A deputada Cidinha Campos (PDT-RJ) é famosa por seus discursos inflamados, que costumeiramente vão parar no Youtube. A brizolista aguerrida costumava ser uma das incontáveis vozes a criticar o governador do Rio, Sérgio Cabral. Ganhou enorme repercussão com sua facúndia disparada na Alerj contra o deputado estadual José Nader (PTB-RJ), que se auto-indicou para uma vaga no Tribunal de Contas do Rio de Janeiro.
Sendo uma voz bastante popular e populista, a ex-companheira de Hebe Camargo ganhou muitos fãs com sua verve retórica – muito mais do que com o seu trabalho. Sendo reeleita em 2010, voltou à TV na Bandeirantes, com seu programa Cidinha Livre. Um dos fãs que ganhou na época foi o blogueiro Ricardo Gama, que ajudou na divulgação de alguns vídeos da deputada.
Mas o caldo entornou quando Cidinha recebeu em seu programa o governador Sérgio Cabral. Antes uma oradora que nenhum político gostaria de ter contra si, Cidinha passou a tratar o governador mansamente. Cidinha chegou a ser tachada de “pelega do Cabral”.
O blogueiro criticou a atitude da deputada. Cidinha, que o tinha como uma excelente forma de divulgação de seu poder de fogo, não gostou, e usou a TV Alerj para revidar. Ricardo Gama havia acabado de sofrer um atentado no Rio em que tomou 3 tiros na cabeça (mas, felizmente, sobreviveu). Cidinha fez um discurso inflamado criticando Gama, que, sem medo, publicou ele próprio o discurso na íntegra, sem edição alguma:
Como se vê, Cidinha se orgulha de “dar o nome” a um deputado: segundo ela, no próprio plenário da Assembléia Legislativa, o “nome” do deputado José Nader é “canalha, vagabundo”. De acordo com Cidinha, seus colegas deputados “fazem uma espécie de complô”, sendo que eles ” têm acesso a esses meios de comunicação e dizem qualquer coisa. E você, que não concorda com eles, não tem espaço nenhum.” (anotem bem estas palavras)
A deputada até conta causos pra ilustrar sua tese: “Quando parte da sociedade tá pra entrar em greve inflama, desinvade, depreda, quebra, bate no deputado, puxa o seu cabelo… isso não é política, sr. presidente. Isso não é política: é covardia.” E lembra que foi “vítima desse meio. Da campanha desses partidos que acham que você tem de ser como eles são.” (as palavras a se lembrar se repetem)
De repente, Cidinha mostra a que veio e pra que pediu voz na Alerj:
“E esse rapaz que gritou aqui agora – tomou 5 tiros – é o Ricardo Gama, ele usa muito bem esse instrumento da internet pra denegrir a vida dos outros. Mas quem é que sabe da vida dele? (…) Esse Ricardo Gama pratica extorsão. Ele falava melhor porque não tinha tomado os 5 tiros ainda.
Ele agora fez uma cena (…) porque o deputado André Lazaroni tá processando ele [sic]. O Ministério Público Federal tá atrás dele. Agora o que vai sair no jornal amanhã? “O”BALEADO’ quis bater no deputado mais alto da Assembléia Legislativa e o deputado fugiu”.
A deputada Cidinha, do plenário da Alerj, não tem escrúpulo algum em ironizar alguém que acabou de sofrer um atentado (quase com toda a certeza devido a seu blog político). O tom do seu discurso põe uma tônica abusiva na palavra “baleado”, como se fosse motivo para vergonha da vítima, e não do deputado que cuida do estado do Rio de Janeiro (condição da qual Cidinha faz parte). Também tenta ironizar a voz de Rodrigo Gama, que na verdade não foi afetada pelo atentado.
Isso fora as acusações genéricas, que qualquer hermeneuta pouco gabaritado pode perceber que, apesar da falta de indigitação e nomeação formal (a despeito do começo do discurso de Cidinha, em que afirma não ter medo de chamar ninguém de vagabundo na cara), claramente refere-se a Ricardo Gama.
Ricardo Gama, desavisado, retribuiu os elogios feitos na TV Alerj na mesma moeda. Cidinha o chamava de vagabundo, canalha, bandido, pessoa sórdida. Uma semana depois, Cidinha voltou à TV para fazer afirmações que ultrapassam todas as raias da convivência em sociedade: para criticar seu desafeto, tascou que “esse blogueiro é um facínora cibernético que toma três tiros na cabeça e não toma vergonha na cara“.
Lembremos agora das palavras da própria deputada Cidinha, sobre o “acesso a esses meios”, em que, se você “não concorda com eles, não tem espaço nenhum”, Cidinha resolveu processar Ricardo Gama por injúria (mesmo após atacar sua honra pela TV, enquanto o blogueiro só tem, enfim, um blog). Nota: apesar de Ricardo Gama ter um inquérito mofando na 12.ª Delegacia de Polícia do Rio pelo atentado em que tomou 6 tiros, empacado na tartaruguenta Justiça brasileira, os processos de Cidinha e do deputado André Lazaroni (PMDB-RJ) são céleres como um raio.
Quem notou o desnível foi Dâniel Frâga, que já está ficando conhecido por seus vídeos. Disse ele em um vídeo recente:
“O que eu quero questionar aqui é a desproporção de direitos entre o cidadão e um deputado. Cidinha Campos tem imunidade parlamentar, ela pode sim gritar no plenário, chamar as pessoas de vagabundos, criticar e xingar o blogueiro Ricardo Gama. Quando ele resolve fazer o mesmo através de um vídeo na internet, recebe um processo.
Por que você [Cidinha] não está preocupada com o autor da tentativa de homicídio contra Ricardo Gama? Ou seja, o sujeito recebe 6 tiros, forma mais clara da omissão estatal, a falácia da segurança pública do seu querido governador Sérgio Cabral (que não adianta nada) e do seu querido Estado – afinal você é apenas mais uma parte do Estado e reforça e legitima esse poder estatal – e pra isso você não move um dedo. Ou seja: a polícia do RJ está onde? Na hora que é um atentado contra um operador do Direito, uma juiza por exemplo, é rapidinho, o Estado resolve. Agora contra o cidadão não.”
Dâniel usou palavras fortes para se referir à deputada. Mas, na verdade, apenas as mesmíssimas palavras que a deputada usou para se referir ao blogueiro Ricardo Gama. Por que ela pode chamar alguém de vagabundo sem tomar um processo pra isso (e em rede nacional) e um blogueiro que teve a honra ofendida pela deputada não pode?
Cidinha resolveu ir ainda mais além dessa feita. Numa atitude que não parece sugerir muito boa-fé, publicou CPF e o endereço da mãe de Dâniel Fraga no seu Twitter pessoal.
Há alguma razão jurídica para tal? Sobretudo: como uma deputada pôde ter acesso a tais informações em tão pouco tempo? Não enseja uma investigação mais perfunctória dos métodos da nobre deputada?
É claro que o caso aqui é a mesma regra da “violência mínima”, como o professor de Filosofia João Virgílio explicou sobre os baderneiros da USP. É um cálculo arriscado para agredir, prejudicar, ferir e atrapalhar a vida do seu desafeto o máximo possível – mas exatamente um passinho antes de descambar para a ilegalidade. Por sinal, Cidinha teve ajuda de uns seus esbirros – um robôzinho que apareceu apenas para divulgar dados de Dâniel e depois se auto-destruiu.
É curioso ver tantos perfis que surgem só para facilitar que políticos policiem a internet. Um mundo bastante Big Brother. Dâniel Fraga, por simal, criticava justamente os “crimes contra a honra” como injúria, que nem deveriam mais serem tipificados. Vide o que um Bill Maher pode falar sobre o próprio presidente dos EUA, o homem mais poderoso do mundo: se alguém usasse 10% da força vernácula sobre uma deputada estadual como Cidinha Campos, quantos processos a mesma lançaria contra seus desafetos?
É claro que tudo pode ter sido um baita tiro no pé. Cidinha, de paladina da ética (mais ou menos como um PT ’89, em versão brizolista do séc. XXI), pode nunca mais conseguir ser eleita se essa história for bem divulgada. Por sinal, até um hashtag sobre Cidinha e sua palavra preferida foi criada, entre uma enchente de críticas que inundou o Twitter. A deputada irá processar metade da internet?
Não custa lembrar de mais algumas palavras do vídeo de Dâniel Fraga que causou a ira da deputada:
“Cidinha Campos ganha muito bem pra isso através do dinheiro público. (…) Você vota em alguém pra pessoa não fazer nada, pra pessoa ficar puxando o saco do governador, pra tapar os olhos pra violência do estado – as pessoas tomam tiros e a pessoa vai lá pro plenário fazer piada?! (…) Cidinha Campos causa mais prejuízo a todos: aos cofres públicos, porque tá movendo um processo absolutamente inútil e ridículo.”
Aparentemente, o salário de deputada e sua imunidade parlamentar estão sendo usados de maneira um tanto heterodoxa. Ao invés de a violência diminuir, o salário paga advogados que perseguem quem sofre atentados misteriosos enquanto critica o governo, e também para achar dados de cidadãos, torná-los públicos (expondo tais cidadãos tão somente ao risco de violência, e inclusive seus familiares), e ainda processá-los por responderem uma deputada com as mesmíssimas palavras que ela usa em cadeia nacional. Pública.
10 de junho dde 2012
Flavio Morgenstern é redator, tradutor e analista de mídia. Já pode imaginar o que Cidinha Campos pensa dele desde já.