"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

HISTÓRIAS DO SEBASTIÃO NERY

Novaes, a vaca do sertão

Manoel Novaes fazia comício em Irecê, nos estorricados sertões da Bahia. Um candidato a vereador pegou o microfone:

– Minha gente, quem deu a nossa perfuratriz?

– Foi Novaes!

– O que é a perfuratriz faz?

– Tira água do chão e dá água para nós.

– E a vaca que dá leite para nossos filhos, bebe o quê?

– Bebe a água que a perfuratriz tira do chão.

– Então, quem dá leite a nossos filhos?

– É Novaes!

– Portanto, vamos votar em Novaes, a vaca do sertão!

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MANOEL NOVAES

Durante mais de meio século, Manoel Novaes, nascido em Pernambuco e a vida inteira vivida na Bahia, cujo centenário foi em 6 de março de 2008, alto, quase dois metros, voz de trovoada, cara grande e generosa de sertanejo, olhos ensolarados, foi exatamente isso: a vaca santa, leite e esperança, emprego e trabalho, no infinito Sertão do São Francisco.

Manoel Novaes foi uma vida a serviço de um rio muito longo e um sertão muito seco. Médico, estava na Constituinte de 34. Na de 46, também. E conseguiu ver aprovado 1% da receita tributária da União para aplicação no Vale do São Francisco. Daí nasceu a Codevasf (Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco). Já advertia Novaes:

– “Cometeremos um erro insanável se adiarmos por mais tempo seus problemas. As precipitações pluviométricas da região se tornam irregulares de ano a ano, as condições de navegabilidade pioram, as erosões das margens alargam e obstruem o leito, a evaporação das águas aumenta”.

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AYRES BRITTO

Sessenta anos depois, o São Francisco volta a ser o centro de um aflito debate nacional. O governo apresentou um projeto bilionário para transpor uma parte de suas águas e distribui-las por Estados do Nordeste. Tudo certo, se o rio tivesse saúde. Mas o rio está cada dia mais doente. Doente não doa sangue. Precisa de sangue. O ministro Carlos Ayres Brito, do Supremo Tribunal, sergipano, nascido às margens do rio, logo protestou:

– “Promover a transposição de águas do São Francisco no contexto atual equivale a fazer transfusão de sangue de um doente terminal na UTI”.

O assoreamento aumenta a cada dia, a ponto de hoje toda a extensão do rio possuir imensos bancos de areia, separados por estreitas vias por onde só conseguem passar pequenas lanchas de passeio. É um rio esvaído.

E o governo quer matá-lo, a serviço dos empresários da irrigação.

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SÃO FRANCISCO

Antonio Conselheiro disse que o sertão ia virar mar e o mar virar sertão. Já começou. Da hidroelétrica de Xingó até a foz do rio são 208 quilômetros, separando Alagoas e Sergipe. O leito do rio está quase todo transformado em um imenso mar de areia, bancos de areia. A 135 quilômetros da foz se pescam peixes de alto mar, como o robalo.

É o avanço das águas do oceano. A ponte que liga Sergipe a Alagoas, a 45 quilômetros da foz, até há poucos anos tinha uma lâmina de água de 45 a 55 metros. Hoje, qualquer um pode atravessar o rio a pé, de moto ou a cavalo. As águas do rio chegam ao mar apenas por dois pequenos canais nos lados extremos da ponte. Quem duvidar, é só ir lá ver o desastre.

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TRANSPOSIÇÃO

De repente, o governo parou de falar na transposição. Há um mistério. Ninguém sabe como anda, se anda, se desanda, o projeto da transposição. O governo deve estar recuando por causa das mais de 20 ações que estão no Supremo Tribunal. Em voto, como sempre culto e brilhante, numa delas, o ministro Ayres Britto apontou a inviabilidade:

– O modo como o governo promove a licitação das obras da transposição agride ostensivamente os princípios constitucionais.

O fato de o São Francisco ser um rio nacional, que cruza cinco Estados, implica em que qualquer obra nele realizada, visando beneficiar terceiros, tem que ter previa autorização do Senado. E não houve. E o governo de Minas denunciou que não foi feito o Rima (Relatório de Impacto Ambiental) na bacia do rio, à margem dos Estados por onde passa.

Ningué diz o que o rio sofreu, pelo descaso das autoridades brasileiras.

Sebastião Nery
27 de fevereiro de 2012

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