"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quarta-feira, 16 de novembro de 2011

FISCALIZAÇÃO DO GOVERNO, OU PODER PARALELO?

Reproduzido da revista Teoria e Debate nº 94, novembro/2011

No clássico Four Theories of the Press, de Siebert, Peterson e Schramm – consequência indireta do longo trabalho da Hutchins Commission, originalmente publicado no auge da Guerra Fria (University of Illinois Press, 1956) –, uma das funções descritas para a imprensa na chamada “teoria libertária” era exercer o papel de “sentinela” da liberdade.

Em outro livro, também clássico, que teve uma pouco conhecida tradução brasileira (Os Meios de Comunicação e a Sociedade Moderna, Edições GRD, 1966), Peterson, Jensen e Rivers assim descrevem a função:

“Os libertários geralmente consideravam o governo como o inimigo mais temível e tradicional da liberdade; e, mesmo nas sociedades democráticas, os que exercem funções governamentais poderiam usar caprichosa e perigosamente o poder. Portanto, os libertários atribuíam à imprensa a tarefa de inspecionar constantemente o governo, de fazer o papel da sentinela, chamando a atenção do público sempre que as liberdades pessoais estivessem perigando” (p. 151-152).

Nos Estados Unidos, a teoria libertária foi substituída pela teoria da responsabilidade social, mas o papel de fiscalização sobre o governo permaneceu, lá e cá, geralmente aceito como uma das funções fundamentais da imprensa nas democracias liberais representativas.

Jornalismo investigativo

O chamado “jornalismo investigativo”, que surge simultaneamente ao ethos profissional que atribui aos jornalistas a “missão” de fiscalizar os governos e denunciar publicamente seus desvios, deriva do papel de “sentinela” e é por ele justificado. A revelação de segredos ocultos do poder público passou a ser vista como uma forma de exercer a missão de guardião do interesse público e a publicação de escândalos tornou-se uma prática que reforça e realimenta a imagem que os jornalistas construíram de si mesmos.

Com o tempo, a mídia passou a disputar diretamente a legitimidade da representação do interesse público, tanto em relação ao papel da Justiça – investigar, denunciar, julgar e condenar – como em relação à política institucionalizada de expressão da “opinião pública” pelos políticos profissionais eleitos e com cargo nos executivos e nos parlamentos. Tudo isso acompanhado de uma permanente desqualificação da Política (com P maiúsculo) e dos políticos.

Na nossa história política há casos bem documentados nos quais a grande mídia reivindica para si esses papéis. O melhor exemplo talvez seja o da chamada “rede da democracia” que antecedeu ao golpe de 1964 e está descrita detalhadamente no livro de Aloysio Castelo de Carvalho, A Rede da Democracia – O Globo, O Jornal e o Jornal do Brasil na Queda do Governo Goulart(1961-64), NitPress/Editora UFF, 2010.

Mais recentemente, a presidenta da Associação Nacional de Jornais (ANJ) declarou publicamente:

“A liberdade de imprensa é um bem maior que não deve ser limitado. A esse direito geral, o contraponto é sempre a questão da responsabilidade dos meios de comunicação. E, obviamente, esses meios de comunicação estão fazendo, de fato, a posição oposicionista deste país, já que a oposição está profundamente fragilizada. E esse papel de oposição, de investigação, sem dúvida nenhuma incomoda sobremaneira o governo” (“Ações contra tentativa de cercear a imprensa”, O Globo, 19/3/2010, pág. 10).

Prerrogativa única

Como chamou a atenção o governador Tarso Genro, na abertura de um congresso nacional contra a corrupção, organizado pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul, em outubro passado:

“Criou-se um jornalismo de denúncia, que julga e condena. Usam a corrupção como argumento para dizer que as instituições não funcionam e tentar substituí-las (...) atualmente, os casos mais graves são investigados pela mídia e divulgados dentro das conveniências dos proprietários dos grandes veículos (...) fazem condenações políticas de largas consequências sobre a vida dos atingidos, e tomam para si até o direito de perdão, quando isso se mostra conveniente”.

Será que estamos a assistir no Brasil à comprovação prática da afirmação de Paul Virilio: “A mídia é o único poder que tem a prerrogativa de editar suas próprias leis, ao mesmo tempo em que sustenta a pretensão de não se submeter a nenhuma outra”? A resposta a essa questão deve ser dada pela própria Justiça e pelas instituições políticas. A ver.

***

[Venício A. de Lima é sociólogo e jornalista; autor, entre outros, de Comunicação e Cultura: as Ideias de Paulo Freire; 2ª. ed. revista, com nova introdução e prefácio de Ana Maria Freire. EdUnB/Perseu Abramo, 2011]

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