Meu temor é abrir o jornal na semana que vem e dar de cara com
uma coluna chamando a todos de burros
Também quero celebrar Millôr. Mas em vez de lembrar sua capacidade de nos levar das profundezas ao riso em duas línguas, prefiro virá-lo do avesso.
Se Shakespeare falasse português teria o desprendimento de traduzir "Fechou-se em copas" para "He shut himself in Hearts"? Ou a sutileza de ver na frase "Fazer de conta" a tradução "To make a bead"?
Pois Millôr era, segundo sua versão, "of the turned shovel", da pá virada. Podia dar-se ao luxo de alternar seriedade e leveza com o que bem entendesse. E eu nunca ouvi contar que tenha perdido a estribeira com seu público.
Aliás, estou há quase 30 anos no ramo e não me consta que parte dos atributos do colunista seja chamar para o pau, falar de cima para baixo, dar lição de moral, armar arapuca ou esculachar o próprio leitorado.
E olha que eu sou "Crazy Sperm". E não dou aula de filosofia, você está ligado, não está, meu caro leitor? Não tenho o costume de lidar com aluno, não tenho uma base conceitual para lá de elevada nem sou uma das mais respeitáveis filósofas do cenário acadêmico nacional.
Porém, olha só, vivo de ser colunista há suficientes invernos para saber que há de se ter um certo temperamento para cumprir a função.
Ao longo do tempo, e nós estamos falando de anos, você fatalmente acaba ficando completamente exposto. Quem quiser durar no métier, deve estar preparado para ter suas intenções testadas, pois fatalmente elas estarão visíveis aos olhos do público. Não adianta vir com artimanhas nem ser mestre na matéria sobre a qual está falando.
Se não for absolutamente despido de truques, o cliente vai cair matando. Essa é a beleza da coisa. Especialmente nos dias de hoje, em que leitor fala de igual para igual com presidente da República, ombudsman e o raio que o parta.
Colunismo é sacerdócio, não existe espaço para traquinagem. Não adianta o sujeito querer dar uma de Jorge Kajuru do jornalismo impresso e ter um sonho secreto de ser assassinado em praça pública só para ressuscitar como mártir ao terceiro dia e continuar a pregar seu evangelho aos berros. Chamar atenção é uma droga mais poderosa do que a heroína.
Se eu assinasse coluna no "Diário de Pinheiros" (com todo respeito à publicação), será que eu teria tantos leitores quantos tenho aqui? É esse tipo de questionamento que o colunista deve começar a fazer quando o fracasso começa a lhe subir à cabeça ou quando ele se mete em falsas polêmicas que em nada contribuem para a discussão cultural.
Não sei patavina sobre filosofia e imagino que as cenas de canibalismo descritas por meu colega Pondé na semana passada na "Ilustrada" tenham tido a ver com a simbologia do Sofrimento e da Carne. Meu temor é abrir o jornal na próxima segunda e dar de cara com uma coluna sua chamando a todos os leitores de burros por não terem se dado conta de que o penoso relato se referia a uma passagem manjada da Bíblia ou da mitologia.
Não sei direito qual o objetivo de Pondé, mas não me parece que esteja inaugurando uma nova linguagem. No mínimo, denota falta de poder de síntese ao estender o assunto de uma semana para outra.
Além do mais, esse mergulho no sensacionalismo evidentemente não lhe fez bem aos nervos. Peço que você volte a ser quem era, Pondé. Em vez de se pautar exclusivamente pelo queixume dos leitores, que tal escrever sobre as belas paragens que visita nas viagens a que serve de guia cultural? Olha lá que o Millôr vem puxar o seu pé!
06 de abril de 2012
Barbara Gancia
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