnico de
extermínio foi apresentado no documentário Kleiner Krieg : o inseticita
Zyklon B, popularizado como necessário ao controle da peste e da malária
e na eficiente destruição dos cupins. A mensagem tinha duplo sentido:
segundo o modelo da “pequena guerra” contra os cupins, uma guerra de caráter
biológico já estava sendo imposta à sociedade, tomada como um organismo vivo e
levada a desfazer-se das “vidas indignas de viver”, a começar pelos doentes
mentais, hereditários e incuráveis.
Paralelamente ao Kulturfilm biológico, o
filme de entretenimento desenvolvia-se um subgênero de apoio às forças que
organizavam o Holocausto: os Ärzte-Filme (“filmes-de-médicos”). Em Hanneles
Himmelfahrt, Elizabeth und der Narr, Die ewige Maske, Verwehte
Spuren, La Habanera, Der Volksfeind, Mädchen Joahnna, Artz
als Leidenschaft, Irrtum des Herzen, Das Herz muss schweigen,
Germanin, Aufruhr in Damaskus, Robert Koch, Paracelsus,
Opfergang ou Damals, o herói é o médico que pesquisa o Mal. Este
não é um herói sem máculas: incompreendido pelos colegas de hospital,
perseguido pelas autoridades por ter matado um paciente em experiências
científicas, ele de fato procurava um soro contra a doença que devastava a
população.
Esse médico – muitas vezes seguido por um discípulo
que se sacrificava testando em si mesmo o soro experimental – é ainda atacado
pelos ignorantes, que suspeitam a ciência de querer destruir suas vidas,
regradas pela religião. Ele é, no entanto, um herói, sempre acabando por
encontrar a “solução final” para a peste. Quando o perigo torna-se extremo, ele
decreta a quarentena, manda fechar as fronteiras, proíbe a livre
circulação das pessoas, faz queimar mercadorias contaminadas, tomando as
medidas mais extremas para proteger a saúde pública. Na “quarentena”, os
contaminados são isolados da população sadia à espera de um “tratamento
especial”.
A iconografia cristã da Idade Média e da Idade
Moderna associou os judeus à doença com as lendárias acusações de envenenamento
dos poços na época da Peste Negra, que desencadearam sua perseguição massiva em
toda a Europa. Os nazistas refizeram a associação em seus panfletos, discursos
e filmes. Mas as metáforas em imagens ainda não haviam sido estudadas. Em
dezenas de Ärtze-Filme, doentes sem esperança agonizam em meio à
pestilência enquanto um cientista alemão caça o micróbio que está na origem do
Mal. Trancado em seu laboratório, o médico-pesquisador conduz um combate
solitário contra a morte.
O microscópio torna-se o instrumento privilegiado
da investigação, já que o Mal onipresente é invisível a olho nu. É preciso
contar com um aparato e conhecimentos científicos para identificar o inimigo da
espécie humana. Finalmente, depois de ficar muito tempo com o olho grudado no
microscópio, o cientista detecta o elemento nocivo que degenera o tecido
social. Identificado o micróbio, o pesquisador pode desenvolver o soro contra a
peste. Prestimosas enfermeiras preparam as agulhas. O “tratamento especial” vai
começar. Os doutores reabilitados por suas descobertas injetam a solução nos
pacientes. O soro funciona. Como a fórmula do legendário Dr. Eisenbart, que
curava matando.
Com efeito, há doentes irrecuperáveis, que
estragaram sua herança genética e se arrastam numa “vida indigna de viver”.
Nenhuma piedade para eles. É o caso da jovem Hanna em Ich klage an,
geralmente interpretado como um filme de propaganda para o Programa de
Eutanásia, mas que reinterpretamos como uma fantasia de destruição do povo
judeu: o médico envenena a própria esposa vítima da degeneração da esclerose
múltipla: outrora cheia de vida, ela agora deseja desaparecer da face da Terra
antes de tornar-se cega e estúpida; e agoniza feliz nos braços do marido,
enquanto um amigo executa uma doce música ao piano.
A visão do Mal que o microscópio fornece nos Ärztefilme
é uma metáfora da visão do mundo antissemita, que é preciso adotar com a ajuda
do NSDAP e de sua doutrina, sem os quais ninguém conseguiria enxergar no judeu
“aparentemente inofensivo” o “inimigo da humanidade”. A “quarentena” é a
metáfora da internação dos judeus nos campos de concentração. E o “tratamento
especial” que os pacientes recebem na “quarentena”, as injeções do “soro
experimental”, corresponde às câmaras de gás.
Nestes filmes onde cientistas combatem a doença do
sono, as epidemias de tifo, cólera ou meningite, o bacilo da tuberculose, a
peste bubônica ou a esclerose múltipla, a “cura” corresponde à Edlösung,
desde a definição do casamento misto como “contaminação do sangue” até a
designação do internamento nos campos de concentração por “quarentena” e do
genocídio por “tratamento especial”. A agonia dos “doentes” e a “cura final”
que dedicados cientistas procuravam com obsessão sublimavam o Holocausto, assim
imaginado com alegada inocência.
Outra metáfora do gênero está em Reise an
der Vergangenheit (1943), de Hans Heinz Zerlett, onde Ferdinand Marian, logo
depois de interpretar o Jud Süss, faz um dançarino sedutor, que tinha
conhecido dias de glória no passado, mas que na nova Alemanha vive perto de
entroncamentos ferroviários e encontra-se contaminado por uma doença
contagiosa. Pode-se reconhecer na imagem desse doente incurável, à qual o
barulho dos trens acrescenta a sensação de um “transporte” iminente, a metáfora
dos judeus deportados. O cinema nazista não podia evitar tais fantasias de
destruição, a despeito de todo o segredo com que o Holocausto era cercado.
Os Ärtzefilme difundiram a luta heróica de
médicos contra uma epidemia que ganhava a cidade, o país e o mundo. A doença
contagiosa ou incurável deveria ser vagamente “percebida” como alusiva aos
judeus, penetrando no imaginário sem a necessidade de uma identificação prévia,
agindo no subconsciente associada a toda propaganda oral e escrita que os
comparava a parasitas, vermes, micróbios, pulgas, cogumelos, venenos, pragas,
bactérias, vírus, gangrenas e pestes.
Nesses filmes onde cientistas combatem a doença do
sono, as epidemias de tifo, cólera ou meningite, o bacilo da tuberculose, a
peste bubônica ou a esclerose múltipla, a “cura” corresponde à Solução
Final para a Questão Judaica, desde a definição do casamento misto como
“contaminação do sangue” até a designação do internamento nos campos de
concentração por “quarentena” e do genocídio por “tratamento especial”. De seu
Ministério, Goebbels obrigava os artistas a seguir um padrão realista de
narrativa, inspirado na literatura do naturalismo. Pôs fim ao sobrenatural, ao
fantástico, ao horror, que haviam marcado o cinema alemão. Desenvolveu o filme
histórico, o filme de guerra, o documentário cultural e o melodrama biológico.
O racismo transformou-se em pano de fundo para comédias românticas, dramas policiais,
operetas e musicais.
O vilão do cinema passou a ser caracterizado
segundo biótipos sociais. Era o “sedutor”, que corrompia a pureza de jovens
louras; o “vigarista casamenteiro”, que explorava mulheres ingênuas; o “grande
capitalista”, que prejudicava a sociedade com seu amor ao dinheiro; o
“criminoso de cartola”, que falsificava valores; os “ingleses”, apresentados
como plutocratas, aventureiros inescrupulosos, tiranos cruéis ou brutais
criminosos; o “espião”, sempre de origem eslava, russa ou polonesa; o
“jornalista”, representante da social-democracia; e o “tirano”, visto como um
protetor dos “inimigos do povo”.
Esses “vilões” associavam-se aos “judeus” da
literatura antissemita, descritos como corruptores, vigaristas, capitalistas,
criminosos, espiões e comunistas, também confundidos com ingleses, eslavos e
ciganos. Refletindo e justificando a política biológica do regime, o cinema
nazista brindou os espectadores com imagens do “inimigo racial” elaboradas por
uma equipe de roteiristas, diretores, cenógrafos, fotógrafos, diretores,
iluminadores, maquiadores e atores.
A destruição dos judeus foi, assim, uma fantasia
constante e variada no cinema nazista. Ela atingia um indivíduo caracterizado
como “capitalista”, como o empresário que deseja fabricar ouro, e que é
literalmente explodido, em Gold; uma família de empresários, desagregada
por um “interventor”, como em Der Herr Senator ou Der Mann, der
Sherlock Holmes war; ou casais “mistos”, onde um parceiro é eliminado
através da separação, como em Es war eine rauschende Ballnacht; do
suicídio, como em Schlußakkord; ou da doença, como em Ewiger
Rembrandt.
O meio preferido da destruição era a injeção fatal
de veneno, mas também foram usados, como substitutos, o gaseamento, o
desaparecimento, o naufrágio e o afogamento. As vítimas, associadas aos judeus
por uma série de características biotípicas, desapareciam sem deixar traços,
sem despertar compaixão, sem exigir punição.
Nos filmes policiais, onde a identidade do
criminoso permanece oculta até a cena final, desenrolada geralmente num
tribunal, um “ariano” inocente, sobre o qual recaem todas as suspeitas, está
prestes a ser condenado, quando se descobre que o assassino é um tipo
“mediterrâneo”, como em Der Verteidiger hat das Wort. Os maus elementos
também assumem a forma de gangue, associada aos judeus por detalhes cenográficos,
como a identidade das espiãs bolchevistas, em Der Page vom Damasse Hotel;
o uso obsessivo de um castiçal estilizado como Menorah, em Sargent Berry;
de um cachecol lembrando um talit, em …reitet für Deutschland; ou de
cartolas e charutos, como em Der Mann, der Sherlock Holmes war.
Em 1939, Hitler decide colocar em prática seus
planos de extermínio do judaísmo europeu, mergulhando o mundo numa guerra. O
antissemitismo, já largamente difundido de maneira sugestiva torna-se explícito
no cinema alemão. Os novos filmes davam um nome à “imagem do inimigo” delineada
em centenas de comédias, dramas, musicais, policiais e filmes de aventura onde,
à maneira de Hollywood, a normalidade era garantida com o extermínio do vilão.
O vilão exterminado era sempre estrangeiro, banqueiro, espião, moreno, de nariz
adunco, olhar mortiço e chapéu-coco, muitas vezes gordo, fumante e beberrão.
Robert und Bertram reforçava a idéia da “justiça”
implícita no saque aos judeus ricos. Em Leinen aus Irland, tecelões eram
prejudicados por um judeu que usava a “máscara da civilidade”, mas cuja
essência permanecia “brutal, covarde e avara”[31]. Die Rothschilds mostrou os judeus como
criaturas perigosas, inumanas, capazes de se esconder em armários como ratos,
ou de enfiar seus narizes nas portas entreabertas a fim de sondar os salões e
especular com dinheiro alheio, parasitando ricos de tradição, lucrando com
guerras sangrentas, fingindo-se de pobres para penetrar na sociedade através da
sedução de mulheres. O que torna os judeus do filme inumanos é a ausência de
mulheres: os Rothschilds são mostrados como homens desprovidos de mães e
esposas, não fecundados e infecundos, como cogumelos brotados da terra ou
parasitas sem geração humana. Astutos e medrosos, não vão à guerra e procuram
“lugares seguros” para instalar-se. Ávidos, só pensam em dinheiro; estúpidos,
são liderados por “tipos perigosos”, como o complexado e vingativo Nathan, cujo
plano é conquistar o mundo.
A crítica oficial amalgamava os judeus da realidade
aos judeus do imaginário numa única imagem de “epidemia” ameaçando a Europa:
isto justificava prisões indiscriminadas e deportações em massa. As
falsificações do filme já eram aplaudidas por um público “preparado pelas atualidades
e documentários”. A ficção sublimava a propaganda disseminada por outros meios
de comunicação, com suas estatísticas vertiginosas, seus discursos abstratos,
sua paranóia descarnada, sem realidade física: o filme fornecia, para além das
possibilidades daqueles meios, super-vilões dotados de realidade corporal e
espiritual, pensando, falando, movendo-se e agindo tal como um antissemita
imaginava os “judeus”: odiosos, perigosos, maquiavélicos, estúpidos, falsos,
mentirosos, diabólicos, totalitários; vilões de uma qualidade dramática e
visual sem precedentes. A política antissemita fechava o cerco.
Para a filmagem de Jud Süß, Goebbels propôs
aos intérpretes os modelos do grupo de teatro de Vilna projetando-lhes o filme
ídiche Dibbouk. A primeira apresentação pública do filme deu-se a 8 de
agosto de 1940, durante a Bienal de Veneza, onde conquistou o grande
prêmio. O diretor, Veit Harlan, evocou em suas memórias sua viagem de
documentação em Lublin. Goebbels opôs-se à vinda de judeus a Berlim e foi nos estúdios
de Praga que Otto Hunte e Karl Vollbrecht reconstituíram a célebre sinagoga
gótica Altschul. Cerca de 100 figurantes judeus foram levados a
interpretar uma festa religiosa e um rabino zelou para que a interpretação de
Werner Krauss como o rabino Loew fosse a mais autêntica possível.
Os atores judeus escolheram cantar a prece judaica
fundamental, o Shema Israel, e depois a mais alegre das festas
religiosas, a Simhat-Torah. Algumas medidas do canto Guemal-guemali eram
emprestadas do repertório dos primeiros imigrantes sionistas em Israel,
compostas nos anos 20 pelo jovem músico Yedidia Admon, citando versículos
bíblicos e adotadas pelos operários judeus que edificaram o norte de Tel Aviv. Jud
Süß descrevia a carreira de corrupção de um judeu da corte, enforcado pelo
povo depois de violar uma donzela. O filme fez grande sucesso na Alemanha e na
Europa ocupada, onde era exibido antes das ações de deportação, preparando
psicologicamente as populações locais para evitar qualquer gesto de piedade em
relação aos judeus levados para a morte.
Os nazistas também produziram propagandas
pseudo-realistas, nos próprios guetos que criaram, a partir de 1940, na
Tchecoslováquia e na Polônia, onde ficava o mais famoso deles, o de Varsóvia.
Nesses locais de estadia provisória, os judeus deportados morriam lentamente de
fome e doenças. Em começos de setembro, Goebbels investiu 4 milhões de marcos
na produção de Heimkehr, que deveria ser, depois de Ohm Krüger, o
filme nazista mais caro realizado até então. No filme, passado na Polônia, em
1939, os poloneses mergulham numa histeria de ódio fanático contra a minoria
alemã que vive em seu território; os pogroms são desencadeados pelos
judeus. Goebbels honrou Ucicky com uma distinção especial e cuidou para que o
filme, já premiado em Veneza, fôsse exibido em sessões especiais para soldados,
feridos em hospitais e trabalhadores de indústrias de armamentos[32].
A campanha de imprensa em torno do filme foi
excepcional. Toda a imprensa coordenada sublinhava que Heimkehr mostrava
que, por trás da opressão sofrida pelos alemães longe da pátria, encontrava-se
o “judeu”[33]. O mundo não-ariano é mostrado
como um universo tenebroso de violência, dominado pelo “egoísmo” e pela vontade
da “judiaria internacional” de exterminar os alemães, os únicos seres humanos
sensíveis e bons, que só desejavam a paz. O próprio antissemitismo, revelado na
cena do boicote de Marie ao comerciante judeu, é mostrado como um gesto de
nobreza diante da baixeza de “mercadores de duas caras” que elogiam o Führer
e os alemães para em seguida desejar que a terra os engula.
Heimkehr reafirmava o sentimento de que a pátria nazista
era um ninho acolhedor não somente para os antigos imigrantes, mas, sobretudo,
para os que nela se encontravam. Viver na Alemanha nazista era uma dádiva,
esclarecia o filme. E que nenhum alemão se enganasse: os judeus moviam contra a
Alemanha uma guerra impiedosa, e os desgarrados da pátria que se encontravam
sem a proteção do Führer, como uma minoria em território estrangeiro,
esses seriam perseguidos, apedrejados, cegados, violentados e mortos. Heimkehr
funcionava como um espelho invertido da realidade, onde vítimas e carrascos
trocavam de papel para que os alemães pudessem ver-se, na tela, exterminados
pelos judeus pelos mesmos métodos que empregavam para exterminar os judeus na
realidade.
Em 28 de novembro de 1940 foi lançado Der ewige
Jude, produzido e dirigido por Fritz Hippler, o intendente do cinema do
Reich e Hauptsturmführer. Seu argumento foi desenvolvido pelo Dr.
Eberhard Taubert, conselheiro governamental para propaganda anti-comunista[34].
O filme pretendia ser “uma contribuição cinematográfica ao estudo do problema
da judiaria mundial”, retomando o tema do livro Der ewige Jude, do Dr.
Hans Diebow, lançado em 1937, e da exposição homônima, inaugurada na biblioteca
do Deutsches Museum de Munique, e que pode ser vista até a metade de
1939 em Viena, Berlim, Bremen, Dresden e Magdeburg[35].
Diversas seqüencias do filme foram rodadas na
Polônia, após a invasão, notadamente em Lodz, Varsóvia, Cracóvia e Lublin. O
filme foi narrado pelo próprio Fritz Hippler e, durante o desenrolar dos
créditos, uma legenda informava: “Os judeus civilizados que conhecemos na
Alemanha dão-nos apenas uma idéia imperfeita das características de sua raça.
Este filme apresenta tomadas autênticas dos guetos poloneses, mostra-nos os
judeus tal como eles são na realidade, antes de se esconderem atrás da máscara
do europeu civilizado”.
O narrador mencionava que tanto os “melhores
judeus” (os da Alemanha) quanto os “piores” (os da Polônia) representam a mesma
“baixa forma de seres humanos”. Sobre closes de judeus de longas barbas
e faces macilentas, comenta-se: “Antes, os judeus podiam ser olhados como
caracteres cômicos, mas agora cada pessoa sensível precisa perceber que eles
são um perigo, uma pestilência, uma ameaça à humanidade”.
Os judeus são associados a ratos, numa montagem
paralela entre os roedores esgueirando-se nos cantos, e os judeus no gueto de
Lodz: “Como os judeus, o rato pardo que também possui uma origem asiática
similar, atravessou a Europa”. Roedores se amontoam; judeus do gueto
esgueiram-se nos cantos: “Para onde os ratos vão trazem sempre extermínio para
a terra, destroem os grãos e os meios de subsistência. Desta maneira propagam
doenças, peste, lepra, tifo, cólera, etc. Eles são arredios, covardes,
horríveis e sempre atacam em bandos. Dentre todos os animais, eles contêm o
elemento mais destrutivo e ameaçador. Exatamente como os judeus entre os seres
humanos”.
Para culminar, o filme apresenta a “matança de
animais nos açougues judaicos”, qualificada como “um dos costumes mais
instrutivos da assim chamada religião judaica”. As cenas são dadas como genuínas:
“Elas estão entre as mais horripilantes que uma câmara já filmou. Estamos
mostrando-as a despeito disso, sem levar em conta objeções por razões de gosto.
Porque, mais importante que qualquer objeção é o fato de que nosso povo deve
saber a verdade sobre o judaísmo. Estas imagens são uma evidência inequívoca da
crueldade desta forma de açougue. Ao mesmo tempo elas revelam o caráter de uma
raça que concilia sua brutalidade crua com as mais pias práticas religiosas”.
Açougueiros judeus sangram, rindo, vacas e
carneiros, passando facões pelo pescoço dos animais amarrados; suas mãos entram
nos corpos rasgados para arrancar tripas e coração; as cenas seguintes mostram
“como os judeus aperfeiçoaram estas técnicas”, com os acougueiros rasgando a
garganta dos animais, agora desamarrados. As vacas tentam, em vão, esfregando a
ferida no chão, fechar a segunda boca que lhe abriram no pescoço.
Estas cenas, dificilmente suportáveis, são seguidas
pelo discurso de Hitler no Reichstag a 30 de janeiro de 1939, dirigido
às tropas SS e SA, no qual anunciou o fim da vivissecação dos
animais e a destruição da “raça judaica” na Europa: “E assim como se acabou com
esta cruel vivissecação, a Alemanha do nacional-socialismo acabará com toda a
raça judaica”. Por fim, tropas de jovens loiros marcham enquanto o narrador
incita os espectadores: “Pureza racial para sempre!” Como observou o
historiador Richard Taylor, Der ewige Jude é uma propaganda tão eficaz
que pode fazer até um judeu tornar-se antissemita[36].
O filme justificava o gueto de Varsóvia, onde
centenas de milhares de judeus foram obrigados a viver num território de 10
km2. Os nazistas obrigavam, agora, os judeus da realidade a se ajustarem aos
judeus de seu imaginário. Assim, em visita ao gueto de Lodz, Goebbels pode
descrevê-lo em termos bastante pessoais: “As pessoas esgueiram-se como insetos
pelas ruas. Não são mais seres humanos, são animais. Por isso, também, esta não
é uma tarefa humanitária, mas cirúrgica. Devemos fazer cortes aqui; aliás, bem
radicais. Caso contrário, a Europa será destruída pela doença chamada judeu… O
judeu é um produto do lixo. É mais uma questão clínica que social”[37].
Os nazistas obrigaram os judeus a representar a
imagem da doença que sua propaganda deles produzia. Chamados de parasitas, os
judeus foram levados, por proibição de trabalho, a se transformarem em
parasitas. Metaforizados em peste em meio à miséria em que eram lançados,
viram-se devorados por piolhos, contraindo e transmitindo tifo e cólera.
O Film Kurier comentou: “É aqui, no gueto da
antiga cidade polonesa de Lodz, que a câmera apanhou estes tipos de judeus
capazes de encarnar, da maneira mais visível que seja, a judiaria mundial.
Estes personagens habitavam os cantos, ruelas e pátios dos quarteirões judeus,
mas também palácios pomposos e sobrecarregados, hoje utilizados para outros
fins mais meritórios: ali foram descobertos estes rostos incultos que o filme
nos mostra. A câmera passeou então através do gueto de Litzmannstadt, antes
mesmo que interviesse a mão organizadora da administração alemã, que evacuou o
miasma destas estrebarias de Augias, para fixar a imagem verdadeira, sem
retoques, desta cloaca fedorenta, a partir da qual a judiaria mundial adquiriu
influência sempre crescente”[38].
A mensagem é a de que os judeus desenvolvem seus
negócios entre as doenças e que por esta razão fazem o máximo para aumentar e
perpetuar a insalubridade. Fritz Hippler justificou a necessidade do filme
observando a quem dissesse “de novo, um filme sobre o problema judeu!”, que o
problema judeu não cessaria de ser um problema agudo, “até que o último judeu
tenha deixado todas as nações nãojudaicas do mundo”. Nas duas sessões
inaugurais, a 28 de novembro de 1940, no Ufa-Palast am Zoo, a orquestra
da Rádio Berlim executou a abertura de Egmont, de Beethoven.
O filme foi lançado em 66 cinemas de Berlim. O Ufa-Palast
am Zoo apresentava-os em duas versões diferentes. A sessão das 18:30
mostrava a versão integral; as cenas de matadouro eram poupadas aos
espectadores da sessão das 16:00, recomendada às almas sensíveis; as mulheres
só eram admitidas nesta sessão. Na versão para o estrangeiro, o texto do
comentário de Eberhard Taubert foi abrandado, para não comprometer a
verossimilhança[39].
A propósito de Der ewige Jude, o historiador
Friedrich Kahlenberg afirmou que “os nazistas estavam mais à vontade no
documentário que, mais do que a ficção, permitia as maiores manipulações”[40]. Contudo, foi na propaganda atmosférica dos filmes
de ficção, que agia a níveis subconscientes, que os nazistas mostraram-se
insuperáveis, e sua propaganda mais eficaz. Como escreveu Siegfried Kracauer,
“os diretores de cinema nazista, confiando nos instintos, chegaram a ser
mestres na arte de mobilizar as zonas escuras da mente”[41]. Confirmando esta afirmação, e ao contrário da
expectativa de Fritz Hippler, Der ewige Jude não obtêve a receptividade
de Die Rothschilds ou de Jud Süß.
O Serviço de Segurança reportou que o número de
espectadores diminuiu rapidamente depois das primeiras exibições[42]. Apreciado pelos militantes nacional-socialistas,
o filme foi rejeitado pelos típicos espectadores de cinema, que deixavam a
sessão, nauseados com as cenas do matadouro. Contudo, as autoridades alemãs na
Holanda ocupada decretaram que todo cinema holandês deveria incluir Der
ewige Jude no programa, durante seis meses, e o filme foi massivamente
projetado nos países ocupados, como prelúdio às deportações. A nota de
esperança posta na cena final – o discurso de Hitler profetizando o extermínio
da raça judaica – transformava as deportações num “anseio popular”, mobilizando
os cidadãos politizados e reduzindo os indiferentes à paralisia.
Bernard Goldstein escreveu: “Os cinegrafistas
nazistas eram tão cuidadosamente objetivos quando filmavam cenas reais quanto
ao fazer tomadas posadas. Cadáveres abandonados nas ruas, esqueletos humanos
morrendo de fome, crianças mendigas seminuas e solitárias, tais quadros eles
jamais filmaram”[43]. Na verdade, os nazistas
filmaram tudo isso, como o prova um filme que permaneceu inacabado, sem trilha
sonora. Não interessou ao regime sua exibição pública. Tornou-se impróprio a
qualquer delírio de propaganda o registro das pilhas de cadáveres de judeus
mortos de tifo e fome sendo recolhidos das ruas e enterrados em valas comuns.
Tais imagens poderiam abalar os cidadãos hitleristas não totalmente convencidos
da necessidade de “limpar o mundo da anti-raça judaica”.
Uma cópia incompleta dele sobreviveu e pude vê-la
no Museu Yad Vashem: The Warshaw Ghetto. O filme seria outra
“denúncia” dos judeus como agentes transmissores da doença: grandes planos de
cabeças de crianças cujo couro cabeludo estava sendo devorado por piolhos, uma
menina catando os piolhos do irmãozinho, uma mulher louca passeando com seu
bebê morto pelas ruas apinhadas de doentes, cadáveres e corpos sendo recolhidos
por carrinhos, para serem atirados em valas comuns. Toda esta miséria era
filmada com “interesse científico”, como que para documentar a existência de
bacilos e micróbios de aparência humana, chamados “judeus”.
A prova desse distanciamento inumano era que se
tentava, sempre que possível, contrastar os miseráveis com os “ricos” do gueto,
montando cenas de crianças contrabandistas com interiores de belas casas
vazias; um quarto onde uma família morria à míngua, com uma mulher maquilando-se
numa penteadeira repleta de perfumes; o judeu mais desgraçado frente àquele que
ainda mantinha a aparência saudável, a judia trajando roupas apresentáveis
diante de tipos cobertos de trapos. O método comparativo era uma forma de
responsabilizar os judeus “ricos” pela miséria do gueto, de denunciar a
“injustiça social” que reinava entre os judeus, de culpá-los, enfim, de sua
própria destruição.
Sobrevivente do gueto, Rachel Auerbach recordou-se
ainda das filmagens de um documentário jamais exibido: The Singing Ghetto.
As imagens deste filme iam e vinham em sua mente, como num sonho: “Até os
mortos cantavam no filme. Tamborilavam com seus pés como se mendigassem: –
Dinheiro, ah, dinheiro. Dinheiro é a melhor coisa que existe”[44].
Em 1944, o SS-Filmberichter realizou Der
Führer shenckt den Juden eine Stadt, para que desse “documentário” emanasse
uma imagem positiva dos campos de concentração. O campo de
Terezín foi construído, dentro de uma antiga fortaleza, nas proximidades de
Praga, como um campo de exceção, um “faz de conta”, onde tudo fora
“embelezado”. No filme, os prisioneiros representavam uma vida saudável ao ar
livre, com trabalhos suaves em oficinas, distração e lazer programados.
No fragmento de 15 minutos existente no
Bundesarchiv, em Berlim, homens fortes martelam ao som de uma alegre música de
“can-can”. Forjam e colocam ferraduras numa vaca. Uma senhora demonstra suas
habilidades manuais, esculpindo um cavalinho. Um escultor modela a estátua de
um menino risonho montado sobre um peixe algo horrendo. Alfaiates cortam panos,
mulheres fabricam bolsas. Todos usam a estrela amarela. Na grande praça
do campo, centenas de espectadores encantam-se com uma partida de futebol.
Os jogadores são homens fortes. As crianças estão
contentes. Rostos tristes são rapidamente entrevistos na multidão. Depois do
jogo, homens nus, de compleição forte, tomam ducha: “Uma sala de banhos foi
colocada à disposição da população”, afirma o alegre narrador. Na biblioteca,
intelectuais encontram-se, todos com livros na mão. O concerto de compositores
judeus, com grande audiência, é bastante aplaudido. Há arranjos de flores nas
mesas.
As conferências acadêmicas são seguidas com atenção
por pessoas sérias e visivelmente cansadas. Hortas plantadas junto às muralhas
da fortaleza são regadas por moças alegres. Mulheres e crianças tomam sol nos
bancos de jardim e conversam mais ou menos animadas. De noite, nos dormitórios
coletivos, a conversa e a leitura continuam, enquanto outras mulheres tricotam.
As imagens e a narração deste “documentário” evocam
outras realidades. A alegria na forja traz a mesma carga de sadismo do portão
de Dachau, onde os prisioneiros morriam por esgotamento sob o slogan “O
trabalho liberta”. Em Theresienstadt, a “atividade febril” contrasta com os
rostos sem expressão, paralisados em faces macilentas. Toda conversa –
silenciosa – integra a encenação.
O veterano ator judeu Kurt Gerron havia sido preso
na Holanda pela Gestapo. Como homem de cinema, foi convocado para dirigir esses
“atores” prisioneiros, maquiados para encobrir seu estado, e obrigados a
representar homens livres de qualquer constrangimento. A encenação deveria
permitir que o mundo testemunhasse a vida “folgada” dos judeus nos campos de
concentração de Hitler, enquanto os arianos imolavam-se nos campos de batalha.
Para a realização do filme, súbitos “melhoramentos”
surgiram em Terezín: lojas foram construídas, ruas pavimentadas, barracas com
cortinas novas, mesas guarnecidas com arranjos de flores. Todos foram bem
nutridos, vestidos e maquilados para a ocasião. Apresentado como uma colônia de
trabalho e de férias, o campo parecia abrigar “hóspedes” felizes. Terminadas as
filmagens, os “cenários” foram desmontados e os “atores” assassinados,
incluindo as crianças[45].
Kurt Gerron foi deportado para a Polônia, e morreu
gaseado em Auschwitz. Como escreveu Wollenberg, este filme foi “provavelmente o
exemplo mais horrível e mais repugnante dos abusos aos quais o cinema pode
conduzir”[46]. Em 1945, quando mais de 4
milhões de judeus já haviam sido aniquilados nos guetos, nos campos de trabalho,
concentração e extermínio, os nazistas ousaram apresentar Der Führer schenkt
den Juden eine Stadt aos representantes da Cruz Vermelha Internacional.
Ao lado desses filmes de propaganda política, Kulturfilme
biológicos ainda eram produzidos: Wer gehört zu wem? (1944, 19’), de
Anton Kutter, assinalava a importância da pesquisa genética: numa maternidade,
o médico-chefe informa uma enfermeira sobre uma suspeita de troca de bebês. O
instinto maternal e a consciência profissional das enfermeiras não bastam para
garantir a identidade dos recém-nascidos: é preciso fundamentar cientificamente
esse reconhecimento. Os pais suspeitosos são convocados ao Instituto de
Genética. Para saber se um filho não foi trocado por outro, introduz-se o
método de descrição dos sinais físicos e fisiológicos do parentesco.
As medições antropométricas da criança e dos pais
são comparadas: tamanho do crânio, impressões digitais e cor dos cabelos
constituem a primeira abordagem. A pesquisa dos grupos sanguíneos estrutura a
identidade a partir da transmissão do patrimônio biológico. Para não sujeitar
ostensivamente o corpo médico ao poder político, a declaração de conformidade
genética da criança é objeto de decisão judicial. Um tribunal, chamado para
julgar o caso, declara que não houve troca no hospital. Frente a persistentes
dúvidas dos pais, o diretor do Instituo Genético explica-lhes as “leis da
hereditariedade”.
Goebbels tampouco encerraria tão cedo a propaganda
antissemita no “cinema de entretenimento”. Ainda em 1945 ele tinha o projeto de
levar às telas O mercador de Veneza, de Shakespeare, numa grande
produção a ser dirigida por Veit Harlan. O cineasta aceitara a oferta como a
melhor de outras três que Goebbels lhe fizera. O Ministro desejava que a trama
fosse precedida de um prólogo, onde, numa placa de mármore, gravada em letras
de ouro, uma sentença esclareceria o público sobre a peça, na qual o maior
poeta de todos os tempos teria exprimido sua opinião sobre os judeus[47]. O projeto não chegou a sair do papel. Podemos,
contudo, imaginar com que mórbida pompa tal filme seria lançado, enquanto os
fornos crematórios funcionavam a plena carga.
A classe artística na Alemanha colaborou com a
política genocida fabricando imagens justificativas do assassinato legal. Mas
em que medida o cinema, pode ser responsabilizado pelas práticas que levaram ao
Holocausto? Brice Parrain certa vez escreveu: “As palavras são pistolas
carregadas”. E Jean-Paul Sartre mostrou que as palavras podem converter-se em
ação, quando alguém, por exemplo, grita “Cuidado!” a outro alguém prestes a ser
atropelado. E se uma imagem vale mais que mil palavras, então um filme
antissemita é potencialmente mais perigoso milhares de vezes que um panfleto
antissemita. Um filme atinge multidões, em diversos pontos do planeta,
simultaneamente: os filmes são bombas acionadas numa sala de cinema.
Dina Porat escreveu que a documentação meticulosa e
a mestria dos fatos são os únicos caminhos apropriados para perpetuar a memória
do Holocausto: “O Diabo está nos detalhes”[48]. Desse ponto de vista, o cinema do ‘Terceiro
Reich’ torna-se um rico campo de pesquisas. Uma grande parte da produção de
filmes nazistas sobreviveu praticamente intacta à guerra, conservada hoje nos
arquivos de cinema da Alemanha. É preciso apenas saber identificar, nos
espólios de Goebbels, os fundamentos de sua anunciada estética
nacional-socialista, e “ler”, nas entrelinhas das imagens, os sinais de uma
subversão moral sem precedentes na História.
Se o artista é livre, também é responsável por sua
criação. Muitos artistas na Alemanha, depois de 1945, declararam que nada
podiam contra a máquina da propaganda: foram pegos na engrenagem, não
conseguiram escapar. É verdade que se chegou ao ponto em que o protesto e a
oposição implicavam em risco de vida. Resistir, nesse momento, exigiria um
heroísmo incomum. Mas também é verdade que, antes disso, foi possível a cada um
reagir ao mal. Os artistas alemães não são tão culpados em 1944 quanto o foram
em 1933 – quando não protestaram contra o “saneamento” da indústria
cinematográfica. Pode-se dizer que todo o resto foi uma conseqüência, cuja
responsabilidade recai sobre a classe inteira.
Goebbels queixou-se certa vez a seu assessor de
imprensa Wilfried von Oven: “O senhor devia imaginar como se comportarão estas
senhoras e estes senhores quando não estivermos mais aqui. Todos eles comeram
do nosso pão, sentaram à nossa mesa, gostaram de receber de nós seus salários
milionários e seus títulos de professores e atores do Estado. Mas sei muito bem
que eles serão os primeiros a se voltarem para os novos senhores, pretendendo
que teriam sido sempre bons anti–fascistas, silenciando sobre o recebimento do
dinheiro e das honras. Eu conheço esta gentalha”[49].
Em certo sentido, Goebbels não estava enganado ao
dizer isso. Terminada a guerra, e após uma superficial desnazificação, os
artistas e técnicos que haviam colaborado para edificar o cinema do ‘Terceiro
Reich’ retornaram às suas atividades no cinema alemão, e o único cineasta a
sofrer um processo por crime contra a humanidade foi Veit Harlan, que mesmo
assim retomou a direção de cinema em 1947. Os novos senhores da Alemanha do
pós-guerra contaram com os mesmos atores, técnicos e cineastas do ‘Terceiro
Reich’ para produzir seu entretenimento até o surgimento do chamado Novo Cinema
Alemão, que mudou esse panorama, mas não sem sofrer suas influências.
O cinema alemão pode ser assim integrado como
suporte ideológico à política de extermínio do regime, justificando-o
esteticamente, isto é, brindando os espectadores com fantasias de destruição do
“inimigo racial” em imagens cuidadosamente elaboradas em diversas instâncias e
nem sempre conscientemente por todos os que colaboram na sua produção.
Normalmente, o imaginário já se ancora na realidade social e, poroso, jamais se
livra de suas infiltrações, refletindo necessariamente o momento histórico no qual
é gerado. Orientado politicamente, o imaginário sobrecarrega-se, então, de
mensagens, torna-se afiado e cortante, ostensivamente modelador.
As fantasias de destruição no cinema nazista falam
dos limites da imaginação num sistema totalitário, onde a verdade deve ser
apagada. Parte do material reprimido retorna sob outra forma, mascarada e
sublimada. Depois de liquidar o gênero fantástico, o cinema nazista inventou um
realismo fantasmagórico adequado à sua ideologia. As leis deste universo
mórbido não são as da lógica, mas as da metamorfose dos seres segundo as “leis
da natureza”. As imagens de agonias remetem a utopias de extermínio e a “cura
final” que os dedicados cientistas procuravam sublima o Holocausto sonhado com
alegada inocência, em imagens tão sádicas que ainda hoje impressionam.
O cinema nazista não cessou de sancionar o
genocídio como uma política pública e secreta. O Holocausto foi simultaneamente
divulgado e ocultado. Essa forma de manipulação das consciências encontrou na
metáfora da peste, alusiva ao que não podia ser dito, sua arma mais eficaz. Os
imaginários de destruição constituíam um reforço cultural às práticas do
genocídio, um relevante apoio do meio artístico às forças que organizavam o
Holocausto. Os Ärztefilme glamourizavam a “missão” dos médicos SS.
Goebbels não podia evitar, a despeito de todo o segredo com que o Holocausto
era cercado, a produção de tais fantasias de destruição. Seus propagandistas
jogavam maliciosamente com o “grande segredo” em metáforas visuais que
revelavam o horror dos bastidores de maneira ambígua, injetando morbidez no
entretenimento de massa para tornar a população alemã cúmplice inocente do
crime inimaginável.
O crítico comunista Georges Sadoul qualificou os
filmes nazistas de “baixas fabricações comerciais”, substituindo o exame da
realidade por um automatismo da retórica marxista. Assim como os historiadores
marxistas mostraram-se incapazes de compreender a autonomia do nazismo em
relação ao capitalismo monopolista que o gerou, os historiadores marxistas do
cinema não perceberam a especificidade do cinema nazista que se apresentava
como “puro entretenimento”, sendo fabricações ideológicas cujo valor comercial
é por vezes secundário.
A visão marxista toma o fato de o filme de
entretenimento representar a maior parte dos investimentos do cinema nazista
como prova de que ele teve de se submeter às leis do mercado, satisfazendo o
gosto do público, à maneira do cinema americano. Para Francis Courtade e Pierre
Cadars, no cinema nazista as decisões de rodagem seriam determinadas pelo
orçamento e pela arrecadação, em oposição ao cinema soviético, cujo custo era
descontado do produto social, sendo a decisão de rodagem um ato estritamente
político.
No entanto, como conciliar essas teorias com o fato
de que Goebbels também encomendava roteiros que tinha por importantes, e
aos quais ele se atinha indiferente ao prejuízo que pudessem trazer, e que
freqüentemente traziam? Goebbels nem sempre levou em conta os gostos dos
espectadores; ou, antes, levava em conta estes gostos apenas para tornar mais
efetiva sua propaganda: soube adaptar a propaganda ao gosto do público. Ou
seja: o cinema nazista usava o mercado segundo seus objetivos políticos,
“submetendo-se” ao gosto do público apenas para melhor modelá-lo.
Se Goebbels exigia dos filmes, em primeiro lugar,
que fossem bem feitos, isto não quer dizer que ele cedia à “força de pressão do
público”, mas que sabia como vencer esta força desde dentro, desviando-a para
seus objetivos, dando ao público a sensação de divertir-se “sadiamente”,
reencontrando na tela uma sublimação de suas vidas modeladas na realidade.
Através do cinema, o nazismo invadiu pouco a pouco o espaço interior dos
indivíduos, dando-lhes uma imaginação, uma fantasia e um sonho estatais.
Goebbels percebeu, com os fracassos de bilheteria
de Hitlerjunge Quex, S.A. Mann Brand e Hans Westmar,
produzidos logo após a tomada do poder, que uma propaganda política direta não
atraía o grande público para as salas de cinema. Para que, no filme de ficção,
a propaganda pudesse agir, ela deveria ser ingerida inconscientemente como um
veneno cujo gosto amargo se dissimula com muito açúcar ou misturada a outra
bebida forte. Quando tinha dúvidas em relação a alguma campanha o Ministro da
Propaganda ia ouvir sua mãe, não porque confiasse em sua sabedoria, mas por que
ela expressava quintessências de banalidade que refletiam a opinião comum e
majoritária: ao ouvir sua velha mãe, Goebbels ouvia a voz do povo.
As leis de oferta e procura do mercado, que
produziam os sucessos de bilheteria, deveriam ser uma espécie de sismógrafo
para a produção ideológica, cujo efeito sobre as massas só seria total se a
mensagem a atingir o público coincidisse com o sucesso do filme nas
bilheterias. Tanto política quanto economicamente, o Estado nazista permaneceu
simultaneamente independente e dependente do mercado e de sua lei de oferta e
procura. Goebbels criou, assim, um cinema atraente, mesclando o glamour
do star-system americano às técnicas de mobilização do cinema soviético,
em obras que agradavam ao público, nele incubando uma mensagem latente que agia
imperceptivelmente. Como o próprio Ministro observou em Erkenntnis und
Propaganda,
Não desejo algo como uma arte que prove seu caráter
nacional-socialista tão somente pela apresentação de emblemas e símbolos
nacional-socialistas, mas uma arte cuja atitude seja expressa através de
caracteres nacional-socialistas e do levantamento de problemas
nacional-socialistas. Estes problemas penetrarão a vida sentimental dos alemães
e de outros povos tão eficazmente quanto mais naturalmente forem tratados. É
geralmente uma característica essencial da eficácia que ela jamais apareça como
se desejada. No instante em que a propaganda se torna consciente, ela é
ineficaz. Mas do momento em que ela permanece como propaganda, tendência,
caráter e atitude ao fundo e aparece apenas através do tratamento da narrativa,
do caso e do conflito humano, torna-se eficaz em todos os aspectos[50].
É ingênuo pensar, como Courtade e Cadars, que,
comprando o seu bilhete e escolhendo o seu programa, o espectador alemão
dispunha “de um meio de pressão que não tinha o público russo”[51]. O público
alemão apenas exercia um simulacro de liberdade de escolha e uma falsa pressão,
através das quais ele era sutilmente modelado. A organização do cinema nazista
era um sistema totalitário de propaganda mais complexo que o soviético, e sua
sofisticação é freqüentemente subestimada pelos historiadores. Os críticos
marxistas, por exemplo, satisfazem-se em assimilar os mecanismos da produção do
filme nazista aos da produção capitalista clássica.
Influenciado pelas teorias de Louis Althusser e
Nikos Poulantzas, Julian Petley observou o que Daniel Guérin chamou de
“anticapitalismo capitalista” em filmes como Gold, Der verlorene Sohn,
Der Kaiser von Kalifornien, Verwehte Spuren e Der unendliche
Weg, assim como em “vários dos filmes antissemitas, especialmente Die
Rotschilds”. A viseira marxista impediu-o de relacionar as duas séries de
filmes a um mesmo padrão narrativo, o que o levou a uma conclusão falsa: “Tais
narrativas, tipicamente organizadas em torno de um indivíduo (alemão) envolvido
pelas maquinações de financistas e/ou grandes negócios, representam não apenas
certo tipo de atitude pequeno-burguesa em relação ao capitalismo, mas também,
conectado a isso, uma forma particular, altamente desenvolvida, de
individualismo burguês”[52].
O herói típico dos filmes nazistas não é bem um
indivíduo, nem necessariamente alemão (ele pode apresentar-se como um médico
suíço, um rebelde irlandês, um colono africâner), mas o representante de uma
raça. Ele não defende princípios pequeno-burgueses individualistas, mas
novas formas de coletivismo. E como o “anticapitalismo capitalista”
expresso na primeira série de filmes citados por Petley é essencialmente o
mesmo que o dos “filmes antissemitas”, a conclusão evidente é que o
“anticapitalismo capitalista” dos nazistas coincide com seu antissemitismo.
De fato, como Hitler teria explicado numa reunião
relatada por Hermann Rauschnning, em Hitler m’a dit, o “socialismo” dos
nacional-socialistas consistiria em estatizar a população, “arianizando”
os meios de produção através da desapropriação dos “capitalistas judeus”. Na
propaganda nacional-socialista, judeus e capitalistas tornam-se sinônimos para
que os capitalistas alemães, identificados com o Estado, pudessem ser
preservados do ataque, dirigido exclusivamente contra os capitalistas judeus
(aos quais eram assimilados todos os judeus).
Assim, se os heróis do cinema nazista são os
representantes da “raça ariana”, seus vilões são representados pelos
personagens que desempenham profissões ligadas ao dinheiro: mercadores,
negociantes, comerciantes, financistas, banqueiros, empresários, industriais,
joalheiros e ricos em geral – sistematicamente associados aos “judeus” através
da criação original de uma imagem caractereológica e profissional que
chamaremos de cinétipo, e que consiste na criação de caracteres
tridimensionais (cinematográficos) associados a tipos sociobiologicamente
determinados: enquanto o judeu é atingido por um estigma profissional, o
capitalista é atingido por um estigma racial.
Como se fossem biologicamente constituídos
pelo capitalismo, os judeus tornam-se imanentes “judeus capitalistas”; e como
se fossem biologicamente constituídos pelo judaísmo, os capitalistas
tornam-se “capitalistas judeus”: no filme nazista, os “capitalistas” são sempre
homens morenos de barba ou bigode, com narizes e barrigas avantajados, lançando
olhares mortiços de sedutores cínicos, vestindo fraque ou capote, xale ou
cartola, fumando charutos e cigarros e bebendo à larga. Emergindo dos discursos
e das ilustrações nazistas, o “plutocrata judeu” torna-se um cinétipo no
cinema nazista, constituindo uma espécie de caricatura viva.
Sistematicamente associado à herança,
apontada como ilegítima; aos papéis e valores, sempre
falsificados; à jóia, geralmente roubada; e ao ouro, cujo valor é
contestado, o judeu é apresentado, no cinema nazista, como um verme corruptor
que, depois de conspurcar mulheres arianas, de prejudicar o povo e de pregar
hipocritamente o pacifismo enquanto comercializa armamentos ou intriga as
nações umas contra as outras, ainda pensa poder salvar-se através do dinheiro,
valor objetivo do capitalismo democrático ao qual o nazismo oporá o valor
“natural” do sangue: a dominação em estado puro.
Assim, assimilar a política biológica do nazismo a
uma “atitude pequeno-burguesa diante do capitalismo” e a uma “forma altamente
desenvolvida de individualismo burguês” é nada compreender do fenômeno do
nazismo. Os nazistas não são “pequeno-burgueses” no sentido lato, nem seu
regime uma “forma altamente desenvolvida de individualismo burguês”. É o
marxismo que tem em comum com o nazismo a postura antiburguesa e a repulsa ao
individualismo, que assim interpreta a destruição do individualismo burguês
pelo coletivismo racista como uma “forma particular, altamente desenvolvida, de
individualismo burguês”. Para os marxistas – mostrou-o Maurice Friedberg em A
imagem do judeu na literatura pós-stalinista– o antissemitismo seria um
instrumento usado pelas classes dominantes para desviar a atenção da luta de
classes, sendo, assim, estranho à classe operária; também as vítimas do
antissemitismo seriam apenas os judeus pobres, já que os judeus ricos
conseguiriam sempre escapar das perseguições[53].
De resto, se a produção cinematográfica nazista
começou por seguir a lei de oferta e da procura, esta passou gradativamente a
ser restringida com a crescente centralização econômica da produção, que se
realizou mais lentamente que o controle político-ideológico, mas que atingiu
uma dimensão sem paralelo na história do cinema. Ela se processou através do
“saneamento” financeiro da profissão, das falências provocadas e das
desapropriações progressivas das pequenas produtoras, até a formação de um
gigantesco conglomerado de empresas controladas pela Ufa e, finalmente, ao
monopólio total da Ufi. Esta concentração econômica permitiu à Alemanha ser o
único país europeu a competir com Hollywood nas pesquisas técnicas de som, cor,
relevo, trucagens e documentário.
Se a visão marxista superdimensiona o caráter
estritamente político dos filmes nazistas, pelo amor ao cinema em si os
historiadores cinéfilos tendem a minimizar o caráter ideológico daqueles
filmes, analisando-os apenas do ponto de vista de suas qualidades ou defeitos
cinematográficos. Francis Courtade e Pierre Cadars trivializam suas análises
com referências irrelevantes ao “rosto ingrato” de Paula Wessely, à “queixada
de jumento” de Marianne Hoppe, ou à “vulgaridade inigualável” de Marika Rökk.
Já para Raymond Borde, da Cinemateca de Toulouse, “condenar mil e quinhentos
longa-metragens a ser uns abacaxis porque a cruz gamada balançava sobre o
Portal de Brandenburgo… releva do mesmo terrorismo intelectual que essas exposições
nazistas da arte ‘degenerada’ que condenavam mil e quinhentos quadros a ser uns
horrores.”[54].
O sofisma que equipara uma tomada de posição moral
a um ato terrorista consiste em apontar como causa da “condenação” do
cinema nazista o tremular de bandeiras com suásticas no Portal de Brandenbourg,
“causa” contra a qual se contrapõe a quantidade dos filmes produzidos
sob o ‘Terceiro Reich’: como se o grande número de filmes nazistas pudesse
absolvê-los de seu conteúdo e de seu modo de produção.
Também Jean Mitry acredita ser possível desprezar a
idéia e admirar o estilo, ou desprezar o estilo e admirar a idéia, tanto no
caso do cinema soviético, como no do cinema nazista [55]. A mesma proposta de
análise “isenta” é feita por Lotte Eisner, quando escreve: “Devemos tentar – é
difícil, evidentemente – considerar os filmes do Terceiro Reich com toda a
objetividade, apenas do ponto de vista da qualidade e do estilo”[56].
A crítica cinéfila vai de encontro à opinião dos
velhos críticos nazistas reabilitados, como Rudolf Oertel, que considera
simplista a condenação do cinema nazista como um todo, afirmando que é preciso
“diferenciar” os bons dos maus filmes, pretendendo escrever sobre esse período
do cinema alemão com o “máximo de objetividade”[57]. Contudo, uma análise
preocupada apenas com a qualidade e o estilo dos filmes nazistas não poderia
ser objetiva, dado que o modo de produção antecede e molda a produção,
envolvendo a forma e o conteúdo nos recortes de sua ideologia, que cumpre a
função social, bastante objetiva, de seduzir o público para a política
biológica do regime.
O cinema nazista define-se por uma série de
parâmetros extraculturais: cooptação ou exílio de artistas, técnicos e
diretores; controle total da produção, desde a concepção do argumento até a comercialização
do filme acabado; censura de tudo o que o regime desaprova; sincronização dos
críticos; a formação do maior monopólio estatal de atividades cinematográficas
da época. Se um filme nazista não é ostensivamente “nazista” em seu conteúdo
específico, podendo, como qualquer outro, emocionar, divertir, ou maravilhar
uma platéia desavisada, deve-se ter em mente que ele não foi concebido como um
filme qualquer, mas como uma peça da indústria cultural do nazismo, totalitária
em seu modo de produção: e isso determina sua forma e seu conteúdo. Se há
filmes nazistas tecnicamente bem realizados, não podemos qualificar um
filme nazista como “bom”: nessa qualificação, ética e estética já se confundem.
O maior erro dos historiadores cinéfilos é
considerar a propaganda nazista no cinema como algo de verbal, ideológico,
discursivo, retórico, passível de ser dissociada da imagem, para fins de
diversão, capaz de satisfazer a nostalgia do público alemão e a curiosidade do
público em geral, numa reciclagem supostamente sem conseqüência da cultura de
massa nazista. Ora, a propaganda no cinema nazista foi muito além da
estereotipia clássica, processando-se através de complexos mecanismos
psicológicos, de associações simbólicas, de fluxos anínimos e inconscientes, de
pulsões e inserções abruptas, de choques imagéticos, de êxtases perversos e de
morbidez difusa: numa palavra, de toda uma estética orientada
politicamente. A propaganda antissemita, no filme nazista, não está apenas no
discurso; ela está, sobretudo, na imagem.
Evitando uma discussão mais profunda sobre a
cultura de massa, os opositores ingênuos do nazismo reconfortaram-se com a
idéia de que os filmes nazistas eram tão ruins que seriam esquecidos. Contudo,
na Alemanha, aqueles filmes continuaram e continuam a ser exibidos na TV, em
museus, cinematecas e festivais. O cinema nazista foi a criação mais popular do
regime, uma herança que Goebbels deixou à Alemanha e que continua atual,
difundindo sua mensagem, ganhando nova vida com a TV, o vídeo, o DVD. E com a pandemia
da AIDS as metáforas biológicas voltaram a circular em todas as mídias e
discursos. No novo mundo sem fronteiras, de valores fluidos, o neonazismo
dissemina-se e o social-darwinismo retorna como esteio ideológico de novas
pesquisas genéticas, que ameaçam a humanidade com um programa eugênico ainda
mais radical que o sonhado por Hitler.
CAPÍTULO ANTERIOR - ARQUIVO DE 10 DE MAIO DE 2012
11 de maio de 2012
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FONTES
[1]Cinema e Propaganda – O Cinema Nacional-socialista, São Paulo: Instituto Goethe, 1975.
[2] Cine-jornais Alemães e Brasileiros 1933-1943 e a Realidade Histórica. São Paulo: Museu da Imagem e do Som, 1981.
[3] NAZARIO, Luiz. Autos-de-fé como espetáculos de massa. São Paulo: Associação Editorial Humanitas / LEI / FAPESP, 2005.
[4] A Cinemateca Alemã foi fundada em 1963 pelo diretor de cinema Gerhard Lamprecht (1897-1974), e possui um acervo de 6 mil filmes de longa-metragem, 3 mil filmes de curta-metragem, 1.300 roteiros, mais de 1 milhão de fotos, 8 mil cartazes, 13 mil esboços e modelos cenográficos, 30 mil programas de cinema, 1.850 fichas de censura e 100 mil documentos inéditos de material filmográfico e biográfico.
[5] O Arquivo Federal possui um acervo de 27.500 filmes de longa-metragem e animação e 114.000 títulos de documentários e atualidades, além de 350 mil fotos, 30.000 cartazes, 20 mil roteiros, 55 mil fichas de censura e coleção de programas e recortes.
[6] O DIF é uma instituição privada, fundada em 1947, com um acervo de 5 mil filmes.
[7] O Museu do Filme é dirigido por Walter Schobert, e além de sua coleção de aparelhos, requisitos, filmes mudos e de animação, possui um acervo de 35.000 publicações, 30.000 cartazes e mais de um milhão de fotos.
[8] O Museu do Cinema de Munique realiza perto de 800 projeções por ano e possui uma coleção de 650 filmes e 450 curtas-metragens, além de 4 mil fotos e todos os roteiros de Georg Wilhelm Pabst.
[9] O Arquivo de Filmes do Arquivo Federal foi fundado em 1954, com uma coleção de 5 mil longas-metragens e 45 mil curtas.
[10] Nationalsozialistsche Deutsche Arbeiter Partei (Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães), fundado em 1919 por Anton Drexler, serralheiro de Munique. Originalmente apenas Deutsche Partei (Partido Alemão), o partido foi assim rebatizado em 1920, e assumido por Hitler em 1921.
[11] BIGAZZI, Francesco. “Prefácio”, in GOEBBELS, Joseph. Diario 1938. Roma: Mondadori, 1993, p. VI-XI; BECKER, Siegfried. “Ein Nachlaß im Streit. Anmerkungen zu den Prozessen über die Tagebücher von Joseph Goebbels”, in Bundesarchiv – an der Arbeit der Archive, , v. 36, p. 270 e seguintes.
[12] Dentre as quais merecem destaque: Film und Herrschaft, de Wolfgang Becker; Film und Kapital, de Jürgen Spiker; NS-Filmtheorie und dokumentarische Praxis: Hippler, Noldan, Junghans, de Hans-Jürgen Brandt; Filmzensur im NS-Staat, de Klaus-Jürgen Maiwald; e sobretudo Pathos und Politik – Ideologie in Spielfilmen des Nationalsozialismus, de Stephen Lowry, e Kritik der Medienethischen Vernunft – Die ethische Diskussion über den Film in Deutschland im 20. Jahrhundert, de Thomas Hausmanninger.
[13] Dentre os quais destacam-se o crítico Leni Riefenstahl and the Third Reich (1976), de Glenn Infield; o neutro Leni Riefenstahl (1980), de Renata Berg-Pan; e os apologéticos The Films of Leni Riefenstahl (1978), de David Hinton, Leni Riefenstahl (1978), de Charles Ford, e A Portrait of Leni Riefenstahl (1997), de Audrey Salkeld.
[14] NOVNSKY, Anita. Inquisição, um tema ainda atual.
Jornal do Brasil, 17 mai. 1987.
[15] MEDVEDKIN, Alexander.
El cine como propaganda política, p. IX, X, XV, 3, 4, 24.
[16] GILI, Jean.
L’Italie de Mussolini et son cinéma, p. 11 e 33.
[17] GOEBBELS, Joseph
apud FRAENKEL, Heinrich; MANVELL, Roger.
Goebbels, p. 186-187.
[18] NAZARIO, Luiz.
A revolta expressionista, in:
As sombras móveis, pp. 125-205; e
O Expressionismo e o cinema, in: GUINSBURG, J. (ed.).
O Expressionismo, pp. 505-541.
[19] GITLIS, Baruch.
The Nazi Anti-Semitic Film: A Study of its Productional Rhetoric, p. 20.
[20] GITLIS, Baruch.
The Nazi Anti-Semitic Film: A Study of its Productional Rhetoric, p. 197.
[21] Sem incluir, portanto, os filmes documentários e de atualidades, os filmes de curta-metragem de ficcao, industriais e publicitários, os desenhos animados, e os filmes didáticos produzidos pela Juventude Hitlerista e outras organizacoes nazistas.
[22] ARISTóTELES, Ars Poética, 1457b, tradução de Eudoro de SOUZA, in Os Pensadores, vol. IV, p. 462.
[23] Susan SONTAG, A Doença como Metáfora, p. 76.
[24] SONTAG, Susan.
A doença como metáfora. Rio de Janeiro: Graal, 1984; SONTAG, Susan.
A AIDS e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
[25] NAZARIO, Luiz. As sombras móveis. Atualidade do cinema mudo. Belo Horizonte: Editora da UFMG / midia@rte, 1999, p. 184-190.
[26] KRIEGK, Dr. Otto, p. 100.
[27] DELAGE, Christian. La vision naziste de l’Histoire. Lausanne: L’Age d’Homme, 1989.
[28] Cf. ROST, Karl Ludwig. Sterilisation und Euthanasie im Film des ‘Dritten Reiches’, p. 11.
[29] Cf. DELAGE, Christian. La Vision Nazi de l’Histoire, Le Cinéma Documentaire du Troisième Reich. Lausanne: L’Age d’Homme, 1989.
[30] Alfred ROSENBERG, Der Kampf um die Freiheit der Forschung, pp. 16-17.
[31] Cf. LEISER, Erwin. “Deutschland, erwache!”. Reinbek bei Hamburg: Rowohlt, 1989, p. 69; COURTADE, Francis & CADARS, Pierre. Histoire du cinéma nazi. Paris: Le Terrain Vague, 1972, p. 190.
[32] HULL, David Stewart. Film in the Third Reich, A Study of the German Cinema 1933–1945. Berkeley: University of California Press, 1969, p. 154.
[33] Cf. WELCH, David. Propaganda and the German Cinema 1933-1945. Oxford: Clarendon Press, 1987, p. 138.
[34] Em 1958, Taubert foi chamado por Strauss para articular a campanha anti-comunista de sua administração. Obteve uma verba de 4,43 milhões de marcos em 1960, e mais 6 milhões de marcos em 1961.
[35] Cf. Stephanie BARRON, ‘Entartete’ Kunst, p. 15.
[37] Citado por Rolf HOCHHUTH, Um Amor na Alemanha. São Paulo, Record, s/ data, pp. 15-16.
[38] Film Kurier, 20 jan. 1941.
[39] COURTADE, Francis; CADARS, Pierre.
Histoire du cinéma nazi. Paris: Le Terrain Vague, 1972 , pp. 204-205.
[40] KAHLENBERG, Friedrich. Le cinéma allemand et l’antisémitisme.
Libération, 15 mar. 1991.
[41] KRAKAUER, Siegfried. Teoria del cine – la redención de la realidad fisica, p. 209.
[42] Mendulgen aus dem Reich, nº 115, 20 jan. 1941.
[43] GOLDSTEIN, Bernard. Die Sterne sind Zeugen, p. 86, apud GITLIS, Baruch,
The Nazi Anti-Semitic Film: A Study of its Productional Rhetoric, p. 148.
[44] AUERBACH, Rachel. “78 Yizkor, 1943”, in ROSKIES, David (ed.).
The Literature of Destruction – Jewish Responses to Catastrophe. New York: The Jewish Publication Society, 1989, p. 462.
[45] LEISER, Erwin. “Deutschland, erwache!”. Reinbek bei Hamburg: Rowohlt, 1989, p. 77.
[46] H. H. WOLLENBERG. Fifty Years of German Film, p. 41.
[47] HARLAN, Veit.
Le cinéma selon Goebbels. Paris: France-Empire, 1974, p. 269.
[48] Parodiando Thomas Huxley, que escreveu: “Nos detalhes, quem mora é o diabo”.
[49] FRAENKEL, Heinrich; MANVELL, Roger.
Goebbels. Koln: Kiepenheuer & Witsch, 1960, p. 278.
[50] GOEBBELS, Joseph.
Rede bei der ersten Jahrestagung der Reichsfilmkammer, 5 mar. 1937, na Krolloper de Berlim, in ALBRECHT, Gerd.
Nationalsozialistische Filmpolitik, p. 456.
[51] CADARS, Pierre; COURTADE, Francis.
Histoire du cinéma nazi, p. 27.
[52] PETLEY, Julian.
Capital and Culture, p. 23.
[53] FRIEDBERG, Maurice.
A imagem do judeu na literatura pós-stalinista. São Paulo: Grijalbo, s/d.
[54] CADARS, Pierre; COURTADE, Francis.
Histoire du cinéma nazi, prefácio, p. 10.
[55] MITRY, Jean.
Histoire du cinéma, v. IV, p. 534.
[56] EISNER, Lotte.
A tela demoníaca, p. 227.
[57] OERTEL, Rudolf.
Macht und Magie des Films, p. 337 e 376.