Luiza Erundina está na capa da desastrada revista Brasileiros deste mês.
Essa revista é uma daquelas que falam de “tendências” e “personagens” (com o perdão do faux pas), acreditando que isso tem algo a ver com “cultura, política e economia”. É uma espécie de Bravo! para esquerdista da Vila Madalena. Uma dessas revistas que fazem reportagem com Caetano Veloso em 80% de suas edições.
Sob o título “Luiza, a coerente” (assim, em vermelho-Cortina de Ferro), Erundina desfila sua facúndia para explicar por que picou a mula do lugar de vice na chapa encabeçada pelo não menos desastrado Fernando Haddad à prefeitura de São Paulo (como se ninguém soubesse o porquê).
Na capa, em letras garrafais, já há uma fala da deputada tentando justificar o injustificável: “E o Maluf não ficou no colo do Serra”. Pior desculpa de todos os tempos? Seria então melhor fazer aliança com Fernando Collor, José Sarney e seguir pari passu até o modelo econômico do ditador Geisel para que tais forças das trevas “não caiam no colo de Serra”? A propósito, tudo isso tem sido mesmo feito pelo PT. É coerente chamar Erundina de “coerente” depois dessa?
Segundo a revista, o anúncio de Erundina queimando o chão fez seu nome ser associado ao tema “ética na política” nas redes sociais. Ora, “ética na política” (assim, entre aspas) é um bordão. Tal como um cartaz numa marcha (aquela coisa antiquada, que já deveria ter morrido nos anos 80 junto ao Muro de Berlim), é um pedido, um reclame do plim-plim, não um elogio (como aquelas faixas falsas, do tipo “A população de Três Coquinhos da Serra agradece ao governo por desentupir um bueiro”). E quem acessou qualquer rede social entre o dia do seu anúncio e hoje vê que, longe de um elogio, o nome de Erundina serviu foi para ridicularizar até a alma o PT.
Erundina era da linha dura trotskysta do PT (hoje, no PSB). Dessas que não negociam: batem com o pau na mesa. Basta ver um elogio que recebeu do não menos comunista Antônio Cândido: “Aceite os meus cumprimentos pela coragem cívica e a coerência socialista com que agiu, de maneira a confirmar o seu passado exemplar”. Talvez o grande crítico literário explique mais do que pretende: não é coerência, assim, em si. Não é qualquer coerência identificável a olhos vistos. É uma coerência socialista, como demonstra a delimitação do adjetivo. Assim, sim.
A entrevista
Erundina fala dos seus sentimentos – a única coisa que vale a entrevista, já que o ridículo da aliança lulo-malufista fez até a Carta Capital colocar Maluf na capa. Diz a deputada: “Faço política acreditando que é possível mudar”. Para um totalitarismo socialista, aquele modelo genocida brega? “Quando saí [do PT], não mudei para o centro nem para a direita. Mudei para uma casa no campo popular democrático de esquerda, socialista. Eu não sou daqueles que acha que o socialismo morreu”. Mais uma vez: ou se é democrático, ou se é socialista. É como tentar criar o fascismo democrático. O feudalismo burguês. O liberalismo estatal. É um oximoro, uma contradicto in adjecto. Ademais, é claro que o socialismo não morreu: tá vivão, alive and kicking, basta olhar para Cuba, onde os salários mais altos são o equivalente a US$30/mês, mais ou menos o salário mínimo recebível por duas horas de trabalho na Califórnia. Outros, da maioria da população, na típica desigualdade social socialista, são metade disso. Isso para não falar da Coréia do Norte, entre outros exemplos que vão do bolivarianismo chavista ao Irã.
Sobre a sua “coerência” (a socialista, não aquela conhecida da galera), Erundina afirma cada vez algo diferente nas respostas. Primeiro, afirma que sua preocupação “era com a direção nacional do PSB, que fez a aliança com o PT. O projeto da direção estadual era apoiar o Serra. O presidente do diretório estadual, Márcio França, já tinha até ido para o governo Geraldo Alckmin”. Entendendo a coerência: Erundina prefere Maluf aos tucanos, já que isso a preocupava tanto.
“Claro”, diz a deputada, que seria melhor “deixar Maluf no colo do Serra”, como pergunta a entrevistadora Luiza Villaméa: “O Maluf só não ficou no colo do Serra porque o Alckmin negou um elemento de barganha política, que era uma Secretaria de Habitação”.
Estranho. O nome de Maluf, apesar de todos os pesares (que não cabem em um livro), é um nome eleitoralmente forte em São Paulo. Ninguém, nem mesmo os políticos mais jeca, costumam se associar a Maluf, todavia, sem um sorriso amarelo e um desconforto pior que o de uma diarreia.
O tucanato paulista não aceitou dar algo a Maluf em troca do seu apoio (não é a primeira vez que isso acontece, já que Maluf vai de mal a pior, sendo cada vez mais um queima-filme do que um bom nome a ter como apoiador). Quem viu alguma reportagem dizendo: “Serra, o coerente”, ou “Alckmin, o coerente”? Não que fosse grande coisa: negar Maluf três vezes, ou três milhões de vezes, garante um bom lugar no Éden. Entretanto, como pode a deputada Erundina agora tentar transformar água em vinho para inverter a ordem dos fatores e ainda tal frase aparecer na capa da revista?
Afinal, Alckmin negou a barganha – no máximo, Maluf apoiaria os tucanos por saber que nunca mais conseguirá ser prefeito em São Paulo (como Erundina nunca será, ou Marta nunca será, por isso a escolha de Haddad como candidato-tampão do PT; a própria Erundina lembra: “[Maluf] estava resgatando um espaço que havia perdido”). Já o PT atende ao desenho barganhador do mesmo Maluf.
Isso é uma mostra de “coerência” e “ética na política”? Ademais, a deputada acaso acredita mesmo que ter Maluf defendendo seu candidato é algo melhor para seu candidato? Quem negou o “fisiologismo” e “não fez concessões” (como a própria deputada afirma serem seus valores): o PT ou o PSDB?
Na dança das cadeiras das alianças, é a própria Erundina que dá mostras de pouca coerência nos estreitamentos com o PP malufista: “o governo federal concedeu a ele [Maluf] a Secretaria Nacional de saneamento, em um ministério que, na verdade, é do PP.
Aliás, um dos ministérios com um dos maiores recursos orçamentários e financeiros”. Que bonitinho dar uma coisinha dessas ao Maluf! Ainda mais bonitinho lembrar o que misteriosamente ninguém lembra desde 2002: que o PP é tão aliado do lulismo que até seu vice era do partido do Maluf (ou alguém lembra do PP por outro motivo?). a raposa cuidando do galinheiro. Mais: não foi dado ao Maluf propriamente, mas a um mancomunado seu. Mas todo sabe que, na prática, é o próprio Maluf (tanto é que a foto que correu a internet é com o Maluf). Por que a choradeira dos petistas estarem aliados ao PP só veio a público uma década depois? Só valem as aparências na democracia petista.
Erundina afirma que não sabia sobre as negociações com o PP pelos petistas: “Eu estava acompanhando o noticiário, foi on line, digamos assim”. Dona Erunda, uma dica: pare de acompanhar política pelo Brasil de Fato e leia mais o Implicante™. Da próxima vez, saberá em primeira mão algo sobre sua chapa que o Brasil inteiro já sabia, menos a senhora.
Segundo ela, a notícia foi dada por um “companheiro”. Quando Haddad foi indagado, “ele disse que isso seria algo sem importância”. Deu pra ver.
Mas Erundina limpa a barra do seu “companheiro”: “Acredito que ele não estava seguro sobre como as coisas iriam se dar. Acredito que ele não sabia mesmo”. Poxa! Bom saber o quanto Haddad anda atencioso à sua própria campanha, ainda mais quando toda a imprensa séria (não a “imprensa livre” financiada pelo próprio partido do governo) já martelava essa tecla há mais de duas semanas. Imagino Haddad no governo. “Eu não sabia de nada” versão 2.
Erundina também abre concessões para alguns delírios: “A personalização política em São Paulo tem em um polo a minha pessoa, em outro o Maluf”. Erundina disputou duas eleições – contra Maluf, em que ganhou, e contra Pitta, em que perdeu. Acredite Erundina ou não, São Paulo está quase caminhando para completar duas décadas de governo tucano – se livrando dos dois. Talvez ela e Maluf sejam mesmo “polos” (talvez Marta Suplicy fosse o verdadeiro polo da esquerda). Aqueles extremos radicais com os quais ninguém quer se envolver.
Seu vocabulário, além do “companheiro”, também mostra que seu atraso, tão “progressista” quanto Maluf. Fala que fez “contato com os movimentos” (?), que São Paulo precisa de uma “gestão democrática, participativa e transparente” (glasnost não é algo assim meio direitista?). Quando fala do afago de Maluf em Haddad, este último imediatamente deixa de ser um indivíduo de nome Fernando Haddad: Erundina fala sobre “aquele afago ao candidato. Ele passa a mão na cabeça do candidato”. A democracia participativa transparente erundiniana faz até o candidato deixar seu lado mamífero para se tornar um número.
Também sobra espaço para aqueles bordões bem ao gosto dos bolcheviques da Vila Madalena, mas que na prática não fazem um pingo de sentido: “Nordestina, de esquerda, de origem humilde. Só faltava ser negra para completar. (…) Se eu fosse negra, teria mais um motivo para fazer luta ideológica. A luta contra o preconceito é uma luta ideológica”. Bonita intenção, mas então, só é possível lutar contra o preconceito racial sendo negro? Isso talvez explique por que todo esquerdista adora comparar seus inimigos aos nazistas, embora costumem odiar ainda mais os judeus do que muito oficial da Waffen SS.
Já que o único assunto possível seria a coerência (a socialista, não a lógica e universal), Erundina dá uma espezinhada em Marta Suplicy: “a Marta teve o apoio do Maluf em 2004, no segundo turno. Maluf saiu com Kombi, com outdoor, Marta e Maluf. Percebe? Por que em 2004 Maluf poderia aparecer na campanha e apoiá-la publicamente?”. Aproveitamos o ensejo para espezinhar a revista Brasileiros: por que colocar itálico em “outdoor” e não em “on line” (assim, separado) ali em cima? A primeira palavra já deve estar no léxico médio brasileiro desde que Erundina ainda estava no primário.
Claro que Erundina retira a patada a seguir: “Eu tenho amizade pela marta, tenho muito respeito por ela. É uma pessoa muito autêntica, fala aquilo que sente”. Nós sabemos, Erundina:
Flavio Morgenstern é redator e tradutor. Acha curioso que o Haddad não possa usar o slogan “Pior que tá não fica”.
18 de julho de 2012