Rezamos todos ou a reza, como reza o hábito, é um atributo (ou um privilégio) dos que acreditam em alguma coisa? Acreditar é um verbo poderoso. Talvez o mais poderoso de todos porque ele afirma algo que é ou não é, dependendo do ponto de vista.
Eu acredito em Deus!, diz Francisco; Eu não!, responde José.
Acredito que o mundo vai acabar em dezembro deste ano e que o mensalão é obra das elites reacionárias, de uma imprensa corrompida e de um Supremo Tribunal Federal golpista, dizem os defensores de Lula.
O pragmatismo inocente afirma que "gosto não se discute", mas, se aplicarmos isso ao verbo crer, o mundo se abre a uma torrente de loucuras. De fato, aprendemos que o verbo acreditar também tem limites. Não há como acreditar em Papai Noel ou que a morte não exista fora dos simbolismos culturais e religiosos.
Crer é um direito e um ato de fé.
Há quem acredite em X, Y e Z, há quem não acredite em X, Y e Z. Então X, Y e Z têm um lado oculto (ou tenebroso) que a suposta luminosidade do crer não alcança. O não crer obriga o crente a ver o todo. O crer, por seu turno, leva o cético a ver o lado que lhe falta e que ele imaginava não existir.
Essa pobre meditação é o resultado de um fato concreto e do meu mal-estar relativo ao mundo politico brasileiro.
Primeiro, o fato.
Morre uma professora dedicada. Eu não a conheci, mas, pelas mensagens que recebo, relembro como é dura a reconciliação com a presença concreta da morte para seus entes queridos. Eis que, no meio das mensagens, um padre solidário com a perda espera não constranger os seus colegas ateus com suas preces.
Poucas vezes me deparei com um exemplo de tamanha delicadeza e sensibilidade. Que os ateus me desculpem, eu não rezo para ofendê-los, diz o padre.
Como um conforto ao sacerdote, eu desejo sugerir que todos rezam. Uns acreditando, outros sem acreditar. Mas, diria um crente, como rezar sem um Deus? Ora, responderia o ateu, e como rezar para divindade se o rezar é um ato pelo qual se aceita o mundo tal como ele é?
Na sua bondade e maldade, nas suas trevas e luzes?
Mais do que reconhecer, suplicar ou tentar estabelecer um contrato com as divindades a prece é, já dizia Mauss, o ato religioso mínimo para entrar em contato com o sobrenatural que nos cerca e aterroriza, sejamos crentes ou ateus.
Rezar é reconhecer nossa finitude,
fraqueza,
carência,
angustia e solidão.
É admitir que vivemos numa totalidade que não podemos conhecer completamente. É um ato que pertence ao que Gregory Bateson chamou de "uma ecologia da mente". Pois quando rezamos suspendemos o aqui e agora dominados pelo eu para irmos de encontro ao todo.
Rezar é admitir que há no mundo seres e situações estranhas, acima (ou abaixo) dos elos entre meios e fins. Há quem use um canhão para matar um passarinho e quem tente enfrentar gorilas com poesia.
O mundo não é claro como querem os materialistas, mas também não é absolutamente escuro como desejam os crentes.
Eu ando rezando às claras e às escuras. Vejo no Brasil que julga o mensalão um dado novo e alarmante para os poderosos de todos os matizes e de todas as estirpes.
Esse é um julgamento que pela primeira vez na nossa história vai traçar limites não apenas para quem cometeu ilegalidades no poder, mas nos contextos ou situações engendradas por quem o ocupou e, sobretudo, por quem se deixou ocupar pelo poder.
Meu mal-estar com relação ao Brasil tem a ver com a força de quem tem certas crenças. E, para quem tem certas crenças, os fins justificam os meios.
Ser poderoso é, no Brasil, bradar pela ausência de limites.
Será mesmo possível punir um poderoso no Brasil?
É possível aceitar o erro de um petista mesmo sendo petista?
Pode-se admitir que os petistas, como a maioria dos seres humanos, são também ambiciosos e podem errar, como foi o caso do mensalão e, pior que isso, o aliar-se em São Paulo ao sr. Maluf?
Pode-se ser de esquerda deixando de lado a chamamento milenarista que promete um mundo perfeito quando perpetuamente governado por um messias? Seria possível ter no Brasil uma administração pública na qual oposição e situação aceitem os seus erros e tenham consciência dos seus limites?
Será que hoje não estamos num tempo no qual a ética tem sido comida pelo político e pela "política da coalizão" que foi a alma do fato em causa? Politizar negativamente é impedir a visão do todo como sendo feito de parcelas diferenciadas.
Se você, leitor, concorda comigo, reze. Se não concorda, reze por mim.
Roberto DaMatta/O Globo
26 de setembro de 2012
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