O julgamento do mensalão já atinge a sua 11ª semana, e, pela importância histórica do que está em questão, reúne momentos memoráveis, em todos os sentidos. Um deles, entre os principais, a condenação do ex-ministro José Dirceu, por “corrupção ativa”, confirmada pelo ministro Marco Aurélio de Mello, na terça-feira, ao dar o sexto voto de aceitação da denúncia da Procuradoria-Geral da República, avalizada pelo ministro-relator, Joaquim Barbosa.
Com apenas dois votos favoráveis ao ex-ministro, dos ministros Ricardo Lewandowski, revisor do voto do relator, e Dias Tóffoli, o veredicto de Mello definiu o destino de Dirceu nesta acusação, num processo em que também é acusado pela PGR de formação de quadrilha, da qual era o chefe. Organização constituída para desviar dinheiro público, lavá-lo com o uso da tecnologia desenvolvida por Marcos Valério na campanha do tucano Eduardo Azeredo à reeleição como governador de Minas em 1998, a fim de comprar apoio político-partidário ao primeiro governo Lula.
Na sessão seguinte, ontem, os dois votos restantes, dos ministros Celso de Mello e Ayres Britto, presidente da Corte, confirmaram a denúncia e o entendimento do relator, sendo Dirceu condenado por oito ministros, na acusação de corrupção ativa. A denúncia de montagem de quadrilha ainda será julgada, mas a tendência do Pleno não ajuda Dirceu.
Na apresentação dos votos pela condenação de Dirceu foram citadas provas “torrenciais” — termo usado pelo procurador-geral, Roberto Gurgel — da atuação do então ministro chefe da Casa Civil naquele período, como maestro do mensalão.
Também estará nos destaques do julgamento histórico o voto da ministra Cármen Lúcia, proferido ainda na terça, contra Dirceu, em que ela pulveriza, com justificada indignação, a tentativa da defesa de minimizar o crime tachando-o de “simples” caixa dois de campanha. “Acho estranho e muito grave que alguém diga, com toda a tranquilidade, que houve caixa dois. Caixa dois é crime. Dizer isso na tribuna do Supremo, ou perante qualquer juiz, me parece grave (...)”.
O esfarrapado álibi foi destilado dentro do PT, assumido pelos mais proeminentes advogados do partido (e de acusados de legendas aliadas) e pelo presidente Lula. Este, numa entrevista concedida em Paris a uma free-lancer, mesmo depois de ter pedido desculpas, em rede nacional, por ter sido “traído” pelos mensaleiros — admissão explícita da existência do esquema —, amenizou o escândalo, equiparando-o “a tudo que os outros partidos fazem”.
Pois isto é crime, disse com firmeza Cármen Lúcia. Mesmo porque, “restou provado”, como concordam os ministros, inclusive Lewandowski e Tóffoli, que este dinheiro ilegal saiu de cofres públicos, (Visanet/Banco do Brasil e contratos assinados por Marcos Valério, no papel de publicitário, com o presidente da Câmara, João Paulo Cunha (PT-SP), também condenado) e foi lavado numa grande fraude financeira de que participaram o Banco Rural, Marcos Valério, Delúbio Soares e José Genoíno, com o conhecimento de José Dirceu.
Além do álibi improvável, das fileiras do partido surgiu, por meio de intelectuais orgânicos, a tese farsesca de que o mensalão não passava de invenção das “elites”, a serviço das quais estaria uma “mídia golpista” (a imprensa independente e profissional, leia-se). No melhor estilo da visão conspiratória cultivada em hostes de militantes partidários, tudo era uma fantasia mal intencionada. Grande bobagem, como está sendo mostrado num dos mais longos julgamentos de que se tem notícia, transmitido ao vivo pela TV.
Assistir a qualquer das sessões dá ideia precisa da seriedade com que o Ministério Público construiu sua denúncia, com base em informações das CPIs que vasculharam o escândalo, de investigações e perícias da Polícia Federal. O mesmo zelo e rigor técnico transparecem nos votos do relator Joaquim Barbosa e na intervenção dos demais ministros.
Não faz sentido, portanto, o condenado José Dirceu, em nota emitida após o desfecho do seu julgamento nesta acusação, dizer-se “prejulgado e linchado”, e ainda equiparar a Corte a um tribunal “político e de exceção”. Discurso para militantes.
Não contava a defesa, de Dirceu e de todos, que o STF, por maioria absoluta, avançaria na jurisprudência. “Provas evidenciais”, a teoria do “domínio do fato”, a importância de testemunhas — nada, por óbvio, inventado pelos ministros do STF, apenas reinterpretações de conceitos antigos — serviram para condenar vários acusados, inclusive parte da cúpula do PT na época do mensalão, 2002/2005.
Sem a nova amplitude de visão da maioria do Pleno do STF, nunca um chefe — aquele que tem o “domínio do fato” — de uma operação ilegal com estas proporções, montada dentro do Estado, seria condenado, pois ele não deixa provas materiais. Cometem crimes sem rastros. Por isso, a ortodoxia jurídica, na qual confiaram os advogados dos mensaleiros, contribuiu muito para a ideia de que poderosos não são punidos no Brasil. E de fato.
O alcance da condenação de Dirceu é essencialmente político, ponto-chave para a estabilidade institucional do Brasil na democracia. Fica entendido, depois deste julgamento, que qualquer grupo que tente executar um projeto de poder criminoso para se perpetuar como governo — não importa em nome de quê — esbarrará, como deve ser, com o Poder Judiciário, e, no caso específico, com o Supremo, responsável último por zelar pela Constituição.
O Executivo subjugar, por via financeira ou qualquer outra forma, o Legislativo é desestabilizar a República, implodir princípios da democracia representativa, atacar o conceito essencial da independência entre os Poderes, tomar o rumo de um regime chavista, unitário, cesarista. É crime, alerta o Supremo.
O mesmo é verdade no relacionamento entre Legislativo e Justiça. Esta é a mensagem do STF nas condenações que tem lavrado. Mais significativa ela fica se for considerado que a maioria dos atuais ministros da Corte, sete em dez, foi nomeada por governos petistas. É risível enxergar algum dirigismo nas condenações que têm sido distribuídas.
Se o impeachment de Collor fortaleceu o Congresso brasileiro, o julgamento do mensalão consolida o Judiciário como um pilar sólido do regime de democracia representativa. O Brasil como nação passa a ter no mundo uma estatura equivalente ao tamanho e importância de sua economia.
11 de outubro de 2012
EDITORIAL DE O GLOBO