Perto do final da Segunda Guerra, quando a invasão do Japão por tropas dos
Estados Unidos parecia iminente, o vice-almirante Onishi Takijiro criou as
Unidades Especiais de Ataque por Choque. Elas incluíam aviões comandados por
pilotos kamikazes, os tokkōtai, que deveriam produzir o milagre da
defesa da nação, cercada de porta-aviões inimigos tidos como indestrutíveis.
Para tanto, os pilotos suicidas deveriam conduzir um avião carregado de
explosivos a um choque direto e devastador contra um navio inimigo.
Quando a operação tokkōtai foi criada, em outubro de 1944, nem um
único oficial treinado nas academias militares japonesas se apresentou como
piloto voluntário – todos sabiam que se tratava de missões suicidas.
Os “voluntários” foram perto de 3 mil “meninos-soldados”, nome dado às levas
de adolescentes recém-recrutados como parte do esforço de guerra. Outros mil
eram “soldados-estudantes”, universitários formados às pressas pelo governo para
entrar nas fileiras militares.
Os soldados-estudantes formavam um grupo excepcional. Eles eram cosmopolitas
e cultos, dados a reflexões profundas, fruto do exigente currículo escolar
japonês. Era obrigatório o estudo de duas línguas estrangeiras, além do latim.
Quem tivesse optado pelo alemão, por exemplo, recebia como dever de casa, já na
primeira aula, ler Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe. E no
original, antes mesmo de o aluno ter sido apresentado ao alfabeto romano. Também
era avaliada a leitura da Crítica da Razão Pura, de Immanuel Kant. O
fato de o aluno não entender quase nada, e ser obrigado a reler o texto à
exaustão, destinava-se a torná-lo consciente de sua ignorância e do quanto
deveria estudar.
Outra característica fundamental: enquanto os soldados alemães eram treinados
para matar, os japoneses eram adestrados para morrer. Rendição, fuga, rebeldia,
qualquer ato para salvar a vida diante da derrota incontornável eram punidos com
a morte. Todo soldado que desobedecesse ao regulamento militar, ou a alguma
ordem de superior, era fuzilado na hora. E uma ofensa dessa natureza podia levar
à punição dos parentes imediatos do soldado.
Como primeira lição, o soldado-estudante aprendia a usar o rifle para se
matar antes de ser capturado. Era-lhe ensinado a acionar o gatilho usando o
dedão do pé – tendo por alvo um ponto preciso abaixo do queixo, para a morte ser
instantânea.
Ser piloto tokkōtai significava morte certa, e por isso a
oficialidade de alta patente imprimiu-lhe a falsa característica de
voluntariado. Na maioria das vezes, todos os membros de uma unidade eram
convocados a se apresentar num salão comum. Convidavam-se os recrutas a dar um
passo à frente caso quisessem aderir à honra de dar a vida pela pátria. Ou o
inverso: aqueles que não quisessem se tornar pilotos suicidas deveriam
dar um passo à frente. Poucos resistiam à pressão.
O retrato idealizado desses jovens, promovido pelo governo militar da época,
corresponde ainda hoje ao estereótipo do kamikaze – eles são vistos como a
encarnação moderna dos bravos guerreiros, honrados por poderem se sacrificar
pelo imperador.
Kamikaze Diaries: Reflections of Japanese Student Soldiers, livro da
acadêmica americana Emiko Ohnuki-Tierney,corrige essa distorção. A seguir,
trechos desses diários.
SASAKI HACHIRŌ
O pai de Sasaki Hachirōfez o possível para dissuadir o filho de ser
voluntário para a missão de piloto kamikaze. Não tendo conseguido, jamais voltou
a lhe dirigir a palavra. Mesmo quando Hachirō, com 22 anos de idade, veio se
despedir, o pai saiu de casa e só retornou na manhã seguinte. Terminada a
guerra, a família recebeu uma notificação da morte de Hachirō, junto com uma
medalha e uma pequena soma de dinheiro. Sem dizer nenhuma palavra, o pai pegou o
dinheiro, foi até uma loja de bebidas, comprou saquê e o bebeu sozinho.
10 de fevereiro de 1940_Finalmente invadimos Cingapura. O
número de vítimas civis deve ter sido grande. Crueldade da guerra. Cega a esse
tipo de questões, a história continua sua marcha diária.
13 de abril_Soa a sentimentalismo, mas, se você precisa
morrer, que seja de forma bela.
12 de outubro_O idealismo não é nem uma ideologia fixa nem
uma autoridade absoluta.
1º de novembro_Para quem vive no século XX, é preciso saber
encontrar a síntese entre o mais passivo e o mais agressivo polo de racionalismo
e ativismo... O racionalismo é por demais objetivo e o ativismo, subjetivo em
demasia. Como sustenta Heidegger, estamos na história. Ela não nos precede
quando nela adentramos. A partir do momento em que nascemos, estamos na
história. Somos o sujeito que vive no objeto. (...)
(...)Prefiro pensar que “inevitabilidade” é mais importante do que
“necessidade”. Devemos sempre nos empenhar em stirb und werde! [“morra
e seja”, ou crescimento por meio da morte]. Estou sinceramente feliz por estar
vivo... O que mais importa é a liberdade da vontade, liberdade de espírito em
meio ao caos do presente... Obediência cega sem vontade livre não constitui uma
resposta ao nosso caos.
16 de abril de 1941_Quantos realmente morrem de “morte
trágica” nessa guerra? Estou convencido de haver várias mortes cômicas
disfarçadas de mortes trágicas. À primeira vista, ambas são iguais. Mas mortes
cômicas camufladas de trágicas não deixam transparecer a alegria de uma vida.
Estão cobertas de agonia sem valor ou sentido. Ou seja, são duplamente
negativas, o que as torna cômicas.
14 de setembro_Foi anunciado que todos os japoneses devem
trabalhar em indústrias vitais para o esforço de guerra. Isso significa que há
pessoas saboreando néctar enquanto ignoram o esforço árduo e a humanidade dos
japoneses. O que é patriotismo? Como tolerar a matança de milhões de pessoas e a
privação de liberdades básicas de bilhões de outras por causa de noções
abstratas como patriotismo e pátria?
9 de dezembro_Não consigo me sentir eufórico com as vitórias
do Japão na guerra. Sinto ansiedade. Também me preocupo com os rumos do
capitalismo depois do fim da guerra.
15 de dezembro_Dado que vivobem, sob a benevolência da nação
deste imperador, não me recusaria a me alistar, se chamado. Não sou fraco a
ponto de me sentir esmagado pela guerra. Mas faço questão de declarar minha
oposição a todas as guerras.
26 de janeiro de 1942_Sei que posso morrer a qualquer
momento, e por isso deixo tudo o que é meu arrumado; vivo uma vida organizada e
tiro fotografias para a posteridade.
1º de março_Hoje presto exame de admissão para economia na
Universidade de Tóquio. Usei meu uniforme de sempre, mas minhas roupas íntimas
estavam limpas e novas. Acho que escrevi um ensaio singular sobre a questão da
nossa história e da história do Ocidente. Também acho que fui bastante audacioso
na resposta sobre a crítica literária contemporânea. Portanto, não sei como
serei avaliado. Em retrospecto, penso que poderia ter me saído melhor, mas se
for reprovado isso significa que eles não têm a mais vaga ideia do meu
potencial. Uma das perguntas foi tirada da obra de Tanabe Hajime,
Rekishiteki-geniitsu [Realidade Histórica, sem edição em
português]. Fico deprimido ao pensar o quanto esse livro me impressionou no
passado. Ele é dogmático e cheio de fios soltos. Não é nada além de raciocínio
vazio.
4 de março_Achei uma aranha minúscula dentro do meu livro.
Num impulso de malvadeza, aproximei meu cigarro da aranha, que se pôs a correr
freneticamente. Coloquei o cigarro aceso à sua frente, ela mudou de rota. Repeti
o ato várias vezes até a aranha se imobilizar. Deixei-a sossegada por um tempo.
Num novo impulso, aproximei o cigarro aceso por cima, e ela voltou a correr.
Continuamos assim por uns dois minutos. Ela então cansou, encolheu as pernas e
tornou-se imóvel mesmo sem ter sido tocada pela brasa do cigarro.
É possível que, para essa aranha, o tamanho do livro seja o do Japão, e cinco
minutos sejam cinco ou dez anos. Durante esse período, e nesse espaço, onde quer
que ela fosse, havia fogo. E quando ela parou, o fogo veio de cima... Se isso
acontecer a um ser humano, ele enlouquece. A aranha não entendia de onde vinha
aquela chama. Seres humanos também perdem.
Desejo me tornar um homem capaz, mesmo que a grande custo. Capaz de
identificar objetivamente a causa do problema, e transmitir esse conhecimento à
geração seguinte. Feito isso, posso morrer. Através da alegoria da aranha traço
um retrato doloroso do povo japonês nestes tempos de guerra – sem entender o que
ocorre, ele corre sem rumo, em busca de uma saída para a situação impossível
causada pela guerra.
Abril_Os militares: bando de loucos!
Junho_Todos os livros escritos pelos marxistas
[japoneses] são demagógicos, combativos ou parecem ensaios de
estudantes secundários que descobriram a filosofia. Perdi a ingenuidade de me
deixar levar nessa demagogia. Lamento por Marx ser divulgado através desses
sujeitos.
Abril de 1943_[A notícia da morte do almirante Yamamoto
Isoroku angustia Sasaki. Yamamoto opusera-se inicialmente à entrada do Japão na
guerra, argumentando que o país não aguentaria seis meses, mas acabou designado
para comandar o ataque a Pearl Harbor. Seu bombardeiro Mitsubishi “Betty”
foi derrubado por caças americanos numa emboscada, causando profunda comoção
à nação. Sasaki pensa em se apresentar como piloto suicida voluntário e
morrer.] Sou um mero ser humano. Por vezes, meu peito explode de excitação
quando imagino o dia em que vou decolar rumo ao céu. Treinei corpo e alma o
quanto pude, e anseio pela chegada do dia de usar em combate todo o meu
potencial. Minha vida e morte pertencem à missão. Mas há vezes em que invejo os
estudantes de ciências que continuam em casa, isentos do serviço militar. Invejo
os que se tornarão bibliotecários, engenheiros ou médicos, e escaparam do
recrutamento. Sou atraído pela minha segunda alma terrena. Tenho duas almas
escondidas dentro de mim, e cada uma desponta com os estímulos externos da minha
mente. Uma de minhas almas olha para o céu, enquanto a outra sente atração pela
terra. Gostaria de me alistar na Marinha o quanto antes, para poder me dedicar à
minha tarefa. Tomara que passem logo os dias em que me sinto atormentado por
pensamentos tolos.
11 de junho_[O desembarque das tropas americanas na ilha
Attu desencadeia um longo solilóquio de Sasaki Hachirōsobre marxismo e
capitalismo.] Vejo sinais de um novo ethos para uma nova era. Se o
poder do velho capitalismo é algo do qual não conseguimos nos libertar a menos
que ele seja esmagado pela guerra, estaremos transformando um desastre num fato
positivo. Estamos em busca de uma fênix saída das cinzas. Mesmo que o Japão
sofra uma ou duas derrotas, ele não será destruído se conseguir sobreviver. Não
sou pessimista, mas não podemos negar a realidade. Temos de olhar para frente,
superar os tempos difíceis. Nesta encruzilhada crítica da história, não podemos
deixar que velhos capitalistas e militares irracionais se agarrem ao velho
regime. Nós, os jovens, precisamos arcar com a responsabilidade de fazer nascer
um novo mundo.
Novembro_Não sei se esperam que eu vença esta guerra, mas
vou lutar o quanto puder... Rezo para que chegue logo o dia em que possamos
saudar um mundo no qual não devamos matar inimigos que não conseguimos odiar.
Para esse fim, estou disposto a ter meu corpo destroçado inúmeras vezes.
Dezembro de 1944_Finalmente vou para a Marinha. Treinei meu
corpo praticando natação, ginástica e tiro ao alvo. Sinto-me confiante na minha
força. Devemos agora tornar-nos escudos para garantir vida eterna à nossa nação
e prevenir o avanço do inimigo. Meus estudos universitários são importantes, mas
a disciplina que escolhi (economia), que é pragmática e socialmente relevante,
será mais bem exercida se eu tiver um treinamento militar. E, mesmo que eu venha
a tombar, a sociedade não depende de um só indivíduo.
20 de fevereiro de 1945_[Todos os soldados-estudantes
foram reunidos num saguão da Universidade Imperial de Tóquio e “convidados” a se
inscrever na lista de pilotos suicidas “voluntários”.]
14 de abril_[Sasaki Hachirōmorre aos 22 anos e 9 meses
de idade.]
HAYASHI TADAO
O diário manuscrito de Hayashi Tadao foi compilado e editado por seu
irmão mais velho, Katsuya, vários anos após o fim da guerra. As forças de
ocupação americanas haviam imposto uma rígida censura ao Japão. Diários como o
de Tadao eram confiscados. O irmão de Hayashi também quis dar tempo para que os
próprios japoneses começassem a compreender o envolvimento do país na Segunda
Guerra Mundial. E o porquê de se ter enviado tantos jovens universitários para a
morte.
Os irmãos Hayashi e Katsuda compartilhavam o apego ao comunismo, à música
clássica ocidental, à filosofia e a discussões sobre vida e morte. Pouco depois
da guerra, a família recebeu uma caixa de madeira com a inscrição “A Heroica
Alma do Saudoso Hayashi Tadao”. No lugar das cinzas, em uma pequena folha de
papel branco havia as palavras “restos mortais” (ikotsu) escritas em caligrafia
nobre.
6 de abril de 1940_À noite leio Debaixo das Rodas,
de Hermann Hesse. A jovem alma [o personagem Hans Giebenrath] procura
crescer contra a opressão do sistema educacional do mosteiro. Ele abandona o
mosteiro e tenta seguir seu próprio caminho. Mas Hans adoece. A beleza e a
efemeridade do seu espírito e alma levam ao triste final de sua vida. A corrente
subterrânea da impermanência. Sopro de crescimento, bela mas frágil alma da
juventude, e morte.
15 de abril_Dominar o idioma inglês e identificar um
princípio que me guiará intelectualmente – o liberalismo – são duas tarefas
importantes da minha busca. Me pergunto em vão: “Quanto tempo vou viver?”
23 de maio_Sigo uma agenda diária que me impus: ler cinco
páginas em inglês e 100 em japonês... Durante meus anos de colegial me proponho
a ler 300 livros em japonês, quinze em inglês [além dos do currículo
escolar] e melhorar meu condicionamento físico com trinta minutos de
exercícios diários. Não ler enquanto descanso.
19 de abril de 1941_A indulgência com emoções e o erótico
tem sua razão de ser. Mesmo que não passe de uma união entre dois corpos, o ser
humano está destinado a sentir que não pode viver sem a companhia de outro ser
humano. É claro que o erotismo não brota apenas da solidão. Algo mais leva ao
desejo de companhia. Mas talvez essa interpretação sirva apenas para estetizar o
erotismo...
22 de junho_[A propósito da declaração de guerra da
Alemanha à União Soviética.]O que vai acontecer com o Japão? A morte é
imoral e viver é absolutamente moral.
31 de agosto_Japão, por que eu não te amo e não te
respeito?
12 de outubro_A nação é uma entidade com enorme poder de
controle.Não posso mais elogiar minha pátria. A guerra não se destina a proteger
o país, mas é o resultado inevitável da forma como o Japão se desenvolveu como
nação. Sinto que devo aceitar o destino da minha geração, lutar na guerra e
morrer. Chamo isso de “destino”, uma vez que somos mandados ao campo de batalha
para morrer sem podermos expressar nossas opiniões, criticar e dar argumentos a
favor ou contra. Morrer na guerra, morrer sob a demanda da nação – não tenho a
menor intenção de elogiar esse estado de coisas. Trata-se de uma grande
tragédia.
20 de janeiro de 1942_Uma frase de Jean-Christophe
[obra que valeu o Nobel de Literatura ao romancista francês Romain
Rolland] me tocou fundo: “A vida consiste em uma batalha contínua e sem
trégua. Se você quer se tornar um ser humano honrado, precisa lutar contra
inimigos invisíveis, desastres naturais, desejos avassaladores, pensamentos
sombrios; tudo o que engana a pessoa, a diminui, a destrói.”
18 de junho_Assisti a uma palestra do professor Tanabe
Hajime [venerado membro da Escola de Filosofia de Kyoto]. Sua voz era
tão miúda que ficou quase inaudível. Em suma, ele disse que “a filosofia é um
treinamento para a morte. A realidade demanda a morte, isto é, o sacrifício da
própria vida. Não se morre de acordo com a própria vontade”.
30 de setembro_Preciso ser sincero. O desejo sexual é
doloroso. Olho para mim, tomado pela vontade de união física. Em seguida combato
o impulso como se fosse sujo e feio, resultado da minha raiva por não satisfazer
o desejo. Por outro lado, sonho em aspirar o cheiro do suor [de uma
amante] que excita, o cheiro do corpo do sexo oposto, o toque em um corpo
quente, a euforia do enlace de duas pessoas apaixonadas se descobrindo, sem o
sentimento da vergonha, a dança selvagem do ato, o adormecer abraçado e a doce
sensação de despertar a seu lado – são todas imagens que me atormentam. Luto
diariamente com esta dor. Preciso assumir o controle sobre mim!
21 de maio de 1943_Outra palestra do professor T. Ele
explicou que a Escola Estoica considera a morte um fenômeno natural, não
controlável por nossa vontade, enquanto o existencialismo de Heidegger vê a
morte como uma possibilidade realista – a possibilidade de renascer que deriva
da nossa habilidade de encarar a morte. De acordo com o professor, nossa única
salvação é sabermos que devemos morrer, que devemos viver nossas vidas
preparados para mergulhar na morte a qualquer momento. A morte não é
Sein [ser, em alemão], mas Sollen [dever
ser]. Ele prosseguiu dizendo que a humanidade e Deus não entram em contato
direto. São as nações que medeiam entre os dois. Devemos fazer o possível para
manter os três conectados.
16 de junho_Ao ler Em Torno de uma Vida: Memórias de um
Revolucionário [de Piotr Kropotkin, o anarquista], fiquei tocado
pela força espiritual dos russos, em especial pelas mulheres da Rússia
pré-revolucionária. Apesar de perseguidas pelo regime, elas procuraram obter
conhecimento; algumas se aventuraram no exterior e acabaram por encontrar uma
faculdade de medicina para mulheres. Nelas encontro o verdadeiro caráter dos
russos. Nossa tendência, quando pensamos no povo russo, é evocar a imagem do
miserável mundo descrito por Dostoiévski em Recordações da Casa dos
Mortos, mas a intensa busca intelectual da verdade também existiu.
1º de dezembro_[Entre 200 mil e 300 mil estudantes foram
convocados para a guerra. O número exato permanece incerto.]
9 de dezembro_[Entre os 63 mil jovens enviados para a
base naval de Takeyama, em Yokosuka, estava Hayashi Tadao.]
19 de dezembro_Os dias passam rápido. Ainda assim, cada dia
parece longo... Não se pode lutar sozinho em guerras modernas. Cada um se torna
uma peça da roda. Como estou convencido de que esta guerra é uma
Totalkrieg [guerra total], devo concordar com cada etapa
necessária.
25 de dezembro_Estou decidido a manter meu diário. Mas o
Geist [Espírito] precisa permanecer livre. Dado que procuramos
manter a liberdade de espírito, nos sentimos controlados. Por sermos
responsáveis pela proteção do país, devemos ter a firme convicção de pro
patria mori, trabalhar nossa força física e dominar nossas qualificações
técnicas.
1º de janeiro de 1944_Talvez o que nos espera seja uma funda
desilusão e, para nossa sociedade, uma anarquia insidiosa. Sonho em me alongar
sobre as ondas do mar num dia ensolarado de primavera para me intoxicar com
pensamentos soltos enquanto meu corpo se solta à deriva na água... De repente,
me vem à mente uma cena de Casa dos Mortos – no entardecer de um dia de
verão de céu esbranquiçado, os prisioneiros são empurrados para dentro das
celas.
Vivo na solidão.
3 de janeiro_Não fujo do sacrifício. Mas martírio e
sacrifício devem ser feitos no auge da realização pessoal. Sacrifício ao término
do autoaniquilamento, da dissolução do seu ser, não tem nenhum significado.
22 de janeiro_Os militares exterminam a paixão e transformam
o ser humano numa peça que gira uma roda mecanicamente.
23 de janeiro_Estamos todos pessimistas quanto à
possibilidade de voltar para casa. Se eu não conseguir sair da Marinha, vou
enlouquecer. No momento eu só quero ler livros e nesse estado de espírito não
vou conseguir lutar na guerra... Não tenho paixão. Sinto perda e indiferença.
Não me importa o que venha a acontecer. O sentimento mais penoso e insuportável
deriva dessa vida de forçada indiferença. A parte dura não é morrer, é
viver.
28 de janeiro_[Hayashi Tadao é selecionado para piloto
reserva e transferido para a base naval de Tsuchiura, notória pelo tratamento
brutal conferido aos soldados.]
8 de maio_O individualismo não é um mero “ismo”, mas um
princípio inato do ser humano. Realmente odeio os militares. A única utilidade
que reconheço neles é o seu papel de protetor do nosso Volk [povo,
em alemão].
19 de maio_Sinto-me cada vez mais atraído pela solidão,
preces, dívida e responsabilidade social, mas nenhum sentimento de amor, que me
parece remoto demais no momento.
2 de junho_Acabo de ouvir a Nona de Beethoven. Me
tocou profundamente. Intensificou meu desejo de ler livros.
8 de junho_Prevejo a queda de Paris para dentro de um mês e
meio. Agora começa o contra-ataque inimigo, com sua acachapante superioridade
bélica. A catastrófica etapa descrita em Nada de Novo no Front
[romance pacifista de Erich Maria Remarque sobre a Primeira Guerra
Mundial] se aproxima.
16 de junho_Ataques aéreos contra Saipan, ilhas de Tinian e
Bonin. A situação é muito tensa, mas para mim tanto faz o Japão ser destruído. É
por demais tedioso ficar esperando.
20 de junho_Minha alma treme diante da tapeçaria literária
de Tonio Kröger, de Thomas Mann, com sua pitada de solidão,
sensibilidade aguda e uma sublimidade quase ameaçadora.
8 de julho_É pouco provável que eu consiga obter O
Estado e a Revolução, de Lênin. Meu plano, então, é memorizar A
Última, de Wilhelm Schmidtbonn, e O Apóstolo, de Rilke.
14 de Julho_Hoje encerro meu diário, fruto da minha
empobrecida vida espiritual. Eu, confusão e anarquia, estou reduzido a isso. O
que me atrai são questões sobre a natureza da sociedade moderna. Neste diário eu
expus minhas fraquezas. Este misérable humano na sua totalidade está
aqui retratado. Escrever o diário foi uma forma de encontrar algum sentido para
mim.
O que desejaria, para mim, é andar pelas ruas de Moscou com uma boina na
cabeça, estudar economia e política internacional numa Bibliothek alemã
ou me envolver numa análise teórica dos rumos a serem tomados pelo Japão. Se eu
viver, é o que farei. Se eu morrer, terá sido um mero sonho. Gostaria de pensar
neste diário como o primeiro capítulo do registro de um ser humano que tinha um
grande sonho, mas que não encontrou uma solução. Tentei como pude realizar este
sonho. Fim.
Final de maio de 1945_[Antes de ser transferido para a
base aeronaval de Miho, Hayashi Tadao implorou ao irmão que lhe emprestasse
O Estado e a Revolução, de Lênin, à época proibido no Japão. O irmão
conseguiu fazer-lhe chegar a obra e Hayashi Tadao lhe contou ter lido, página
por página, no banheiro. A cada vez, rasgava a nova página em pedacinhos e a
fazia sumir na privada. Houve vezes em que engoliu os pedacinhos.]
30 de maio_[Última carta à mãe.] Mãe. Quantas vezes
você falou que viveríamos em Kyoto depois da minha formatura da faculdade...
Kyoto é realmente uma cidade pacífica e plebeia. Você e eu – não há lugar melhor
para vivermos juntos e continuarmos a nos aprimorar. Mãe, já não há esperança de
vivermos juntos agora que fomos arrastados pelo redemoinho do tumulto mundial.
Como você viverá? De qual força moral poderá você depender para a continuação da
vida? Minha pobre mãe.
27 de julho_Entardecer, o momento mais belo... Sem avisar,
milhões de imagens aparecem e desaparecem. Amado povo. Como é doloroso morrer no
céu.
28 de julho_[Hayashi Tadao morreu aos 24 anos, já depois
da rendição aos americanos. Seu avião explodiu numa noite enluarada.]
KASUkA TAKEO
Apesar da publicação de inúmeros testamentos, fotos e filmes mostrando
jovens pilotos sorridentes fazendo o último aceno antes de decolar para a
derradeira missão, um raro relato de como transcorria a noite de véspera mostra
uma história inteiramente diversa. Kasuka Takeo tinha 86 anos em junho de 1995
quando narrou o que viu, numa noite como aquela. Durante a guerra, Kasuka Takeo
tinha por tarefa cuidar das refeições, da lavanderia, da faxina e de outros
trabalhos manuais para os pilotos tokkōtai da base aeronaval de
Tsuchiura. Eis o trecho da carta enviada a um amigo:
No salão onde ocorriam as festas de despedida, os jovens oficiais estudantes
bebiam saquê frio. Alguns engoliam o copo de um só trago. Outros sorviam grandes
quantidades em goles consecutivos. O local se transformava em caos. Alguns
quebravam lâmpadas com suas espadas. Outros arremessavam cadeiras contras as
janelas e rasgavam as toalhas de mesa. Um misto de hinos militares com
xingamentos enchia o salão. Enquanto alguns vociferavam em fúria, outros
soluçavam. Era a última noite de suas vidas. Embora, para todos os efeitos,
estivessem prontos a sacrificar sua preciosa juventude ao alvorecer, em nome do
imperador e do Japão, eles estavam dilacerados – uns repousavam a cabeça na
mesa, outros escreviam testamentos ou juntavam as palmas das mãos em meditação,
ou dançavam feito alucinados. Na manhã seguinte, todos decolaram portando a
faixa com o sol nascente na fronte.
NAKAO TAKENORI
Nascido em Fukuoka, numa família de classe média-alta, Nakao Takenori
estudava direito na Universidade de Tóquio quando foi convocado para a guerra,
em dezembro de 1943, aos 19 anos de idade.
Em 1997, seu irmão caçula publicou Registro de uma Busca Espiritual:
Diário Manuscrito Deixado por Nakao Takenori, um Estudante que Morreu na Guerra.
Com mais de 700 páginas, nele ficam evidentes a procura de um sentido para a
vida e o desejo de ser “puro”, livre de qualquer materialismo ou egoísmo.
A busca da mulher ideal também permeia os escritos de Nakao Takenori. Seu
conhecimento de textos filosóficos em grego e latim, além de literatura alemã e
francesa, era profundo.
Agosto de 1939_Embora Hitler e Napoleão tenham guerreado
para expandir seus territórios nacionais, do ponto de vista histórico eles são
apenas a ascensão e queda de um povo. Seres humanos nascem para a morte. Somos
apenas um ciclo histórico. A história se repete. Qual o verdadeiro sentido do
universo?
Dezembro_Ameaçar a vida de um inocente jamais deveria ser
permitido. Do ponto de vista dos militares, porém, isso não importa, pois a
única coisa que conta para eles é a honra. Eles não questionam o que é ou não
verdade, apenas enchem o ar de mentiras.
Devo ingressar no mundo do caos em que interesses partidários obstruem a
justiça? Não gostaria de fazer parte do mundo que aprimora a justiça somente
para os burocratas e aumenta o poder dos militares. Prefiro me manter à margem
e, como Zola [Émile Zola, autor de J’Accuse, panfleto de 1898 em
defesa do oficial francês Alfred Dreyfus, de raiz judaica, acusado injustamente
de traição], orientar a nação em direção à justiça e à verdade.
Abril de 1940_Sócrates foi forte. Sempre se opôs aos
hipócritas e manteve seu sentido de justiça. Sinto não ser tão forte como
ele.
Maio_Vejo tudo cinza. Desesperança e melancolia sem
perspectiva de melhora. Não estou certo de conseguir suportar a exaustão física
e mental. Devo simplesmente morrer, sem haver qualquer sentido à minha vida?
Sinto como se tudo fosse desmoronar repentinamente.
Abril de 1941_Muitos estudantes aceitam o seu destino,
aceitam a necessidade de lutar mesmo diante da matança cruel. Sacrificam as
próprias vidas pela pátria e morrem abençoando suas mães e irmãos. É espantoso.
Talvez seja esse o espírito que hoje torna a Alemanha vitoriosa. [Nakao
Takenori acabara de ler uma coleção de cartas escritas por soldados-estudantes
alemães da Primeira Guerra Mundial.]
Abril de 1943_Estamos lutando contra a Inglaterra, esse
grande império em declínio, e contra uma América que está no ápice de sua
cultura material. Embora eu ainda não esteja no campo de batalha físico, já me
considero dentro. Eu, que procuro e amo o absoluto, devo me sacrificar pela
pátria... Será o “absoluto” encontrável neste sacrifício?
Não consigo não me debater com esta contradição... Eu, que cheguei a conhecer
a profundidade da vida e a viver essa vida, devo me sacrificar pelo país uma vez
que é esse meu destino? Persigo a verdade, a duras penas.
28 de abril de 1945_[Última carta endereçada aos
pais.] Na festa de despedida o pessoal me deu forças. Também me esforcei
para me encorajar. Sinto-me uma pessoa feliz. Posso ir ao encontro da morte na
certeza de ter recebido tratamento sincero de quem eu tratei bem... Meu copiloto
é Uno Shigero, um garoto bacana de 19 anos... Ele me considera seu irmão mais
velho e eu o vejo como meu irmão caçula. Unidos por um mesmo pulsar de coração,
vamos mergulhar num navio inimigo. Uma foto minha, que tirei recentemente,
ficará pronta em pouco tempo. Ela será enviada a vocês.
29 de abril_[Nakao e Uno decolam para a missão suicida,
mas são forçados a retornar à base por mau funcionamento do avião.]
5 de maio_[Os pais de Nakao vão até a base naval de
Takuma para ver o filho, mas são informados de que ele já havia sido transferido
para outra base; não foram informados de que ele tinha morrido na véspera, ao
mergulhar na batalha de Okinawa.]
HAYASHI ICHIZŌ
Nascido numa família cristã de cultura refinada, Hayashi Ichizōse formou
pela Universidade Imperial de Kyoto e foi alistado aos 21 anos. Dois anos
depois, foi selecionado como piloto tokkōtai. Em menos de dois meses
partiu para sua missão final. Todos os trechos de seu diário datam de 1945,
quando já estava aquartelado na base naval de Wŏnsan, na Coreia
ocupada.
9 de janeiro de 1945_Ganhei um caderno novo e vou começar a
escrever meu diário... Embora nossa missão seja lutar, é frustrante ficar
esperando... Mais um dia sem poder decolar... Provavelmente não poderei ir à
frente de combate antes do florescer das cerejeiras, nem quando elas já tiverem
murchado.
22 de fevereiro_[Data em que foi designado para uma
unidade tokkōtai.] Devemos seguir a expressão “Sob as ordens de Sua
Majestade”. Recebemos a locação da nossa morte. Devemos simplesmente mergulhar
com o avião. Seres humanos são dotados da capacidade de perdoar.
23 de fevereiro_Tenho tido tanto medo da morte, mas ela já
foi decidida por nós...Quando penso na minha mãe, não consigo não chorar. Sei
que tentarão consolá-la, mas sei que não será fácil aliviar sua dor. Choro muito
ao pensar nela...
Tenho a sorte de crer em Deus, e minha mãe também. Embora eu vá morrer, sonho
com o nosso reencontro... Tenho a forte esperança de que nosso país irá superar
esta crise e haverá de prosperar. Não suportaria a ideia de a nossa pátria ser
esmagada pelo inimigo sujo.
Para ser sincero, não posso afirmar que o desejo de morrer pelo imperador
seja genuíno, que ele venha do fundo do coração. Mas foi decidido assim.
Não terei medo no momento da morte. Tenho medo do quanto o medo da morte
perturba a minha vida.
4 de março_O motivo pelo qual ando pensando em suicídio é
porque a morte em combate significa o meu completo aniquilamento, impedindo que
eu contribua para a sociedade, que eu empreenda algo. É fácil falar de morte no
abstrato, como nas discussões dos filósofos da Antiguidade. É a morte real que
temo e não sei se poderei superar este medo.
19 de março_Gostaria de fazer alguma diferença no mundo. Não
nego que parte desse desejo deriva da minha vontade de ter a existência
reconhecida. Mas sobretudo ele deriva do vazio que sinto e da minha ira com os
chamados líderes, que são incapazes de reconhecer problemas que até eu consigo
identificar.
Os militares que ocupam altos postos estão cometendo um pecado que não pode
ser desculpado: estão matando crianças e civis inocentes na China.
Não tenho mais tempo para fugir... Desta vez não vou tentar escapar.
21 de março_Com os preparativos para a decolagem final sinto
um peso dentro de mim. Acho que não conseguirei olhar a morte na cara.
Desespero, desespero é pecado.
Abril_[A missão final de Hayashi Ichizōfoi abortada
devido ao mau funcionamento do seu avião. Isso permitiu que ainda escrevesse
mais três “cartas de despedida” à mãe.] Hoje metade de nossa unidade
mergulhou sobre navios inimigos ao largo de Okinawa. Não temos luz, por isso
escrevo perto de uma fogueira.
Mando lembranças a todos. Não me resta tempo para escrever-lhes. Vamos
afundar navios inimigos. O uniforme de um piloto tokkōtai para sua
última missão inclui uma bandana com o sol nascente e uma echarpe de seda branca
em volta do pescoço... Para meu último voo vou enrolar no meu corpo a bandeira
do Sol Nascente que você me deu e vou colocar uma foto sua no peito... Quando
você ouvir pelo rádio que navios inimigos foram afundados, por favor lembre que
mergulhei em um deles.
Amanhã não estarei mais vivo. Os que saíram em missão ontem estão todos
mortos? Não consigo crer que seja real. Sinto como se fossem retornar de
repente. Você talvez pense a mesma coisa em relação a mim. Mas, por favor,
desista. Por favor, chore. Mas, por favor, não fique tão triste.
Parto antes de você. E me pergunto se me será permitido ir para o céu. Ore
por mim, mãe. Não suportaria a ideia de ir para um lugar onde você não se
juntará a mim mais tarde.
Amanhã mergulho contra uma flotilha de porta-aviões inimigos. Se você fizer
um funeral religioso, coloque a data certa: 10 de abril.
por Emiko Ohnuki-Tierney
16 de abril de 2012