"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

A FÁBULA DO REI ZELOSO E O HORÓSCOPO SUBVERSIVO

Era uma vez um bom rei que resolveu proibir a mentira. Era um homem ilustrado, tolerante e culto. Seu país era parlamentarista, não tinha censura nem presos políticos. O Estado laico, nação feliz. Mas, naqueles dias, o rei estava preocupado. Não se conformava. Os jornais não se cansavam de publicar notícias imprecisas, até maldosas, e seu povo, a quem ele amava tanto, ficava assim, à mercê de invencionices odiosas, que minavam a normalidade institucional. Não, não era justo.

Então, numa manhã de sol, o rei chamou o primeiro-ministro e pediu a ele de modo polido, muito educado, que levasse ao parlamento uma proposta: escrever na Constituição que os cidadãos passariam a ter direito à “informação veraz”. Assim esperava obrigar os jornais a dizer a verdade. Diante de tão cândida encomenda, vinda de um rei tão compreensivo, os parlamentares aquiesceram. Quem haveria de ser contra a “informação veraz”? E quem defenderia a informação mentirosa? Ademais, eles, deputados, eram os que mais penavam com as calúnias desalmadas da imprensa. Ali estava a chance de vingança, que eles tanto esperaram. Era para já.

A emenda constitucional foi aprovada por unanimidade. Imediatamente, providenciou-se a legislação complementar. Se não fosse veraz, a informação não poderia circular. Simples assim. O raciocínio era elementar. Ponto 1: o povo tem direito à “informação veraz”. Ponto 2: quem publica uma informação falsa viola o direito do povo. Portanto, ponto 3: nenhuma informação falsa poderia ser admitida. “Nada a ver com censura”, disse o primeiro-ministro para tranquilizar a nação.


O astrólogo foi preso, acusado de que suas previsões não eram “informações verazes” – e o povo se revoltou

Precavidos, os editores de romance cuidaram de estampar, na capa de cada volume, um alerta: “Este livro é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência”. Com isso, escaparam do rigor legal. Os jornais, as revistas e os noticiários de rádio e televisão não tiveram a mesma sorte. Viram-se soterrados por milhares de ações judiciais, muitas delas movidas pelo próprio governo, que os acusavam de mentirosos. Qualquer coisa era pretexto: um número errado depois da vírgula, uma letra trocada no sobrenome do ministro. Os artigos de opinião ficaram inviáveis, porque as multas saltaram para a estratosfera. Um articulista condenado a pagar US$ 40 milhões por ter ofendido o primeiro-ministro decidiu se exilar em Miami – o lugar era de mau gosto, vá lá, mas na Flórida ele poderia tomar sol na hora que bem entendesse.

O país do rei zeloso ficou mais triste, mais plúmbeo, mas o povo suportou, acreditando que o sufoco era para o bem da verdade. A sombra da censura se adensou, mas a vida seguiu adiante. Até que, numa tenebrosa noite de quarta-feira, o povo se rebelou. Por quê? Por causa dos astros.

Eis o que aconteceu: naquela quarta, um astrólogo famoso, celebridade nacional, que escrevia o horóscopo no maior diário do país foi encarcerado, sob a acusação de que suas previsões não eram “informações verazes”. Pela primeira vez naquele reino, uma revolta de leitores de jornal se converteu num movimento de massa irreversível. A influência dos astros no destino dos mortais podia não ser exatamente “informação veraz”, os líderes do movimento admitiam, mas o povo não abria mão de seu direito sagrado de ler os desígnios zodiacais.

Foi uma primavera cósmica. A multidão venceu. O primeiro-ministro, os parlamentares e o próprio rei tiveram de recuar de suas boas intenções. Tiveram de declarar em praça pública que o direito à informação incluía o direito a informações não necessariamente verazes, como aquelas da astrologia. O país inteiro aprendeu que informação veraz na opinião de uns pode não ser tão veraz assim na opinião de outros. Aprendeu mais: que o direito à informação não é a mesma coisa que direito à verdade. É apenas o direito que cada um tem de buscar a verdade a sua maneira, a partir da liberdade de conhecer todas as versões que ela, a verdade, admite – versões que, por sinal, envolvem elementos de mentira na opinião de uns, mas não na de outros. Aprendeu, enfim, que um país tem direito à informação quando o poder não tem o direito de determinar o que é verdade e o que é mentira.

Com tudo isso, até a imprensa daquele país longínquo melhorou um pouco – e o rei zeloso ficou pasmo.

PS: desde 1978, o “direito à informação veraz” consta da Constituição da Espanha, sem acarretar maiores danos. A partir da década de 1990, entrou nas constituições da Argentina, da Venezuela, da Colômbia e do Equador. Recomenda-se atenção.

EUGÊNIO BUCCI
29 de fevereiro de 2012

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