Os mais diversos boatos circulavam na ilha, a respeito do inexplicado sumiço
de Zecamunista. Não deixou sinal de seu paradeiro, nem mesmo entre os amigos e
correligionários mais chegados.
Uns especularam que, como aconteceu da vez em que ele desapareceu na Amazônia durante quatro anos e depois ressurgiu em Belém, casado com três índias e dando uma entrevista coletiva sobre a poligamia como agente de justiça social, ele tornara a embarcar numa missão impossível e muito tempo iria passar sem que puséssemos os olhos nele.
Outros, menos imaginosos, suspeitaram de novo episódio galante, em que a reação de algum marido ofendido o forçara a procurar refúgio alhures. E,
com tal indefinição, chegou-se a temer que, dessa feita, o marido afrontado não tivera tão má pontaria quanto seus inúmeros predecessores.
Mas, claro, não era nada disso. Apesar de apreensivo com as condenações no Supremo, que ameaçam seus planos de pôr em funcionamento o Instituto Político de Corrupção Aplicada, ele continuava a botar fé em seus projetos e não contara a ninguém aonde iria porque ele mesmo não sabia, tinha sido uma viagem cheia de improvisos e imprevistos.
As condenações o preocupavam um pouco, sim, porque, para os mais impressionáveis, podia sugerir que a corrupção, há tão pouco tempo uma carreira onde o céu era o limite, agora oferecia um destino sombrio a seus profissionais.
Mas, embora acreditasse que haveria condenações, elas não passariam de declarações e papelório, pois que ninguém é maluco de abrir o precedente e botar um graudete desses na cadeia, cadeia mesmo e não alguma solução para o perlustrar de britânicos, como falava o finado filósofo Walter Ubaldo, querendo dizer "para inglês ver".
- Em primeiro lugar - disse ele - vai haver recursos. Estive conversando com Lulu Adevogado, é cada recurso retado, é embargo pra lá, agravo pra cá, uma festa. Se soltarem eles mesmo, a primeira sentença definitiva sai em 2089, na comemoração do bicentenário de República.
Em segundo lugar, cadeia mesmo não vai haver, porque nesses casos não se usa, nunca se usou, é contra as tradições nacionais. Vai haver uns serviços comunitários, umas proibiçõezinhas que não atingem o dinheiro roubado, uma ou outra bobagem.
E ainda vão promover desagravos para eles, manifestações de solidariedade e assim por diante. E, finalmente, nada disso importa, diante da vocação histórica de nosso povo e da força da nossa cultura.
Ah, nem queiram saber, o que ele viu era coisa para um narrador fruto da cruza genética de Euclides da Cunha mais Gilberto Freire, o ladrão neurastênico luso-tropical é antes de tudo um forte, resistirá a qualquer ataque. Todo mundo sabe que as câmaras de vereadores são a preparação para voos mais altos.
É comum e muito compreensível para um jovem ambicioso que o ladrão municipal almeje vir a tornar-se ladrão estadual e - por que não sonhar? - ladrão federal.
Os exemplos mais que abundam, praticamente todos os que se elegeram se deram bem na vida e continuarão a dar-se.
- O pessoal parece que já nasce qualificado - explicou ele. - Eu conheci várias famílias onde todo mundo está colocado desde a primeira vez em que um deles se elegeu. O mais novinho de uma delas fez 18 agora, já é candidato e, quando fala em ser vereador, não se aguenta, esfrega as mãos como um faminto diante de uma mesa de comida e os olhos se acendem, chega a ser comovente, devia ser filmado. Aquela fome, sabe como é, aquela sede que não se mata nunca, quanto mais se bebe, mais se quer. Esse aí nem pretende fazer parte do êxodo rural como muitos colegas dele, vai querer ser vereador até o fim da vida, até porque pretende comprar e administrar mais umas duas fazendas, entre as muitas que a família já comprou, desde que o velho bisavô dele foi eleito, ainda no tempo de Getúlio.
- Mas não é possível que você não tenha visto nenhum candidato que merecesse confiança, inclusive candidatos realmente idealistas.
- Encontrei, encontrei. Mas é muito relativo. Na verdade, a maioria desses até pensa sinceramente que merece confiança. Mas ninguém passa na prova da fruta. Provou a fruta, não quer mais ficar sem ela. Não se vê nenhuma exceção, talvez algum anormal, que hoje deve estar internado a pedido da família. E outros são casos claros de idealismo funcional, conheço isso bem, é um fenômeno adaptativo, já vi centenas de casos.
- Não entendi nada.
- É o seguinte. O jovem político se dá melhor, na única turma que suporta sua convivência, com o pessoal idealista. Aí entra o fenômeno adaptativo. A opinião dele, opinião sincera mesmo, é essa, possibilita sua sobrevivência no meio a que está adaptado. Aí se elege e o meio muda. No começo deve haver um traumazinho, mas o fenômeno adaptativo vai fazendo seu papel e, depois de uns três mandatos e uns dois cargos públicos, a sobrevivência dele no novo nicho ecológico está garantida, ele já é um ladrão completo. E muitos deles continuam se apresentando como idealistas, faz parte.
- E o povo, você não tem achado que o povo está mais esclarecido?
- Está, está. Me contaram que já dá para comprar e vender votos pela internet, já bolaram vários métodos e o pagamento pode ser por boleto bancário ou cartão. Oficialmente, sai em nome de alguma caridade. E, por outro lado, eu estive num lugar em que um candidato disse que tinha espírito público e o concorrente está tirando votos dele, porque a maior parte do povo pensa que isso quer dizer que o candidato recebe uma entidade assombrada no meio da praça. Está tudo a mesma coisa e deixe de botar no jornal que eu quero profissionalizar os corruptos, antes que roubem minha ideia, se já não roubaram.
16 de setembro de 2012
João Ubaldo Ribeiro - O Estado de S.Paulo
Uns especularam que, como aconteceu da vez em que ele desapareceu na Amazônia durante quatro anos e depois ressurgiu em Belém, casado com três índias e dando uma entrevista coletiva sobre a poligamia como agente de justiça social, ele tornara a embarcar numa missão impossível e muito tempo iria passar sem que puséssemos os olhos nele.
Outros, menos imaginosos, suspeitaram de novo episódio galante, em que a reação de algum marido ofendido o forçara a procurar refúgio alhures. E,
com tal indefinição, chegou-se a temer que, dessa feita, o marido afrontado não tivera tão má pontaria quanto seus inúmeros predecessores.
Mas, claro, não era nada disso. Apesar de apreensivo com as condenações no Supremo, que ameaçam seus planos de pôr em funcionamento o Instituto Político de Corrupção Aplicada, ele continuava a botar fé em seus projetos e não contara a ninguém aonde iria porque ele mesmo não sabia, tinha sido uma viagem cheia de improvisos e imprevistos.
As condenações o preocupavam um pouco, sim, porque, para os mais impressionáveis, podia sugerir que a corrupção, há tão pouco tempo uma carreira onde o céu era o limite, agora oferecia um destino sombrio a seus profissionais.
Mas, embora acreditasse que haveria condenações, elas não passariam de declarações e papelório, pois que ninguém é maluco de abrir o precedente e botar um graudete desses na cadeia, cadeia mesmo e não alguma solução para o perlustrar de britânicos, como falava o finado filósofo Walter Ubaldo, querendo dizer "para inglês ver".
- Em primeiro lugar - disse ele - vai haver recursos. Estive conversando com Lulu Adevogado, é cada recurso retado, é embargo pra lá, agravo pra cá, uma festa. Se soltarem eles mesmo, a primeira sentença definitiva sai em 2089, na comemoração do bicentenário de República.
Em segundo lugar, cadeia mesmo não vai haver, porque nesses casos não se usa, nunca se usou, é contra as tradições nacionais. Vai haver uns serviços comunitários, umas proibiçõezinhas que não atingem o dinheiro roubado, uma ou outra bobagem.
E ainda vão promover desagravos para eles, manifestações de solidariedade e assim por diante. E, finalmente, nada disso importa, diante da vocação histórica de nosso povo e da força da nossa cultura.
Ah, nem queiram saber, o que ele viu era coisa para um narrador fruto da cruza genética de Euclides da Cunha mais Gilberto Freire, o ladrão neurastênico luso-tropical é antes de tudo um forte, resistirá a qualquer ataque. Todo mundo sabe que as câmaras de vereadores são a preparação para voos mais altos.
É comum e muito compreensível para um jovem ambicioso que o ladrão municipal almeje vir a tornar-se ladrão estadual e - por que não sonhar? - ladrão federal.
Os exemplos mais que abundam, praticamente todos os que se elegeram se deram bem na vida e continuarão a dar-se.
- O pessoal parece que já nasce qualificado - explicou ele. - Eu conheci várias famílias onde todo mundo está colocado desde a primeira vez em que um deles se elegeu. O mais novinho de uma delas fez 18 agora, já é candidato e, quando fala em ser vereador, não se aguenta, esfrega as mãos como um faminto diante de uma mesa de comida e os olhos se acendem, chega a ser comovente, devia ser filmado. Aquela fome, sabe como é, aquela sede que não se mata nunca, quanto mais se bebe, mais se quer. Esse aí nem pretende fazer parte do êxodo rural como muitos colegas dele, vai querer ser vereador até o fim da vida, até porque pretende comprar e administrar mais umas duas fazendas, entre as muitas que a família já comprou, desde que o velho bisavô dele foi eleito, ainda no tempo de Getúlio.
- Mas não é possível que você não tenha visto nenhum candidato que merecesse confiança, inclusive candidatos realmente idealistas.
- Encontrei, encontrei. Mas é muito relativo. Na verdade, a maioria desses até pensa sinceramente que merece confiança. Mas ninguém passa na prova da fruta. Provou a fruta, não quer mais ficar sem ela. Não se vê nenhuma exceção, talvez algum anormal, que hoje deve estar internado a pedido da família. E outros são casos claros de idealismo funcional, conheço isso bem, é um fenômeno adaptativo, já vi centenas de casos.
- Não entendi nada.
- É o seguinte. O jovem político se dá melhor, na única turma que suporta sua convivência, com o pessoal idealista. Aí entra o fenômeno adaptativo. A opinião dele, opinião sincera mesmo, é essa, possibilita sua sobrevivência no meio a que está adaptado. Aí se elege e o meio muda. No começo deve haver um traumazinho, mas o fenômeno adaptativo vai fazendo seu papel e, depois de uns três mandatos e uns dois cargos públicos, a sobrevivência dele no novo nicho ecológico está garantida, ele já é um ladrão completo. E muitos deles continuam se apresentando como idealistas, faz parte.
- E o povo, você não tem achado que o povo está mais esclarecido?
- Está, está. Me contaram que já dá para comprar e vender votos pela internet, já bolaram vários métodos e o pagamento pode ser por boleto bancário ou cartão. Oficialmente, sai em nome de alguma caridade. E, por outro lado, eu estive num lugar em que um candidato disse que tinha espírito público e o concorrente está tirando votos dele, porque a maior parte do povo pensa que isso quer dizer que o candidato recebe uma entidade assombrada no meio da praça. Está tudo a mesma coisa e deixe de botar no jornal que eu quero profissionalizar os corruptos, antes que roubem minha ideia, se já não roubaram.
16 de setembro de 2012
João Ubaldo Ribeiro - O Estado de S.Paulo
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