"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sábado, 17 de setembro de 2011

A PRIVATIZAÇÃO DO 11 DE SETEMBRO


Por que você odeia George W. Bush? Essa é uma pergunta fácil de se responder – nem é preciso pedir ajuda aos universitários.
Curiosamente, com tantos motivos para se odiar este cidadão, a maioria das pessoas ainda o odeia pelos motivos errados.

Considerado autoritário, retrógrado, fanático, “terrorista número 1 do mundo” (by Slavoj Žižek), truculento, populista e maquiavélico, Bush filho angariou inimigos fora (e dentro) dos EUA com ainda mais força do que Osama bin Laden, ganhava esquisitos admiradores mundo afora. Mas, dentre as críticas cabíveis a um dos piores presidentes da história dos EUA, “maquiavélico” é um termo muito superior a Bush para que ele possa merecê-lo.

Em sua obra O Príncipe, o mestre florentino ensina como manter um Estado autoritário sem precisar recorrer ao direito divino como “justificativa” para o poder desmedido dos principados – bastando, ao contrário, que se separe as esferas da ética e da atuação estatal.

Uma de suas lições é que o príncipe deve cuidar do seu Estado visando a sua manutenção no cargo. Para isso, é impreterível que não enfrente ameaças externas contratando mercenários para cuidar do território, como se vê no Capítulo XII, De quantas espécies são as milícias, e dos soldados mercenários (Quod sint genera militiae et de mercenariis militibus).

Não é preciso muito esforço para compreender a lição: uma milícia ou um mercenário apenas defendem o Estado em troca de dinheiro. Não são disciplinados, não obedecem a uma hierarquia (importantíssimo para ações militares) e sempre vão exigir mais dinheiro – não parece ser uma idéia muito inteligente armar até os dentes quem vai querer lhe extorquir logo depois. Não surpreende, portanto, que milícias sejam muito mais violentas do que as forças armadas oficiais – sua capacidade é apenas a ofensiva brutal.

A doutrina Rumsfeld

No dia 10 de setembro de 2001 (repetindo: 10 de setembro de 2001), Donald Rumsfeld, Secretário de Defesa no primeiro ano do primeiro mandato de George W. Bush, faria um de seus primeiros pronunciamentos no Pentágono. Trovejou Rumsfeld:

“O assunto de hoje é um adversário que representa uma ameaça, uma séria ameaça à segurança dos Estados Unidos da América. Este adversário é um dos últimos bastiões de planejamento centralizado. Ele governa ditando planos de 5 anos. De uma única capital, ele tenta impor suas demandas em diferentes fusos horários, continentes, oceanos e além. Com consistência brutal, ele sufoca o pensamento livre e esmaga novas idéias. Ele rompe a defesa dos Estados Unidos e coloca a vida de homens e mulheres de farda em risco.

Talvez esse adversário lembre a antiga União Soviética, mas este inimigo se foi: nossos inimigos são mais sutis e implacáveis ​​hoje. Você pode pensar que eu estou descrevendo um dos últimos ditadores decrépitos do mundo. Mas seus dias, também, são quase passado, e eles não podem coincidir com a força e o tamanho deste adversário. O adversário está mais perto de casa. É a burocracia do Pentágono.” (Jeremy Scahill, Blackwater – A Ascensão do Exército Mercenário Mais Poderoso do Mundo, p. 59)

Poupemos as elocuções sobre o que aconteceu na manhã seguinte. A posteriormente chamada “doutrina Rumsfeld”, ou seja, a privatização sistemática do Exército americano, teria pasto e circunstância para ser colocada em marcha imediatamente.

Uma empresa de segurança atuando no pântano de Moyock, na Carolina do Norte, a Blackwater Security Consulting, foi a principal beneficiária da política de segurança de Rumsfeld. Hoje vendida e renomeada como Xe Services LLC (mudança de nome após mudança de logo provocada pelas inúmeras encrencas em que a empresa se envolveu posteriormente), a empresa foi fundada em 1997 por Al Clark e Erik Prince, um cristão ex-calvinista dos ramos mais radicais da Carolina do Norte, convertido ao catolicismo, que também contribui com associações como a Christian Freedom International, ONG que cuida de “ajudar cristãos perseguidos”.

Prince já doou mais de US$ 200,000.00 ao Partido Republicano, tendo doado também dinheiro ao Partido Verde da Pensilvânia, gesto que foi interpretado como uma tentativa frustrada de derrotar o candidato democrata Bob Casey. Até meados de 2007 um homem avesso à exposição pública, Prince precisou mudar sua política de relações públicas após ter sido obrigado a prestar esclarecimentos ao Congresso pelas ações de sua companhia no além-mar.

Assim começou a terceirização do monopólio da força na desastrosa gestão da guerra por George W. Bush. Um grupo armado com interesses claros começou sua, por vezes patética, busca por demanda através do aumento da violência. A empresa que manteve firmemente a segurança das autoridades americanas em solo de guerra sem nenhuma baixa, logo mostraria seu modus operandi para obter tal resultado.

O mais poderoso exército mercenário do mundo

Uma das duas únicas funções do Estado, de acordo com o pensador Frédéric Bastiat, é dar ao indivíduo segurança e liberdade – ao se pedir qualquer coisa além, exige-se que se perca ao menos uma dessas duas coisas. Podemos colocar um adendo importante: se o Estado não cuida ele próprio da segurança, dificilmente o Estado permanecerá tranqüilo para seus demais afazeres.

"Have you ever heard about the Emancipation Proclamation?" "I don't listen to hip-hop."

Uma das críticas feitas aos republicanos durante as guerras do Afeganistão e do Iraque erra o alvo tremendamente. Michael Moore explora em tom jocoso a alegação, ressuscitada da guerra do Vietnã, de que os EUA enviavam para a frente de batalha apenas os pobres (e também negros). Uma crítica feita com muito mais êxito no filme South Park: Bigger, Longer & Uncut. Em seu Fahrenheit 9/11, Moore é visto em “campanha” sugerindo que cada congressista republicano envie para a guerra também seus próprios filhos. Na música B. Y. O. B. (Bring Your Own Bombs) do System of a Down, o refrão também vocifera: “Why do they always send the poor?!”

Uma crítica escorregadia. Um problema ainda maior é quase oposto. Com a entrada em ação da Blackwater, encarregada da segurança de autoridades do porte de Condoleezza Rice em situações de guerra no estrangeiro, um coronel ou tenente do Exército americano ganhava, pela guerra, um soldo menor do que um “soldado” raso da Blackwater, que, na prática, sequer representava alguma posição dentro da hierarquia militar americana.

O corpo da Blackwater, geralmente composto de ex-militares, acabou por obter soldos altíssimos por seus serviços. Se a Blackwater, antes da guerra ao terror, obtinha com contratos com o governo cerca de singelos US$ 25,000.00 por mês, por treinamento para a 2.ª Divisa de Fuzileiros Navais (também na Carolina do Norte), com a guerra e a doutrina Rumsfeld a empresa obtém um aumento de 80.000% nos contratos estatais; seus contratos com o governo federal ultrapassaram US$ 1 bilhão: “em 2007, a BW tinha um número de agentes no Iraque equivalente a dois terços dos do escritório de segurança diplomática americano em todos os outros países do mundo somados.” (op. cit., p. 55) Um único soldado da Blackwater em terras iraquianas custava mais de US$ 1 mil aos cofres públicos americanos por dia.

O mesmo livro de Jeremy Scahill afirma: “O governo americano paga aos prestadores de serviços o mesmo que o total de impostos arrecadados entre todos os americanos com renda inferior a 100 mil dólares, o que significa que ‘mais de noventa por cento de todos os contribuintes podem igualmente remeter tudo o que devem diretamente aos [prestadores] em vez de ao [governo]“ (p. 54), segundo reportagem da Vanity Fair. Para a jornalista Naomi Klein, “os prestadores de serviço tratam o governo como um caixa eletrônico, sacando contratos gigantescos para realizar funções essenciais (…), e faz depósitos sob a forma de contribuição às campanhas políticas.” (p. 54) É um tipo de corrupção que conhecemos bem no Brasil, mas que felizmente não envolve (hoje) agentes armados.

A idéia da privatização é oferecer serviços melhores e mais baratos ao consumidor, e isto se dá através da concorrência. Curiosamente, a privatização do Exército não atende, portanto, a nenhum dos dois requisitos, justamente porque quem paga sem escolher ainda é o contribuinte, haja visto que os contratos são diretos com o governo. É mais ou menos como um contrato com a Petrobras ou o BNDES chamado de “privatização”. Qual a vantagem ao contribuinte?

Não à toa que até proeminentes filósofos e intelectuais da linha neoconservadora (neocon) do Partido Republicano, a mais caricata e próxima dos presidentes Bush, rapidamente romperam seu apoio não incondicional à forma como as duas guerras principais (Iraque e Afeganistão, com uma frente de batalha no Paquistão) estavam sendo geridas. Francis Fukuyama, um dos mais famosos nomes da direita americana, afirmou em 2006, no livro America at the Crossroads, que já não poderia mais oferecer seu apoio a George W. Bush, tornando-se assim, de apóstolo, apóstata dos neoconservadores.

Não espanta que o discurso contrário à guerra, na época, tenha sido o de que os EUA só estavam atrás do petróleo iraquiano (discurso este que sumiu misteriosamente nos últimos anos). Em 1999, o preço do barril de petróleo oscilava na casa de US$ 16 o barril. Em 2008, o preço médio era de US$ 147 o barril – 819% mais elevado – o que também fez com que a Petrobras registrasse lucros recordes durante a gestão Lula. A guerra ao terror em 10 anos custou US$ 4 trilhões aos EUA (quase 7 trilhões de reais). Só no Iraque, os gastos são de US$ 300 milhões por dia. Um montante equivalente a US$ 5 mil por segundo. É quase o que se paga por “estacionamento de flanelinha” na Rua Augusta. Ainda assim, dizia-se que a guerra fora feita em busca de petróleo. Pois, vendo o balanço comercial do petróleo no mundo, parece que não encontraram.

Sunday bloody Sunday, Bagdad, 16.09.2007

Se a Blackwater até então só chamara a atenção de pesquisadores preocupados com os gastos militares americanos, foi o dia 16 de setembro de 2007 que abriu os olhos do mundo para a empresa. Infelizmente, poucos detalhes foram oferecidos aos especialistas entrevistados de plantão pelas terras tupiniquins, avessos a investigações em minudências.

Um comboio da Blackwater atravessava a área nobre de Mansour, em Bagdá. A polícia iraquiana já havia se acostumado a liberar passagem para os comboios, que defendiam a segurança de altas autoridades americanas. O mais comum, no entanto, era a polícia iraquiana cuidar da segurança de civis iraquianos que se arriscavam a ser fuzilados ao se aproximarem das vidas mais valiosas de seu país: os ocupantes americanos.

O comboio, como de costume, obrigou o policial de trânsito Ali Khalaf Salman a interromper o tráfego. Mas o comboio subitamente deu meia-volta, entrou pela contramão em uma rua de mão única e, repentinamente, um enorme homem caucasiano de bigode começou a disparar.

O primeiro morto foi o estudante de medicina Ahmed Hathem al-Rubale, poliglota de uma família de médicos e fã de futebol, que estava do lado da mãe em um sedã Opel. O policial de trânsito Khalaf correu e acenou para que parassem de atirar. Assustado, o exército mais caro e poderoso resolveu atirar ainda mais. Gritos de cessar fogo vindos dos próprios comandantes da Blackwater não impediram que o tiroteio prosseguisse por cerca de 15 minutos. O massacre só foi interrompido “quando um dos guardas da Blackwater apontou sua arma para o outro que estava atirando, quase dando início a um tiroteio mexicano” (op. cit., p. 15) O fogo, além dos comboios Mamba, também veio dos helicópteros Little Bird da empresa.

“Fotos aéreas da cena mostraram depois que o carro nem sequer havia entrado na rotatória quando foi alvejado pela Blackwater, enquanto a reportagem do New York Times revelava que ‘O carro no qual as primeiras pessoas foram mortas não chegou a se aproximar do comboio da Blackwater até que o motorista iraquiano tivesse sido baleado na cabeça e perdido o controle do veículo’.

(…) Mais tarde, quando os investigadores americanos perguntaram-lhe porque jamais abriu fogo contra os homens da Blackwater, Khalaf disse-lhes: “Não estou autorizado a disparar, e o meu trabalho é cuidar do trânsito”.” (loc. cit.)

Por causa do massacre, a Blackwater seria alvo de críticas do mundo inteiro, causaria a pior crise diplomática entre Washington e Bagdá e seu dono, Erik Prince, prestaria contas ao Congresso americano. Apesar das críticas, o deputado democrata Henry Waxman, como de costume, foi prudente em chefiar a arguição com perguntas técnicas, e não envolver o massacre de Bagdá na discussão.

Apesar da alegação de “legítima defesa” por parte da Blackwater e de Erik Prince no Congresso, além das dezenas de testemunhas, há uma instituição difícil de ser desmentida. A primeira entidade a chegar a Mansour foi o Exército Americano – que não viu sinal de balas ou mesmo armas que não fossem os fuzis da Blackwater.

Como explicar estes erros? O livro de Scahill afirma que ”pesquisas razoáveis” estimam que 25% dos ‘atiradores’ da Blackwater “ingeriam esteróides ou outras substâncias alteradoras do discernimento” (p. 49). Um comportamento ao menos condizente com um comportamento tão brutal.

Não foi a primeira vez em que os “erros estratégicos” da guerra que sempre noticiavam mortes de civis iraquianos envolveram a Blackwater. Antes da carnificina da praça de Mansour, ao menos em 14 outros tiroteios houve participação de agentes da Blackwater. Verificou-se que a empresa cogitou pagar propina aos familiares das vítimas pelo silêncio. Sugerindo um valor de US$ 20 mil, logo perceberam o erro que Bush deveria ter percebido antes: não entupir de dinheiro quem tem uma arma para lhe subornar. Fixaram então um valor mais baixo, de US$ 5 mil, e conseguiram se manter na impunidade por tempo suficiente.

Porém, se um soldado do Exército americano cometesse um crime de guerra (como os vários que foram julgados de Abu Ghraib), iria parar num Tribunal Militar. O que fazer com assassinos americanos cometendo crimes fora do território americano? Erik Prince mostrou o que “poderia” fazer com os erros que custam vidas civis inocentes: demitir os soldados, deixando que eles custeassem ate´a passagem de volta para casa.

Washington, nitidamente, não entregaria cidadãos americanos a tribunais iraquianos. Porém, segundo o especialista em lei militar Scott Horton, “Há claramente jurisdição e base legal para agir contra eles [os mercenários] sob o Ato dos Crimes de Guerra” (p. 46).

No entanto, a impunidade prevaleceu. Como aconteceria com Donald Rumsfeld, a maior paga obtida por crimes sangrentos contra vidas foi uma sumária demissão, como se tudo pudesse voltar a ser como antes logo após isso. Erik Prince vendeu sua empresa, e agora faz treinamento militar nos Emirados Árabes Unidos. É um preço pequeno a se pagar (ou, na verdade, a se ganhar) depois de tantos milhões ganhos e tantas vidas destruídas.

No entanto, ainda fica a lição de Maquiavel, mais atual do que nunca: se Bush não tivesse usado mercenários em seu Exército, muito provavelmente a guerra no Iraque não seria o atoleiro trilionário que foi.

Flavio Morgenstern é redator, tradutor e analista de mídia. Há 10 anos, estava tirando mais uma nota vermelha em Química e vendo as aulas serem oficialmente paralisadas para que se pudesse comemorar o atentado terrorista nos corredores.

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