"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quarta-feira, 3 de outubro de 2012

LULA PEDE VOTO PARA MINISTRO DEMITIDO POR DILMA

Orlando Silva, candidato a vereador pelo PC do B, deixou Ministério do Esporte em 2011, acusado de corrupção


O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva voltou nesta terça-feira, 2, ao horário eleitoral na TV para pedir votos para o ex-ministro do Esporte Orlando Silva, candidato a vereador pelo PC do B. Orlando foi demitido do cargo pela presidente Dilma Rousseff em outubro do ano passado, após denúncias de corrupção em um dos principais programas da pasta.
Lula pede votos na TV para ex-ministro Orlando Silva - Celso Junior/AE
Celso Junior/AE
 
Lula pede votos na TV para ex-ministro Orlando Silva
"Eu gostaria imensamente de pedir a cada um de vocês que no dia 7 de outubro, ao votar para vereador, vote no companheiro Orlando", disse Lula. A propaganda já havia sido exibida no sábado.
Lula ainda não apareceu no programa de vereadores do PT. O último dia de horário eleitoral no rádio e na TV é nesta quinta-feira.

Para lembrar. Orlando Silva foi acusado de se beneficiar de um esquema de corrupção envolvendo o programa Segundo Tempo, do Ministério do Esporte. As denúncias partiram do policial militar João Dias Ferreira, dono de ONGs que tinham convênios com a pasta. Ele acusou o então ministro de ser o principal beneficiário de desvios de recursos públicos do programa para alimentar o caixa do seu partido, o PC do B. Orlando Silva negou envolvimento com o suposto esquema e informou na época que iria processar o denunciante por calúnia.

Ele foi o sexto ministro a sair durante a "faxina" da presidente Dilma. Depois dele, ainda seriam demitidos Carlos Lupi, do Trabalho, e Mário Negromonte, de Cidades, também envolvidos em denúncias de corrupção. Antonio Palocci, Alfredo Nascimento, Wagner Rossi e Pedro Novais saíram pelo mesmo motivo. Nelson Jobim (Defesa) caiu após declarações polêmicas que desagradaram a cúpula do governo.

03 de outubro de 2012
Isadora Peron, de O Estado de S. Paulo

CARÊNCIA DE HERÓIS OU FARTURA DE LADRÕES?

 

Brasileiro tem memória curta, logo esquece gatunagens protagonizadas por larápios influentes, concluíram os quadrilheiros do mensalão desde que Lula sobreviveu ao escândalo descoberto em 2005 e reelegeu-se no ano seguinte.

Brasileiro vive engolindo sem engasgos caciques da tribo que rouba mas faz, acreditaram nos últimos sete anos os sócios do grande clube dos cafajestes disfarçado de Congresso e financiado pelo Planalto.

A pátria de Macunaíma celebra heróis sem caráter desde a chegada das primeiras caravelas, provaram ensaios mambembes paridos por sociólogos com mais livros que neurônios na cabeça.

No país do jeitinho, só otários de nascença agem honestamente, ensina desde o primeiro assalto aos cofres públicos o hino da Frente Nacional dos Ladrões, Vigaristas e Canalhas em Geral.

A menos que a economia sofra algum enfarte, delinquentes de todos os partidos serão absolvidos pelas urnas mesmo se furtarem a poupança da avó ou o cofrinho da igreja da Candelária, garantiram analistas de pesquisas tão confiáveis quanto um parecer do consultor Palocci.

Candidato que denuncia bandalheiras alheias fica com imagem de briguento e despenca nas pesquisas, descobriram marqueteiros que erram até na combinação terno-e-gravata.

Combater a roubalheira nunca rendeu voto, o que decide eleição é programa de governo, endossou a oposição que não se opõe desde 2002. Melhor compor que lutar, vêm balbuciando poltrões promovidos a líderes oposicionistas por falta de coisa melhor: na Era da Mediocridade, os melhores e mais brilhantes são perseguidos como as ratazanas grávidas de Nelson Rodrigues.

A Ópera dos Embusteiros seguiria seu curso se um juiz de verdade não atravessasse a partitura com a protofonia da Constituição e os acordes do Código Penal.

Designado relator do processo do mensalão, Joaquim Barbosa limitou-se a cumprir seu dever. Analisou provas, evidências e depoimentosas, examinou os argumentos das partes envolvidas, enxergou as coisas como as coisas são, contou o caso como o caso foi, eviscerou o esquema criminoso e, amparado na lei, deixou claro que corrupção dá cadeia.

Tanto bastou para virar celebridade nacional, atesta o segundo vídeo estrelado pelo relator do mensalão, publicado na seção História em Imagens. A reação de milhões de brasileiros demonstra que o que parecia desinteresse era descrença. Muito mais que a carência de heróis, é a fartura de ladrões impunes que transformou Joaquim Barbosa em ídolo da imensidão de indignados.

Sem ter feito mais que a obrigação, um ministro sem medo tornou-se campeão de popularidade. E o julgamento de José Dirceu nem começou.

03 de outubro de 2012
Augusto Nunes

MANUAL DE INSTRUÇÃO

 

Depois de anos de elogios ao cinismo, de celebração da baixa esperteza e do rebaixamento da ética à categoria das irrelevâncias, voltamos a falar de valores na dimensão do valor que de fato têm.
A impressão que dá é que ministros do Supremo Tribunal Federal estavam com o tema entalado na garganta, à espera do melhor momento para desabafar.
 
Assim, a cada dia, a cada sessão de julgamento do processo do mensalão, sucedem-se, em forma de votos, lições sobre a distinção entre o certo e o errado.
 
Uma questão aparentemente simples, cuja abordagem fica complicada em ambiente onde viceja com sucesso a cultura da transgressão.
 
O que seria normal tornou-se excepcional. A regra virou exceção. Quem reclama é mal intencionado ou desavisado sobre a impossibilidade de o Brasil andar nos trilhos da lei.
 
Na sessão de segunda-feira, o decano da Corte, Celso de Mello, deu uma aula magna sobre o direito de todo cidadão de contar com "administradores íntegros, parlamentares probos e juízes incorruptíveis".
 
Um voto em feitio manual de instrução contra a venalidade e a delinquência como modos de operação do poder público.
 
Pontuou com clareza meridiana o mal que a corrupção faz ao Estado de direito, resgatou o sentido do memorável discurso de Marco Aurélio Mello quando assumiu a presidência do Tribunal Superior Eleitoral em 2006.
 
Marco Aurélio foi o primeiro a apontar com contundência o processo de degradação de princípios baseada nas conveniências políticas de um governo.
 
"A rotina de desfaçatez e indignidade parece não ter limites, levando os já conformados cidadãos brasileiros a uma apatia cada vez mais surpreendente, como se tudo fosse muito natural e devesse ser assim mesmo; como se todos os homens públicos, em diferentes épocas, fossem e tivessem sido igualmente desonestos, numa mistura indistinta de escárnio e afronta, e o erro do passado justificasse os erros do presente", avisou.
 
À época falou praticamente sozinho, no diapasão dos votos vencidos que costumam lhe render acusações de que contraria o senso comum por puro estrelismo.
Na essência, hoje Marco Aurélio tem a companhia da maioria de seus pares. Com variações de entonação e argumentos, reafirmam os limites da legalidade como pressuposto básico - deveria ser óbvio - para a vida pública e privada.

"A República não admite a apropriação do espaço público por governantes nem por governados", disse Celso de Mello em lembrete desnecessário caso não vivêssemos tempos de tão graves distorções.

Tempos em que é preciso um processo judicial para que o País pare para ouvir que o crime não pode ser aceito como uma prática habitual no exercício do poder.

Perícia. A certeza de que haverá condenações no capítulo da corrupção ativa resulta de pura lógica: se o tribunal aceita que os fatos apontados pela acusação aconteceram, aceita que alguém tinha domínio sobre eles.

Do contrário teriam ocorrido sem sujeito nem objeto. Algo como um corpo (de delito) sem tronco nem cabeça, composto só de membros.

Estilo. Com seu jeito ameno, o presidente do Supremo, Ayres Britto, confrontou a argumentação do revisor Ricardo Lewandowski de forma talvez, se considerado o conteúdo, mais dura que o relator Joaquim Barbosa com suas maneiras irritadiças.

Na sessão de segunda-feira chamou a tese do caixa 2, aceita por Lewandowski, de "teratologia argumentativa". Usou o juridiquês para dizer o que em bom português significa "aberrante", "estapafúrdio", "absurdo".

Empregatício. O leitor Celso da Costa, advogado, faz uma constatação: "Para Lula, ministro do Supremo é cargo de confiança".

03 de outubro de 2012
Dora Kramer - Estado de São Paulo

IMAGEM DO DIA


Após onze anos como fotojornalista do jornal Folha de S. Paulo, a fotógrafa paulista Adriana Zehbrauskas (1968) deixou uma carreira já consolidada e se mudou para a Cidade do México, em 2004.
 
03 de outubro de 2012

O CERCO SE FECHOU...

 



O cerco se fechou

Fechou-se o cerco em torno do alto comando do esquema do mensalão, constata o comentário de 1 minuto para o site de VEJA.
Em etapas sucessivas, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a trama foi parcialmente financiada por dinheiro público, que as transações financeiras envolvendo o Banco Rural atropelaram a lei, que o governo se valeu do PT para alugar, arrendar ou comprar partidos políticos, que parlamentares de distintas legendas se juntaram harmoniosamente na bancada dos que vendem o voto, a opinião, a alma. Ou a mãe.

A condenação de vários mensaleiros acusados de corrupção passiva informa que o STF decidiu percorrer um caminho sem volta. Neste 3 de outubro, o relator Joaquim Barbosa começou a escancarar as bandalheiras protagonizadas por José Dirceu, Delúbio Soares e José Genoino, enquadrados por corrupção ativa.
Como ensinou Reinaldo Azevedo no 23° debate sobre o mensalão, também no campo da corrupção só existem passivos se existirem ativos. Simples assim.

José Dirceu, Delúbio Soares e José Genoíno: em risco. Não existe corrupção passiva sem corrupção ativa.

CHEGOU SUA HORA, DIRCEU! QUE A JUSTIÇA LHE SEJA... JUSTA!


O relator do mensalão, ministro Joaquim Barbosa, começa a julgar hoje a parte do Capítulo VI da denúncia que trata da corrupção ativa. Entre os réus, estão José Dirceu, José Genoino e Delúbio Soares. Toda a procrastinação, toda a chicana, todas as vigarices intelectuais tornadas influentes, todas as agressões ao Supremo, todos os ataques à imprensa independente, todo o achincalhe à ordem legal, todas as teses sem embasamento jurídico, toda essa maquinaria estúpida, em suma, posta em ação buscava evitar que se chegasse ao dia de hoje. Estamos lidando com pessoas especializadas em fraudar a história, em retocar os fatos, em maquiar a realidade. Por isso mesmo, é preciso que jamais nos esqueçamos: eles se mobilizaram para que o julgamento jamais acontecesse.
Depois de montar um esquema comprovadamente criminoso para comprar a representação parlamentar, como já está comprovado pelos próprios ministros do STF, os mesmos criminosos atuaram de forma pertinaz, determinada, sôfrega até, para que o julgamento fosse para as calendas. E mostraram uma ousadia espantosa! Como revela Marcos Valério — já a caminho da cadeia — a seus interlocutores, ele recebeu a garantia do Palácio do Planalto, então sob o comando de Lula, de que não haveria julgamento nenhum! A Valério foi dito, mais ou menos como fazem os traficantes ou as milícias quando tomam conta de uma área: “Está tudo dominado!”. E, como se vê, felizmente, ainda não! Ainda há, perdoem-me repetir isto de novo!, juízes em Brasília.
O que se tem claro a esta altura do julgamento? O esquema criminoso a que se chamou mensalão existiu. Nunca é demais lembrar que esse neologismo é apenas uma espécie de marca-fantasia. Faz sentido! Os “ãos” e “ões” da língua portuguesa se associam, com frequência, a posturas desastradas, meio destrambelhadas; a práticas às quais faltam graça e elegância; a comportamentos reprováveis porque grosseiros, agressivos ou mesmo abestalhados; a pensamentos que se deixam marcar pela incultura, pela vulgaridade, pela falta de decoro. Assim, ainda que o “mensalão” não resuma, com efeito, o que foi expressão de um projeto de assalto ao estado — e ao estado de direito —, o nome parece bom! Esse “ão” lhe desenha a devida face abrutalhada, que viola os fundamentos da democracia e do estado de direito.
Agora vem a hora perigosaQualquer que seja o destino dos réus ainda não julgados, já está devidamente comprovado: a compra de apoio político no Congresso existiu. E isso quer dizer que se fraudou e se violou um dos Poderes da República. E assim se procedeu recorrendo ao dinheiro público, razão por que réus foram condenados por peculato. Não só isso: foi preciso fraudar a gestão de um banco — e o sistema financeiro é um bem tutelado pela Constituição brasileira — para que a engrenagem criminosa funcionasse. Políticos se deixaram corromper e lavaram dinheiro para dar corpo ao projeto petista de dominar o Congresso e governar o país fora dos limites da Constituição e das balizas institucionais.
Muito bem! Tudo isso se fez em proveito, então, desse projeto de poder. Se houve o polo passivo da corrupção; se houve aquele que mercadejou sua função pública, cumpre perguntar: quem era o polo ativo? Quem os corrompeu? Haverá de se contentar a nação com uma história da carochinha? Com que então os parlamentares que se deixaram corromper estariam a serviço do “corruptor” Marcos Valério, como se fosse ele o dono do tal projeto de poder? Ora… Na semana passada, numa indevida manifestação de partidarização do debate, o ministro Ricardo Lewandowski resolveu lembrar o mensalão mineiro, destacando (e já o fizera antes) que Valério atuou também naquele caso.
Muito bem! Eu não sou especialista em leis, é claro!, como não cansam de lembrar os petralhas — embora, vejam os arquivos e os vídeos da VEJA.com, eu tenha madado bem no mensalão, hehe. Mas sei ler, levo em conta o sentido das palavras e sou um apaixonado pela lógica. Não poderia haver melhor argumento do que o do próprio Lewandowski — eu sei que ele não quis prejudicar os petistas, claro! — para demonstrar que, por óbvio, o “ativo” de todos aqueles “passivos” não era Valério; não sozinho ao menos. O projeto de poder deste senhor, provavelmente, era ficar ainda mais rico. Quantos são os da sua espécie que se ligam a governos, a quaisquer governos, para prestar serviços? Os horizontes de alguém como ele não são dados pela ideologia, pelas convicções, pelas crenças… Ele é um caçador de oportunidades. Se, amanhã, o, digamos, PCO chegar ao poder, aparecerá alguém de sua estirpe para criar facilidades…
Quem detinha os arcanos do projeto petista? Quem se especializava — e gosta ainda hoje de brincar disso… — em interpretar os oráculos? Quem é que lia as entranhas do poder para tomar as decisões? Sim, dirão vocês, e estão certos nisto, o chefe era Lula. Ocorre que ele não é um dos denunciados — não ainda ao menos. Seu braço direito no controle da “máquina”, seu “primeiro-ministro”, era — e ele próprio fazia questão de alardear — José Dirceu.
Responsabilidade objetiva?Não se cuida aqui, por óbvio, de afirmar que se está diante da chamada “responsabilidade objetiva”, com a qual se podem cometer grandes injustiças. Não! Ao contrário até! Dirceu nem era, formalmente, o chefe do partido. Comandava a máquina que produziu aqueles horrores, em parceria com Lula, porque tinha, ATENÇÃO!, mais do que o poder objetivo de fazê-lo: ELE TINHA O PODER POLÍTICO. Por isso a banqueira Kátia Rabello mantinha encontros com o então chefe da Casa Civil. Porque, afinal de contas, era ele a tomar as decisões.
No tempo em que os petistas ainda apostavam que o processo do mensalão não daria em nada porque, afinal de contas, tudo estaria dominado, o próprio Dirceu fazia praça de seu poder. Atenção! Mesmo cassado pela Câmara por corrupção, mesmo formalmente fora do poder, mesmo atuando como lobista de empresas privadas, ela concedeu uma entrevista à revista Playboy em que se orgulhava da influência que mantinha no Palácio do Planalto. Leiam trecho:
PLAYBOY – O senhor não parece muito à vontade ao falar da sua atividade de consultor.
José Dirceu –
A lei me obriga ao sigilo e à confidencialidade, tanto no escritório de advocacia como aqui. Fazem campanha para me prejudicar. A minha vida é pública, eu continuo fazendo política, então é natural que escrevam e falem de mim. A minha atividade como consultor está totalmente legal, faz dois anos que saí do governo. Eu esperei um ano e meio. Posso fazer qualquer atividade.
PLAYBOY – Ter passado pelo governo que continua no poder não ajuda?
José Dirceu –
O Fernando Henrique pode cobrar 85 mil reais por palestra, e eu não posso fazer consultoria? No fundo, o que eu faço é isso: analiso a situação, aconselho. Se eu fizesse lobby, o presidente saberia no outro dia. Porque no governo, quando eu dou um telefonema, modéstia à parte, é um telefonema! As empresas que trabalham comigo estão satisfeitas. E eu procuro trabalhar mais com empresas privadas que com empresas que têm relação com o governo.
VolteiO que mais eu poderia acrescentar contra José Dirceu que ele já não o tenha feito melhor do que eu? Essa entrevista é de 2007, ano em que a denúncia foi aceita pelo Supremo. Então o consultor, o lobista, o deputado cassado por corrupção podia, segundo ele próprio, mobilizar a República com um simples telefonema? Do que não era capaz o superpoderoso chefe da Casa Civil, que não fazia questão nenhuma de esconder que se considerava o sucessor natural de Lula? Dirceu tem tanto orgulho dessa entrevista que a mantém em seu site pessoal.
No governo Dilma, seus telefonemas passaram a ter um pouco menos de importância, é fato. Para compensar, ele decidiu montar uma espécie de governo paralelo num quarto de hotel, em que recebia, à socapa, os líderes do governo no Congresso, ministros de Estado, presidentes de estatais, parlamentares… E o Zé poderia dizer: “Os meus clientes estão satisfeitos”.
Chegou a sua hora, Dirceu! Faço aqui essa reconstituição porque as minudências do processo são apenas a expressão, digamos, penal do fato histórico. Sem contar que, até hoje, fico aqui a me perguntar por que um certo Bob Marques, carregador de malas de Dirceu, tinha uma autorização — embora não conste que a tenha utilizado — para sacar R$ 50 mil do Banco Rural. Ou por que uma ex-mulher de Dirceu, quando foi arrumar um segundo emprego, foi parar justamente no BMG, um dos bancos que “emprestaram” dinheiro ao PT (segundo um dos diretores da empresa, foi a pedido de Valério). Ou por que essa mesma ex-mulher, ao vender um apartamento (e receber R$ 20 mil adiantados, em espécie), encontrou como comprador justamente Rogério Tolentino, um dos braços direitos de… Valério!
Às vezes, um mundo que parece pequeno demais é apenas promíscuo demais.
Chegou a sua hora, Dirceu! Que a Justiça lhe seja… JUSTA!
*Texto por Reinaldo Azevedo
Por Reinaldo Azevedo
03 de outubro de 2012

HOBSBAWM E O PREÇO DA UTOPIA


Eric Hobsbawm tem passado sua carreira de pelo menos sessenta anos ora justificando a existência da União Soviética, ora lamentando sua derrocada. Ninguém no Reino Unido poderia igualar semelhante recorde; aliás, nem na Rússia de hoje há alguém com uma carreira comparável.

A culpa dos males do mundo é, argumenta Hobsbawm invariavelmente, do capitalismo e dos capitalistas. Ele gosta de se definir como um historiador profissional, mas isso não passa de rematada autoindulgência da parte de um apologista denodado da ideologia marxista‑leninista.

Hobsbawm não tem qualquer interesse pelas normas habituais da historiografia, que é contar o mais objetivamente possível a verdade dos acontecimentos. No entanto, quanto mais distorcidas e perversas são as suas ideias, maior a reputação que angaria. Reitor do Birkbeck College, em Londres, professor universitário, membro da British Academy e da American Academy of Arts and Sciences, coleciona prêmios, títulos honoríficos e louvores muitas vezes negados a acadêmicos de verdade. É extraordinário que a defesa do totalitarismo e o desprezo pelas sociedades livres sejam recebidos com a aprovação de multidões.

Sir Keith Thomas, autoridade em temas da cultura britânica, por exemplo, chegou a dizer que Hobsbawm “é inigualável na sua profissão”. Numa resenha para o New York Review of Books, Tony Judt considerou‑o “o mais conhecido historiador do mundo [...] um herói lendário da cultura. Sua fama é bem merecida. Ele controla vastos continentes de informação”. Um comentarista conservador, Niall Ferguson, criticou o comunismo de Hobsbawm, mas julgou inegável o fato de ele ser “um dos grandes historiadores desta geração”. Tampouco o New York Times viu algo de contraditório ou estranho em descrevê-lo como “um dos grandes historiadores britânicos da sua geração, comunista ferrenho e homem culto, cujas obras de história, escritas com erudição e estilo elegante, continuam a ser lidas nas escolas daqui e do exterior”.

A revista The Nation foi muito além disso, elevando‑o a nada menos que a categoria de “um dos ‘homens virtuosos’ de Aristóteles”. O ex‑primeiro‑ministro Blair o elevou a membro da Ordem dos Companheiros de Honra, distinção rara que serviu para confirmar sua reputação. Um entrevistador da BBC, célebre por desbaratar pretensões, convidou‑o para um dos principais programas de entrevista e, de repente, entregou‑se à bajulação, chamando Hobsbawm de o maior historiador do século XX.

A experiência comunista – trata‑se de uma opinião já amplamente aceita – é responsável por cem milhões de mortes, e impôs ao século XX o estigma de uma das épocas mais assassinas da história. Já se descobriu que o marxismo‑leninismo é, na melhor das hipóteses, um devaneio acadêmico e um eufemismo para engenharia social; na pior, uma máquina infalível de guerra, conflitos e genocídios. Os condenados a aturar o comunismo livraram‑se agradecidamente dele assim que tiveram chance. Antigos fiéis da primeira hora – de Andrei Sakharov e Leszek Kolakowski a François Furet – viriam a explicar detalhadamente como pessoas inteligentes como eles próprios puderam estar tão enganados. Humanidade, liberdade, a simples compaixão pelo próximo: nada disso preocupa Hobsbawm. Para ele, a União Soviética caiu porque, infelizmente, não aplicou os métodos adequados para o verdadeiro comunismo.

Todo o experimento deveria ser repetido a partir das diretrizes deixadas por Marx e Lenin, embora essa nova tentativa também suponha o uso da força e um grande número de mortos. Em 1994, Michael Ignatieff – então jornalista político, mas depois presidente do Partido Liberal do Canadá – entrevistou Hobsbawm para a BBC. Segundo o historiador, o Grande Terror de Stalin teria valido a pena caso tivesse resultado na revolução mundial. Ignatieff replicou essa afirmação com a seguinte pergunta: “Então a morte de 15, 20 milhões de pessoas estaria justificada caso fizesse nascer o amanhã radiante?” Hobsbawm respondeu com uma só palavra: “Sim”.

Certa vez, encontrei Hobsbawm na casa de um amigo em comum. Conversamos sobre a Guerra Fria, em pleno vapor à época. Para ele, o certo seria jogar uma bomba atômica em Israel. Era uma simples questão de matemática: melhor matar cinco milhões de judeus do que ver uma superpotência nuclear matar duzentos milhões de pessoas. “Goebbels foi a última pessoa a falar assim”, eu disse. Ele se levantou da mesa e foi embora.

É difícil e doloroso simpatizar com alguém tão disposto a ver o assassinato em massa como prelúdio da Utopia. É ainda mais difícil fazer‑lhe justiça. Hobsbawm pertence a um tipo de gente retratado numa memorável passagem de Ferdinand Peroutka, ex‑aliado de Tomas Masaryk, o primeiro presidente da Tchecoslováquia. Os nazistas o prenderam e os comunistas o exilaram.

“O tirano dos dias de hoje sempre envia dois tipos de emissários: homens armados e falsificadores de ideias; sujeitos robustos e homens magrelas de óculos e rosto chupado; capangas que espancam a nação e outros capangas que agradecem o espancamento em nome da nação. O policial é seguido – e às vezes precedido – pelo mentiroso.”

Capangas e brutos estão presentes em todas as sociedades. Despertam pouco ou nenhum interesse, com a possível exceção da polícia. A revolução marxista‑leninista ou qualquer outro colapso social dá a tais homens a licença de pôr em prática a brutalidade que é sua segunda natureza. Obedecerão a qualquer um que lhes mandar servir de guarda em um campo de concentração ou atirar na nuca de alguém. Os falsificadores de ideias e mentirosos são muito mais sinistros. Em busca de poder, distorcem a verdade e transformam crime em justiça. Por trás dos escritos de Hobsbawm, está a sombria silhueta de um comissário assinando penas de morte com a consciência limpa. Como pôde ter se tornado um dos magrelas de óculos e rosto chupado, um profissional da falsificação e da mentira de que nos fala Peroutka?

O primeiro lugar onde procurar a resposta é em Tempos interessantes, sua autobiografia. Ele nasceu em 1917, e eu um pouco depois, em 1936. Por coincidência, ambos temos raízes judaicas e vienenses. Sua mãe, escreve, dizia‑lhe para nunca fazer algo que pudesse sugerir certa vergonha de ser judeu. Uma ou duas gerações atrás, muitos judeus abraçaram o comunismo, que parecia oferecer‑lhes assimilação, a libertação completa de uma identidade que talvez lhes envergonhasse ou – pior ainda – desse margem a situações vergonhosas. O internacionalismo teórico do comunismo oferecia a libertação das exigências da identidade judaica, uma escapatória, uma promessa de igualdade com os gentios. Essa resposta a tantas aspirações foi forte o bastante para seduzir muitos judeus a se tornarem revolucionários marxistas. Hobsbawm foi um deles.

Perseguidos tanto por Hitler como por Stalin, o destino dos marxistas judeus não foi senão trágico. Sua identidade revolucionária adotiva só convencia a eles próprios. O sionismo, ou seja, o nacionalismo judaico, era outra escapatória possível, uma retirada, uma afirmação de alteridade, uma espécie de tribalismo até – também com seu elemento trágico. Sendo um judeu marxista revolucionário, Hobsbawm vê em Israel uma nação “imperialista”, e por isso negou‑se certa vez a tomar um voo que fazia escala em Tel-Aviv.

Na sua autobiografia, despreza Israel, chamando‑o de “o pequeno Estado‑nação militarista, frustrante na sua cultura e agressivo na sua política, que pede a minha solidariedade em termos raciais”. Noutra ocasião, visitou a Universidade Bir Zeit, na Cisjordânia, para dar seu apoio aos palestinos. Ficamos sem saber por que o nacionalismo palestino é válido, mas o judaico não. A proposta que uma vez o ouvi fazer – cinco milhões de sionistas deveriam ser mortos – representa a ideologia marxista judaica levada ao ponto de transformar a revolução em reação.

Depois de crescer em Viena e Berlim, Hobsbawm chegou à Inglaterra em 1933 e entrou em Cambridge três anos mais tarde. Naquela época, a cultura britânica era provinciana. Com o intuito de provocar uma mudança no público, formadores de opinião como H.G. Wells, Bernard Shaw, o casal Webb, Victor Gollancz – editor e iniciador do sucesso comercial Left Book Club – divulgavam o comunismo a pessoas que não tinham contato com o Partido nem com o movimento trabalhista. Acadêmicos, donos de terras, advogados, poetas e jornalistas, futuros ministros, clérigos, socialites, celebridades: todos se declaravam comunistas. Ano após ano, a Intourist levava milhares de visitantes ansiosos à União Soviética para passeios cuidadosamente escolhidos e supervisionados dos quais voltavam para casa empolgados, repassando desinformações sobre o país. Uma Grã‑Bretanha Soviética estava se formando, os acontecimentos mundiais talvez a fizessem surgir, assim como o regime colaboracionista de Vichy emergiu do blitzkrieg nazista de 1940.

Faltava uma cabeça cosmopolita no centro da batalha política do continente, seja nas barricadas, seja nas conferências; era preciso uma versão local de Malraux, Aragon ou Togliatti. Tipos como Arthur Koestler e Malcolm Muggeridge poderiam ter servido, mas disseram a verdade sobre o que viram e logo se tornaram inimigos do povo. É aí que entra Hobsbawm. Falante de alemão, podia ser admirado por ter visto as tropas de choque de Hitler. O fato de ser judeu e marxista aumentou a sua credibilidade. Em Cambridge, era rodeado de amigos e conspiradores como Kim Philby e Guy Burgess, ambos já agentes soviéticos. Outro membro desse círculo era Noel Annan, que me disse certa vez que Hobsbawm tinha tanto talento para a persuasão que espalhou o comunismo entre seus contemporâneos.

Também estava com eles James Klugmann, futuro membro do Comitê Central do Partido e um dos pivôs no processo de manipulação a levar Tito ao poder na Iugoslávia. Quando Tito se revelou nacionalista, Stalin retirou seu apoio e ordenou Klugmann a iniciar uma polêmica contra o próprio homem que ele secretamente ajudara a chegar ao poder. Um pequeno episódio de Tempos interessantes mostra‑se especialmente revelador. Durante um dos ataques aéreos, uma mulher descrita como camarada Freddie ficou presa sob os escombros. Certa de que morreria, gritou: “Vida longa ao Partido, vida longa a Stalin”. A conclusão de Hobsbawm para essa tragicomédia foi: “O Partido era a nossa vida”.

Hobsbawm é sem dúvida inteligente e engenhoso; é capaz de manusear com facilidade as ferramentas de trabalho do historiador: pesquisar arquivos e fontes primárias e ser o mais objetivo possível no tema que tem às mãos. Um historiador marxista, porém, não pode seguir tais princípios; deve propor perguntas a respostas já dadas. Seu estudo orienta‑se pela obrigação de provar que os dogmas, teorias, especulações, gostos e repulsas de Karl Marx são confirmados em todas as sociedades em todas as épocas. A historiografia marxista nada mais é que um longo juízo de valores a priori que elimina necessariamente tudo o que não lhe dê sustentação.

O livro mais conhecido de Hobsbawm, A era dos extremos, com suas 627 páginas, alega ser uma síntese do século XX. É um ótimo exemplo de história escrita como um juízo de valores a priori, uma completa obra‑prima de distorção e omissão. Seriam precisas outras 627 páginas para apontar e esclarecer todas as suas duvidosas generalizações ex cathedra. Detenhamo‑nos pelo menos em alguns detalhes. Não há qualquer menção ao rearmamento secreto da Alemanha promovido pelos soviéticos durante o entreguerras. O argumento bastante convincente de que Hitler aprendera de Lenin e Stalin a estratégia da violência é descartado de antemão. Nenhuma menção a Beria e à polícia secreta NKVD, nenhuma análise do trabalho escravo nem da grande fome projetada na Ucrânia para roubar e matar camponeses infelizes.

A única vítima do gulag a ser nomeada é Nikolai Vavilov. E quanto a Mandelstam, Babel, ou os milhões de vítimas que não merecem ser esquecidas no anonimato? Com um desdém particularmente hediondo, Hobsbawm diz que mesmo o anticomunista Soljenitsin teve a carreira de escritor “firmada pelo sistema”. As referências ao Terror de Stalin são esparsas e fortuitas. Da Pequena historia do Partido Comunista Sovietico, de Stalin, Hobsbawm diz, como se fosse incapaz de ver o seu erro de lógica: “não obstante as suas mentiras e as suas limitações intelectuais, é um texto pedagógico escrito com maestria”.

Muitos abandonaram o Partido diante do pacto firmado entre Hitler e Stalin em agosto de 1939. Hobsbawm não. Para ele, o Pacto marcou “a recusa da URSS em continuar opondo‑se a Hitler”. O Pacto trouxe consigo imensos ganhos territoriais, mas Hobsbawm acha lógico afirmar que por esse meio Stalin esperava ficar fora da guerra. Na verdade, em 1939 veio a invasão dos países bálticos, e quase metade da sua população foi deportada. Esse processo genocida é desprezado por Hobsbawm com o costumeiro desdém marxista por pequenas nações. Em uma imensa sequência de eufemismos, esses países foram simplesmente “adquiridos” ou “transferidos” por Stalin. Da mesma forma, em 1989 eles “viriam a se separar”. Aquilo que para todas as repúblicas aprisionadas pela União Soviética representou uma libertação, para Hobsbawm foi a criação de um “vácuo internacional entre Trieste e Vladvostok”.

O pacto entre Hitler e Stalin permitiu ainda que os soviéticos invadissem a Finlândia. O Partido teve que elaborar uma justificativa especialmente convoluta e mendaz para acobertar esse ato unilateral de agressão contra um país pequeno. Em dezembro de 1939, Hobsbawm e Raymond Williams, outro comunista, cumpriram com seu dever e escreveram um panfleto com a alegação de que Stalin enviara o Exército Vermelho ao país para proteger a Rússia de uma invasão imperial britânica. Ambos os autores viviam na Inglaterra do tempo de guerra e não podiam ignorar que seu país enfrentava uma invasão alemã que podia muito bem acontecer, de modo que os ingleses não estavam em condições de invadir a Rússia. Hobsbawm menciona esse episódio vexaminoso apenas na sua autobiografia e bem de passagem.

Segundo Hobsbawm, Stalin modernizou e industrializou a União Soviética; se assim não fosse, Hitler teria vencido a guerra. Não há menções à contribuição americana, sequer dos equipamentos que forneceu ao Exército Vermelho. Comparado aos salvadores da humanidade Lenin e Stalin, Hitler parece débil. Nada de menções a Treblinka ou Auschwitz. Esses crimes parecem quase secundários. O leitor deve ser poupado de qualquer coisa que possa conduzi‑lo à equação bastante aceita dos sistemas totalitários semelhantes.

Tampouco há menções à supressão do Partido Comunista polonês no final da década de 1930, ou ao massacre da elite polonesa em Katyn. A destruição de Varsóvia pelos alemães em 1944 – a que o Exército Vermelho assistiu, imóvel – não foi senão “o castigo pelos levantes urbanos prematuros”. Do leste e do centro da Europa ocupada, no qual o Exército Vermelho criaria o bloco soviético, Hobsbawm, em mais um incrível eufemismo, diz‑nos se tratavam de “países que romperam com o capitalismo na segunda grande onda mundial de revolução social”. Ao fim da guerra, “a URSS não era expansionista – e muito menos agressiva – nem esperava haver qualquer outra expansão da frente comunista”. Não há qualquer referência à prisão, deportação e assassinatos frequentes dos democratas e anticomunistas, ou à supressão dos partidos políticos.

Tampouco se fala que os comunistas da Alemanha Oriental livravam‑se dos opositores pondo‑os nos campos de concentração deixados por seus precursores nazistas. A vitória da União Soviética foi “o triunfo do regime ali instalado pela Revolução de Outubro”. Hobsbawm afirma muitas vezes que a União Soviética trouxe estabilidade a diversos países, quando na verdade os estava invadindo e subvertendo. A globalização é apresentada como o ápice do mal capitalista e causa da falha do comunismo. E o mundo é quem sai perdendo, uma vez que há um “espaço moral vazio” no centro do liberalismo capitalista. A China mantém a chama acesa. Sob Mao Tse‑Tung, na opinião de Hobsbawm, “o povo chinês ia bem”, havia mais matrículas na escola primária e melhores roupas. A desumanidade nunca é desumana quando serve ao comunismo, mesmo que a realidade o estivesse destruindo.

As denúncias de Khruchev contra Stalin no XX Congresso do Partido em 1956 enchem Hobsbawm de horror. Khruchev maculou propositadamente a Revolução de Outubro. Disso podemos depreender que, se ele tivesse ficado quieto, os crimes de Stalin poderiam se repetir indefinidamente. Consequência imediata das declarações de Khruchev foi o levante húngaro daquele mesmo ano. Com sua habitual mescla de duplicidade e força bruta, os soviéticos debelaram o que fingiam ser uma contrarrevolução.

Depois de garantir salvo‑conduto aos líderes da revolta, prenderam‑nos, julgaram‑nos num tribunal secreto e os enforcaram. Quase tantas pessoas abandonaram o Partido como quando da invasão da Finlândia pelo Exército Vermelho – inclusive amigos e colegas de Hobsbawm. Hobsbawm por sua vez escreveu uma defesa da carnificina soviética no jornal comunista Daily Worker: “Embora aprovemos, com o coração pesado, o que agora ocorre na Hungria, também devemos dizer abertamente que a URSS deveria retirar as suas tropas do país assim que possível”.

O caso de Eric Hobsbawm nos permite vislumbrar muita coisa sobre o desejo que os seres humanos têm de ser enganados. Nos vinte anos desde que a União Soviética se deparou com a realidade e desapareceu, ele tem implicado com os Estados Unidos, com as políticas e os aliados americanos, prevendo um desastre que só pode ser evitado por uma renascença marxista. Parece não haver limites para a capacidade da imaginação de crer no que se quer e racionalizar o irracional. A sua óbvia fé em mentiras e ideias falsas aproxima‑o mais das superstições dos curandeiros do que dos métodos de um historiador profissional. A condescendência extravagante que recebe da parte de pessoas que deveriam estudar mais é uma prova inequívoca do declínio intelectual e moral dos tempos modernos.
HOBSBAWM E O PREÇO DA UTOPIA

David Pryce‑Jones *

Tradução de Cristian Clemente
Eric Hobsbawm tem passado sua carreira de pelo menos sessenta anos ora justificando a existência da União Soviética, ora lamentando sua derrocada. Ninguém no Reino Unido poderia igualar semelhante recorde; aliás, nem na Rússia de hoje há alguém com uma carreira comparável. A culpa dos males do mundo é, argumenta Hobsbawm invariavelmente, do capitalismo e dos capitalistas. Ele gosta de se definir como um historiador profissional, mas isso não passa de rematada autoindulgência da parte de um apologista denodado da ideologia marxista‑leninista.

Hobsbawm não tem qualquer interesse pelas normas habituais da historiografia, que é contar o mais objetivamente possível a verdade dos acontecimentos. No entanto, quanto mais distorcidas e perversas são as suas ideias, maior a reputação que angaria. Reitor do Birkbeck College, em Londres, professor universitário, membro da British Academy e da American Academy of Arts and Sciences, coleciona prêmios, títulos honoríficos e louvores muitas vezes negados a acadêmicos de verdade. É extraordinário que a defesa do totalitarismo e o desprezo pelas sociedades livres sejam recebidos com a aprovação de multidões.

Sir Keith Thomas, autoridade em temas da cultura britânica, por exemplo, chegou a dizer que Hobsbawm “é inigualável na sua profissão”. Numa resenha para o New York Review of Books, Tony Judt considerou‑o “o mais conhecido historiador do mundo [...] um herói lendário da cultura. Sua fama é bem merecida. Ele controla vastos continentes de informação”. Um comentarista conservador, Niall Ferguson, criticou o comunismo de Hobsbawm, mas julgou inegável o fato de ele ser “um dos grandes historiadores desta geração”. Tampouco o New York Times viu algo de contraditório ou estranho em descrevê-lo como “um dos grandes historiadores britânicos da sua geração, comunista ferrenho e homem culto, cujas obras de história, escritas com erudição e estilo elegante, continuam a ser lidas nas escolas daqui e do exterior”.

A revista The Nation foi muito além disso, elevando‑o a nada menos que a categoria de “um dos ‘homens virtuosos’ de Aristóteles”. O ex‑primeiro‑ministro Blair o elevou a membro da Ordem dos Companheiros de Honra, distinção rara que serviu para confirmar sua reputação. Um entrevistador da BBC, célebre por desbaratar pretensões, convidou‑o para um dos principais programas de entrevista e, de repente, entregou‑se à bajulação, chamando Hobsbawm de o maior historiador do século XX.

A experiência comunista – trata‑se de uma opinião já amplamente aceita – é responsável por cem milhões de mortes, e impôs ao século XX o estigma de uma das épocas mais assassinas da história. Já se descobriu que o marxismo‑leninismo é, na melhor das hipóteses, um devaneio acadêmico e um eufemismo para engenharia social; na pior, uma máquina infalível de guerra, conflitos e genocídios. Os condenados a aturar o comunismo livraram‑se agradecidamente dele assim que tiveram chance. Antigos fiéis da primeira hora – de Andrei Sakharov e Leszek Kolakowski a François Furet – viriam a explicar detalhadamente como pessoas inteligentes como eles próprios puderam estar tão enganados. Humanidade, liberdade, a simples compaixão pelo próximo: nada disso preocupa Hobsbawm. Para ele, a União Soviética caiu porque, infelizmente, não aplicou os métodos adequados para o verdadeiro comunismo.

Todo o experimento deveria ser repetido a partir das diretrizes deixadas por Marx e Lenin, embora essa nova tentativa também suponha o uso da força e um grande número de mortos. Em 1994, Michael Ignatieff – então jornalista político, mas depois presidente do Partido Liberal do Canadá – entrevistou Hobsbawm para a BBC. Segundo o historiador, o Grande Terror de Stalin teria valido a pena caso tivesse resultado na revolução mundial. Ignatieff replicou essa afirmação com a seguinte pergunta: “Então a morte de 15, 20 milhões de pessoas estaria justificada caso fizesse nascer o amanhã radiante?” Hobsbawm respondeu com uma só palavra: “Sim”.

Certa vez, encontrei Hobsbawm na casa de um amigo em comum. Conversamos sobre a Guerra Fria, em pleno vapor à época. Para ele, o certo seria jogar uma bomba atômica em Israel. Era uma simples questão de matemática: melhor matar cinco milhões de judeus do que ver uma superpotência nuclear matar duzentos milhões de pessoas. “Goebbels foi a última pessoa a falar assim”, eu disse. Ele se levantou da mesa e foi embora.

É difícil e doloroso simpatizar com alguém tão disposto a ver o assassinato em massa como prelúdio da Utopia. É ainda mais difícil fazer‑lhe justiça. Hobsbawm pertence a um tipo de gente retratado numa memorável passagem de Ferdinand Peroutka, ex‑aliado de Tomas Masaryk, o primeiro presidente da Tchecoslováquia. Os nazistas o prenderam e os comunistas o exilaram.

“O tirano dos dias de hoje sempre envia dois tipos de emissários: homens armados e falsificadores de ideias; sujeitos robustos e homens magrelas de óculos e rosto chupado; capangas que espancam a nação e outros capangas que agradecem o espancamento em nome da nação. O policial é seguido – e às vezes precedido – pelo mentiroso.”

Capangas e brutos estão presentes em todas as sociedades. Despertam pouco ou nenhum interesse, com a possível exceção da polícia. A revolução marxista‑leninista ou qualquer outro colapso social dá a tais homens a licença de pôr em prática a brutalidade que é sua segunda natureza. Obedecerão a qualquer um que lhes mandar servir de guarda em um campo de concentração ou atirar na nuca de alguém. Os falsificadores de ideias e mentirosos são muito mais sinistros. Em busca de poder, distorcem a verdade e transformam crime em justiça. Por trás dos escritos de Hobsbawm, está a sombria silhueta de um comissário assinando penas de morte com a consciência limpa. Como pôde ter se tornado um dos magrelas de óculos e rosto chupado, um profissional da falsificação e da mentira de que nos fala Peroutka?

O primeiro lugar onde procurar a resposta é em Tempos interessantes, sua autobiografia. Ele nasceu em 1917, e eu um pouco depois, em 1936. Por coincidência, ambos temos raízes judaicas e vienenses. Sua mãe, escreve, dizia‑lhe para nunca fazer algo que pudesse sugerir certa vergonha de ser judeu. Uma ou duas gerações atrás, muitos judeus abraçaram o comunismo, que parecia oferecer‑lhes assimilação, a libertação completa de uma identidade que talvez lhes envergonhasse ou – pior ainda – desse margem a situações vergonhosas. O internacionalismo teórico do comunismo oferecia a libertação das exigências da identidade judaica, uma escapatória, uma promessa de igualdade com os gentios. Essa resposta a tantas aspirações foi forte o bastante para seduzir muitos judeus a se tornarem revolucionários marxistas. Hobsbawm foi um deles.

Perseguidos tanto por Hitler como por Stalin, o destino dos marxistas judeus não foi senão trágico. Sua identidade revolucionária adotiva só convencia a eles próprios. O sionismo, ou seja, o nacionalismo judaico, era outra escapatória possível, uma retirada, uma afirmação de alteridade, uma espécie de tribalismo até – também com seu elemento trágico. Sendo um judeu marxista revolucionário, Hobsbawm vê em Israel uma nação “imperialista”, e por isso negou‑se certa vez a tomar um voo que fazia escala em Tel-Aviv.

Na sua autobiografia, despreza Israel, chamando‑o de “o pequeno Estado‑nação militarista, frustrante na sua cultura e agressivo na sua política, que pede a minha solidariedade em termos raciais”. Noutra ocasião, visitou a Universidade Bir Zeit, na Cisjordânia, para dar seu apoio aos palestinos. Ficamos sem saber por que o nacionalismo palestino é válido, mas o judaico não. A proposta que uma vez o ouvi fazer – cinco milhões de sionistas deveriam ser mortos – representa a ideologia marxista judaica levada ao ponto de transformar a revolução em reação.

Depois de crescer em Viena e Berlim, Hobsbawm chegou à Inglaterra em 1933 e entrou em Cambridge três anos mais tarde. Naquela época, a cultura britânica era provinciana. Com o intuito de provocar uma mudança no público, formadores de opinião como H.G. Wells, Bernard Shaw, o casal Webb, Victor Gollancz – editor e iniciador do sucesso comercial Left Book Club – divulgavam o comunismo a pessoas que não tinham contato com o Partido nem com o movimento trabalhista. Acadêmicos, donos de terras, advogados, poetas e jornalistas, futuros ministros, clérigos, socialites, celebridades: todos se declaravam comunistas. Ano após ano, a Intourist levava milhares de visitantes ansiosos à União Soviética para passeios cuidadosamente escolhidos e supervisionados dos quais voltavam para casa empolgados, repassando desinformações sobre o país. Uma Grã‑Bretanha Soviética estava se formando, os acontecimentos mundiais talvez a fizessem surgir, assim como o regime colaboracionista de Vichy emergiu do blitzkrieg nazista de 1940.

Faltava uma cabeça cosmopolita no centro da batalha política do continente, seja nas barricadas, seja nas conferências; era preciso uma versão local de Malraux, Aragon ou Togliatti. Tipos como Arthur Koestler e Malcolm Muggeridge poderiam ter servido, mas disseram a verdade sobre o que viram e logo se tornaram inimigos do povo. É aí que entra Hobsbawm. Falante de alemão, podia ser admirado por ter visto as tropas de choque de Hitler. O fato de ser judeu e marxista aumentou a sua credibilidade. Em Cambridge, era rodeado de amigos e conspiradores como Kim Philby e Guy Burgess, ambos já agentes soviéticos. Outro membro desse círculo era Noel Annan, que me disse certa vez que Hobsbawm tinha tanto talento para a persuasão que espalhou o comunismo entre seus contemporâneos.

Também estava com eles James Klugmann, futuro membro do Comitê Central do Partido e um dos pivôs no processo de manipulação a levar Tito ao poder na Iugoslávia. Quando Tito se revelou nacionalista, Stalin retirou seu apoio e ordenou Klugmann a iniciar uma polêmica contra o próprio homem que ele secretamente ajudara a chegar ao poder. Um pequeno episódio de Tempos interessantes mostra‑se especialmente revelador. Durante um dos ataques aéreos, uma mulher descrita como camarada Freddie ficou presa sob os escombros. Certa de que morreria, gritou: “Vida longa ao Partido, vida longa a Stalin”. A conclusão de Hobsbawm para essa tragicomédia foi: “O Partido era a nossa vida”.

Hobsbawm é sem dúvida inteligente e engenhoso; é capaz de manusear com facilidade as ferramentas de trabalho do historiador: pesquisar arquivos e fontes primárias e ser o mais objetivo possível no tema que tem às mãos. Um historiador marxista, porém, não pode seguir tais princípios; deve propor perguntas a respostas já dadas. Seu estudo orienta‑se pela obrigação de provar que os dogmas, teorias, especulações, gostos e repulsas de Karl Marx são confirmados em todas as sociedades em todas as épocas. A historiografia marxista nada mais é que um longo juízo de valores a priori que elimina necessariamente tudo o que não lhe dê sustentação.

O livro mais conhecido de Hobsbawm, A era dos extremos, com suas 627 páginas, alega ser uma síntese do século XX. É um ótimo exemplo de história escrita como um juízo de valores a priori, uma completa obra‑prima de distorção e omissão. Seriam precisas outras 627 páginas para apontar e esclarecer todas as suas duvidosas generalizações ex cathedra. Detenhamo‑nos pelo menos em alguns detalhes. Não há qualquer menção ao rearmamento secreto da Alemanha promovido pelos soviéticos durante o entreguerras. O argumento bastante convincente de que Hitler aprendera de Lenin e Stalin a estratégia da violência é descartado de antemão. Nenhuma menção a Beria e à polícia secreta NKVD, nenhuma análise do trabalho escravo nem da grande fome projetada na Ucrânia para roubar e matar camponeses infelizes.

A única vítima do gulag a ser nomeada é Nikolai Vavilov. E quanto a Mandelstam, Babel, ou os milhões de vítimas que não merecem ser esquecidas no anonimato? Com um desdém particularmente hediondo, Hobsbawm diz que mesmo o anticomunista Soljenitsin teve a carreira de escritor “firmada pelo sistema”. As referências ao Terror de Stalin são esparsas e fortuitas. Da Pequena historia do Partido Comunista Sovietico, de Stalin, Hobsbawm diz, como se fosse incapaz de ver o seu erro de lógica: “não obstante as suas mentiras e as suas limitações intelectuais, é um texto pedagógico escrito com maestria”.

Muitos abandonaram o Partido diante do pacto firmado entre Hitler e Stalin em agosto de 1939. Hobsbawm não. Para ele, o Pacto marcou “a recusa da URSS em continuar opondo‑se a Hitler”. O Pacto trouxe consigo imensos ganhos territoriais, mas Hobsbawm acha lógico afirmar que por esse meio Stalin esperava ficar fora da guerra. Na verdade, em 1939 veio a invasão dos países bálticos, e quase metade da sua população foi deportada. Esse processo genocida é desprezado por Hobsbawm com o costumeiro desdém marxista por pequenas nações. Em uma imensa sequência de eufemismos, esses países foram simplesmente “adquiridos” ou “transferidos” por Stalin. Da mesma forma, em 1989 eles “viriam a se separar”. Aquilo que para todas as repúblicas aprisionadas pela União Soviética representou uma libertação, para Hobsbawm foi a criação de um “vácuo internacional entre Trieste e Vladvostok”.

O pacto entre Hitler e Stalin permitiu ainda que os soviéticos invadissem a Finlândia. O Partido teve que elaborar uma justificativa especialmente convoluta e mendaz para acobertar esse ato unilateral de agressão contra um país pequeno. Em dezembro de 1939, Hobsbawm e Raymond Williams, outro comunista, cumpriram com seu dever e escreveram um panfleto com a alegação de que Stalin enviara o Exército Vermelho ao país para proteger a Rússia de uma invasão imperial britânica. Ambos os autores viviam na Inglaterra do tempo de guerra e não podiam ignorar que seu país enfrentava uma invasão alemã que podia muito bem acontecer, de modo que os ingleses não estavam em condições de invadir a Rússia. Hobsbawm menciona esse episódio vexaminoso apenas na sua autobiografia e bem de passagem.

Segundo Hobsbawm, Stalin modernizou e industrializou a União Soviética; se assim não fosse, Hitler teria vencido a guerra. Não há menções à contribuição americana, sequer dos equipamentos que forneceu ao Exército Vermelho. Comparado aos salvadores da humanidade Lenin e Stalin, Hitler parece débil. Nada de menções a Treblinka ou Auschwitz. Esses crimes parecem quase secundários. O leitor deve ser poupado de qualquer coisa que possa conduzi‑lo à equação bastante aceita dos sistemas totalitários semelhantes.

Tampouco há menções à supressão do Partido Comunista polonês no final da década de 1930, ou ao massacre da elite polonesa em Katyn. A destruição de Varsóvia pelos alemães em 1944 – a que o Exército Vermelho assistiu, imóvel – não foi senão “o castigo pelos levantes urbanos prematuros”. Do leste e do centro da Europa ocupada, no qual o Exército Vermelho criaria o bloco soviético, Hobsbawm, em mais um incrível eufemismo, diz‑nos se tratavam de “países que romperam com o capitalismo na segunda grande onda mundial de revolução social”. Ao fim da guerra, “a URSS não era expansionista – e muito menos agressiva – nem esperava haver qualquer outra expansão da frente comunista”. Não há qualquer referência à prisão, deportação e assassinatos frequentes dos democratas e anticomunistas, ou à supressão dos partidos políticos.

Tampouco se fala que os comunistas da Alemanha Oriental livravam‑se dos opositores pondo‑os nos campos de concentração deixados por seus precursores nazistas. A vitória da União Soviética foi “o triunfo do regime ali instalado pela Revolução de Outubro”. Hobsbawm afirma muitas vezes que a União Soviética trouxe estabilidade a diversos países, quando na verdade os estava invadindo e subvertendo. A globalização é apresentada como o ápice do mal capitalista e causa da falha do comunismo. E o mundo é quem sai perdendo, uma vez que há um “espaço moral vazio” no centro do liberalismo capitalista. A China mantém a chama acesa. Sob Mao Tse‑Tung, na opinião de Hobsbawm, “o povo chinês ia bem”, havia mais matrículas na escola primária e melhores roupas. A desumanidade nunca é desumana quando serve ao comunismo, mesmo que a realidade o estivesse destruindo.

As denúncias de Khruchev contra Stalin no XX Congresso do Partido em 1956 enchem Hobsbawm de horror. Khruchev maculou propositadamente a Revolução de Outubro. Disso podemos depreender que, se ele tivesse ficado quieto, os crimes de Stalin poderiam se repetir indefinidamente. Consequência imediata das declarações de Khruchev foi o levante húngaro daquele mesmo ano. Com sua habitual mescla de duplicidade e força bruta, os soviéticos debelaram o que fingiam ser uma contrarrevolução.

Depois de garantir salvo‑conduto aos líderes da revolta, prenderam‑nos, julgaram‑nos num tribunal secreto e os enforcaram. Quase tantas pessoas abandonaram o Partido como quando da invasão da Finlândia pelo Exército Vermelho – inclusive amigos e colegas de Hobsbawm. Hobsbawm por sua vez escreveu uma defesa da carnificina soviética no jornal comunista Daily Worker: “Embora aprovemos, com o coração pesado, o que agora ocorre na Hungria, também devemos dizer abertamente que a URSS deveria retirar as suas tropas do país assim que possível”.

O caso de Eric Hobsbawm nos permite vislumbrar muita coisa sobre o desejo que os seres humanos têm de ser enganados. Nos vinte anos desde que a União Soviética se deparou com a realidade e desapareceu, ele tem implicado com os Estados Unidos, com as políticas e os aliados americanos, prevendo um desastre que só pode ser evitado por uma renascença marxista. Parece não haver limites para a capacidade da imaginação de crer no que se quer e racionalizar o irracional. A sua óbvia fé em mentiras e ideias falsas aproxima‑o mais das superstições dos curandeiros do que dos métodos de um historiador profissional. A condescendência extravagante que recebe da parte de pessoas que deveriam estudar mais é uma prova inequívoca do declínio intelectual e moral dos tempos modernos.

03 de outubro de 2012
David Pryce‑Jones *
Tradução de Cristian Clemente

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* Escritor e comentarista inglês. Seu livro mais recente é Treason of the Heart: from Thomas Paine to Kim Philby (2011
 

"O BOM, O MAU E O FEIO - ÉTICA E ESTÉTICA"

 
Quando Abraham Lincoln era presidente dos Estados Unidos, apresentaram-lhe um possível nome para compor o seu Gabinete. Recusou a proposta dizendo:

"Eu não gosto da cara dele".
 
"Mas, sr. presidente, qual é a culpa do coitado por ter aquela cara?"

"Todo homem acima dos 40 anos é responsável pela cara que tem."

As propagandas eleitorais gratuitas sempre me fazem recordar esse episódio, que, se não é real, é bene trovato. É possível ver a ética pela estética? Não me refiro à estética da proporcionalidade do rosto, do bronzeado, do implante de cabelo, do silicone, da taxa de gordura; numa palavra, à estética da forma física. A questão é outra: as escolhas feitas ao longo da vida, as nossas decisões, transparecem no nosso rosto? Será que a história do Pinóquio tem um fundo de verdade? As minhas mentiras deixam marcas na minha cara?

Atualmente, entendemos por ética um conjunto de valores subjetivos, organizados na medida e na hierarquia que cada um julgue relevante para uma vida digna. Mas não haveria uma ética comum, com independência do que cada um pensa? Deve haver, pois não é razoável, por exemplo, que alguém considere que mentir seja ético. Será possível entender como atitudes éticas a covardia, a ingratidão e a arrogância?

A dignidade humana parece exigir sempre algumas qualidades morais, com independência das idiossincrasias ideológicas e culturais de cada um. Esse fato - que poderia parecer uma limitação para a nossa liberdade - é o que lhe confere sentido. As nossas escolhas são relevantes.

O episódio de Abraham Lincoln faz-nos refletir não apenas sobre a nossa ética, mas também sobre a nossa estética. O que é a beleza humana? Que a garota de Ipanema seja bela ninguém discute. Mas há também uma beleza que provém da dignidade, e não se trata apenas de uma "beleza espiritual", não sensível. A pessoa, pelas suas opções, torna-se de fato bonita. Dá gosto olhar para o seu rosto.

Seja qual for a idade, a prática de algum tipo de exercício físico sempre ajuda. Mas será que o ideal de beleza humana, especialmente na maturidade, não se apoia, sobretudo, nessa estética da dignidade? O que é um rosto bonito aos 50, aos 60 anos? São os cremes e as cirurgias que determinam? Ou são as atitudes e aquilo que os olhos expressam?

É comum ouvirmos reclamações sobre a falta de ética dos homens públicos ou da sociedade em geral. Talvez pudéssemos manifestar essa mesma indignação falando da feiura que, infelizmente, muitas vezes encontramos: rostos que poderiam expressar humanidade, mas são artificiais, não em razão das plásticas, mas pela falta de sinceridade de vida.

Exigir ética pode parecer mais fácil. Temos a impressão de que ela é um aspecto mais objetivo, mais mensurável. Já a beleza parece estar noutro âmbito. É sempre algo mais vital e exige do próprio observador a capacidade da contemplação.

Contemplar a ética pela face da estética exige um aprendizado. Não basta uma régua. Já não se trata de medir ou de enquadrar, mas de observar. Nesse sentido, a Lei da Ficha Limpa ajuda a ver, pois regula o foco. Já não vale o "rouba, mas faz". No entanto, é ainda insuficiente. Não basta não ser assassino ou ladrão. Queremos mais dos nossos representantes.

Esse aspecto também joga algumas luzes sobre o nosso conceito de ética. De uma forma ou de outra, a ética kantiana - configurada essencialmente por deveres - é uma ética de mínimos. Seria ético quem não infringisse as normas éticas, quem vivesse o código de ética da sua profissão.

"Não matei nem roubei, logo, sou uma pessoa justa."

Esse raciocínio está longe da percepção aristotélica da ética, que aponta para a perfeição do comportamento humano. Não basta abdicar do mal, é preciso ser bom de verdade.

Novamente, vemos aqui a relação entre ética e estética. A beleza também nunca é apenas uma ausência de defeitos: tem sempre algo positivo.

A sociedade capta essa relação ética e estética. Por exemplo, por que os ataques de um candidato ao seu concorrente podem ser um tiro no próprio pé, ainda que sejam verdadeiros? Porque atacar é deselegante, é feio; e pode ser facilmente percebido pelo eleitorado como antiético.

Vemos essa correlação não apenas nos políticos, mas também no Poder Judiciário. Com os magistrados temos a oportunidade de observar essa evolução - ou involução - ao longo do tempo. Os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) são um exemplo evidente. A dignidade de cada um, que no âmbito judicial se manifesta primariamente por meio da sua independência, se traduz no rosto de cada um. Quem, ao final do processo do mensalão, sairá mais bonito e quem sairá mais feio? E não se trata de ficar bem ou ficar mal perante a opinião pública, mas de ser expressão viva de humanidade, de coerência, de justiça.

"Olhar-se no espelho" não é apenas uma metáfora para a análise da consciência. O próprio rosto já é em si mesmo manifestação da consciência.

Há quem possa concluir que - ao longo deste artigo - nos encaminhamos por caminhos não republicanos e que essas reflexões são inválidas para o âmbito público. Seja na esfera privada ou pública, sempre estamos analisando comportamentos humanos, complexos, irredutíveis ao seu aspecto quantitativo. E é preciso saber ver. O rigor jurídico é necessário, especialmente em temas de Direito Penal, mas um racionalismo excessivo pode ser contraproducente.

Tanto para as próximas eleições quanto para o caso do mensalão, ver com calma o rosto dos candidatos, dos juízes, dos réus pode ajudar. Afinal, estamos lidando com pessoas, não com números. E depois dos 40 somos nós que decidimos se seremos bonitos ou feios.

03 de outubro de 2012
Nicolau da Rocha Cavalcanti - O Estado de São Paulo
 

CELSO DE MELLO RESPONSABILIZOU DIRETAMENTE O GOVERNO LULA PELO MENSALÃO

De onde veio o mensalão
O Estado de S.Paulo
 
O decano do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Celso de Mello, responsabilizou diretamente o governo Lula pelo mensalão, ao proferir na segunda-feira o seu voto no julgamento do escândalo. Em nenhuma das 29 sessões anteriores se encontrará manifestação de igual contundência e impacto político, no corpo de um libelo de mais de uma hora sobre os efeitos da corrupção para as instituições e a sociedade.

Textualmente: "Este processo criminal revela a face sombria daqueles que, no controle do aparelho de Estado, transformaram a cultura da transgressão em prática ordinária e desonesta de poder, como se o exercício das instituições da República pudesse ser degradado a uma função de mera satisfação instrumental de interesses governamentais e de desígnios pessoais".

Note-se: Mello não se fixou no partido no poder, o PT, nem nos seus cúmplices na operação do esquema, mas nos condutores do governo. Só faltou chamá-los pelos nomes, sobrenomes e apelidos.


Desse modo, ele foi muito além de seus pares na rejeição da patranha de Lula e sua gente de que os montantes distribuídos a pelo menos uma dezena de deputados federais no início do seu mandato se destinavam a cobrir dívidas de partidos aliados e a financiar futuras campanhas eleitorais, pelo mecanismo do caixa 2, usado "sistematicamente" no País, segundo o ainda presidente. Dos 10 ministros atuando no julgamento, apenas um, o revisor Ricardo Lewandowski, encampou essa versão pelo valor de face.

Até o seu colega Dias Toffoli, que trabalhou para José Dirceu na Casa Civil e servia a Lula como advogado-geral da União quando o escândalo rebentou, entendeu que o mensalão foi concebido para comprar apoio parlamentar ao governo. (As ministras Cármen Lúcia e Rosa Weber ainda não deram a conhecer a sua opinião.) "Não se pode cogitar de caixa 2 nem mesmo coloquialmente", fulminou o presidente da Corte, Carlos Ayres Britto. "Ao contrário da roupa no tanque, quanto mais se torce a verdade, mais ela encarde."

Na sessão que terminou pela condenação unânime dos políticos indiciados por corrupção passiva, notadamente o ex-presidente do PTB Roberto Jefferson e o do PL (atual PR) Valdemar da Costa Neto, foi Britto quem mais esteve perto, depois de Celso de Mello, naturalmente, de conectar o mensalão ao Planalto. Ao apontar a "arrecadação criminosa de recursos públicos e privados para aliciar partidos e corromper parlamentares", afirmou que o esquema fazia parte de um "projeto de continuísmo político idealizado por um núcleo político".

Mello foi mais explícito ao falar em "altos dirigentes do Poder Executivo e de agremiações partidárias" - numa evidente referência aos principais réus políticos do processo, que começam a ser julgados hoje: o ex-ministro Dirceu, o presidente à época do PT, José Genoino, e o então tesoureiro da legenda, Delúbio Soares, acusados de corrupção ativa e formação de quadrilha.

Adiantando-se a eventuais alegações dos seus defensores e correligionários, Mello observou que o STF está respeitando os direitos e garantias dos réus, sem "flexibilizar" uma coisa ou outra.

Mas não deixou de assinalar, pouco depois, que a corrupção parlamentar - alimentada por "transações obscuras idealizadas e implementadas em altas esferas governamentais" - deve ser punida "com o peso e o rigor das leis", por configurar uma tentativa criminosa de manipular o processo democrático.

A "aliança profana entre corruptos e corruptores", sendo os primeiros "marginais do poder", como os qualificou o ministro, constitui uma "perversão" da ordem graças a qual "o Estado brasileiro não tolera o poder que corrompe e nem admite o poder que se admite corromper". A exposição de Celso de Mello parece encarnar a virada de página na vida institucional do País que a Suprema Corte demonstra almejar, em última análise e em boa hora, com o julgamento do mensalão.

Não apenas pelos seus votos, mas pelos princípios que os embasam, ao lado do exame dos fatos contidos nos autos, os ministros consagram o direito dos cidadãos de exigir, como destacou o decano, "que o Estado seja dirigido por administradores íntegros, legisladores probos e juízes incorruptíveis".

03 de outubro de 2012

O FIM DO MENSALÃO NAS MÃOS DO ELEITOR

Democratas
Esta semana, o Supremo Tribunal Federal foi bastante claro: durante a gestão do PT à frente do governo federal houve compra de votos no parlamento brasileiro. O mensalão existiu à custa de dinheiro roubado do contribuinte.
 
Foram sete anos de mentiras, de tentativas de negar os fatos, de artifícios para reduzir um esquema de corrupção à simples briga política de governo contra oposição ou mesmo à conspiração midiática. O STF mostra que houve muito mais do que isso.
 
A choradeira do petismo e seus apaniguados continua, mesmo frente às evidências irrefutáveis. Nunca na história deste País tantos políticos, intelectuais e até mesmo jornalistas lamentaram ou protestaram dessa maneira contra a condenação de gente envolvida em desvio de dinheiro público.
 
Até o ex-presidente Lula percebeu que essa tentativa de negar o inegável é um vexame e já muda de ideia. Para relembrar: primeiro disse que não sabia de nada, depois que o mensalão era apenas caixa 2 feito por todos, em seguida chamou o escândalo de farsa. Agora, mais uma vez rearranja o discurso e diz que o mensalão “não é vergonha”. Só falta dizer que é obrigação e orgulho.
 
Aos que ainda lamentam as condenações, é preciso ler as palavras do ministro decano do Supremo, Celso de Melo:
A conduta dos réus, notadamente daqueles que ostentam ou ostentaram funções de governo, maculou o próprio espírito republicano. Em assuntos de Estado ou de governo, nem o cinismo, nem o pragmatismo, nem a ausência de senso ético e nem o oportunismo podem justificar práticas criminosas, como as ações de corrupção do alto poder executivo ou de agremiações partidárias”.
 
Mas o auge do julgamento começa exatamente hoje. O ministro relator Joaquim Barbosa ira ler seu relatório sobre o núcleo político do mensalão. Estão em jogo o destino de figuras como o ex-ministro José Dirceu, considerado pela Procuradoria Geral da República como líder da quadrilha, o ex-tesoureiro do PT, Delúbio Soares, e o ex-presidente do partido, José Genoíno. Da absolvição à cadeia, tudo pode ocorrer.
 
Mas a grande chance para esquemas como o mensalão serem definitivamente varridos para a lata do lixo será oferecida nas eleições do próximo domingo.

Eleitores de todo o Brasil terão a chance de escolher entre grupos políticos mais comprometidos com interesse público e aqueles que participaram do mensalão.

A gravidade de se votar em candidatos petistas nesse pleito é passar o seguinte recado à classe política e a toda a população nestes momentos de mensalão: “podem roubar à vontade, podem comprar parlamentares, a gente perdoa”. Esse é um grande risco institucional para o Brasil. Deixar aberta a porta para esquemas futuros.
 
É preciso lembrar que o dinheiro sujo do mensalão foi fundamental para a eleição do ex-presidente Lula em 2002. O esquema funcionava bem até a denúncia do ex-deputado Roberto Jefferson, em 2005. Se não fosse a revelação do ex-parlamentar, as ilegalidades poderiam perdurar até hoje.

Contra essa situação e sonhando com um Brasil melhor, o Democratas apresenta seus candidatos. Nas capitais concorre com nomes como ACM Neto (Salvador), João Alves (Aracaju), Moroni Torgan (Fortaleza), Rodrigo Maia (Rio de Janeiro), Jeferson Morais (Maceió), Davi Alcolumbre (Macapá) e Mendonça Filho (Recife).
 
Além de administrações consagradas, o voto 25, no Democratas, é a garantia de que a corrupção e o desvio serão punidos, mesmo que seja cortando na própria carne.
 
03 de outubro de 2012