"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

"É DESCASO E IGNORÂNCIA", DIZ TOXICOLOGISTA SOBREBRASIL NÃO TER ANTÍDOTO PARA CIANETO

 
  • Tárlis Schneider / Acuracia Fotojornalismo / Agência O Globo
    O gás cianídrico liberado na queima da espuma, utilizado para melhorar a acústica da casa noturna, intoxicou a maior parte das vítimas, segundo perícia
    O gás cianídrico liberado na queima da espuma, utilizado para melhorar a acústica da casa noturna, intoxicou a maior parte das vítimas, segundo perícia
A tragédia de Santa Maria (RS) trouxe à tona uma série de questões sobre a segurança dos estabelecimentos e também o atendimento a vítimas de grandes incêndios. Uma delas é por que foi preciso trazer dos Estados Unidos uma substância tão simples - uma vitamina B injetável - para atender os pacientes que, segundo exames, foram intoxicados com cianeto?
"É descaso e ignorância", resume o toxicologista Anthony Wong, diretor do Ceatox (Centro de Assistência Toxicológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo). Segundo ele, é inadmissível que o país não tenha a substância e que seu uso não seja difundido entre médicos e socorristas, como acontece em outras partes do mundo.
A hidroxicobalamina, que faz parte do complexo B, é usada em altas concentrações como antídoto para o cianeto. O gás, o mesmo que já foi usado no extermínio de judeus nos campos de concentração nazistas, é subproduto da queima de diversos componentes usados na idústria, como o plástico, o acrílico e a espuma de poliuretano. Segundo os peritos que investigam o incêndio em Santa Maria, essa última foi usada no isolamento acústico da boate Kiss.
É de estranhar que existam tantos produtos no mercado capazes de exalar um gás letal ao pegar fogo - da fórmica usada em residências aos colchões de espuma mais baratos. Mas o cianeto também pode ser gerado ao se queimar seda, por exemplo. E a substância (não o gás) também é encontrada naturalmente em caroços de pêssego e sementes de maçã. "Uma das principais formas de intoxicação por cianeto no Brasil é pelo consumo de mandioca brava", comenta Wong, que já atendeu dezenas de casos desse tipo.
Capaz de matar em poucos minutos, o cianeto bloqueia a cadeia respiratória das células, impedindo que o oxigênio chegue aos órgãos e tecidos. Quando usada logo após a exposição, a hidroxicobalamina salva vidas. "O efeito é tão rápido que parece até milagroso", conta Wong. Mas isso não é algo que os médicos aprendem na escola: "São poucas as faculdades que oferecem curso de toxicologia e, nas que têm, a matéria é opcional".
Na França, a hidroxicobalamina é utilizada há decadas pelos socorristas em casos de incêndio, sem que seja necessário comprovar a intoxicação por cianeto com exames, que demoram para ser concluídos. Como os benefícios de administrar a terapia logo superam, e muito, os efeitos colaterais, os socorristas usam o antídoto sem pestanejar.
Nos Estados Unidos, a medida também já faz parte do protocolo de atendimento, segundo o médico Cristiano Franke, presidente regional da Sociedade de Terapia Intensiva do Rio Grande do Sul, que fez um curso desenvolvido pela Sociedade Norte-Americana de Terapia Intensiva voltado para o atendimento de vítimas de desastres e catástrofes.
  • O toxicologista Anthony Wong diz que a maior parte dos casos de intoxicação por cianeto no Brasil decorre do consumo de mandioca brava
 
O único laboratório que fabricava a hidroxicobalamina no Brasil abandonou a produção há alguns anos por concluir que o investimento não compensava. Apesar da simplicidade da matéria-prima, trata-se de um kit que precisa ser mantido em temperatura adequada e tem de ser preparado na hora.
Alguns especialistas ouvidos pelo UOLponderam que os casos de intoxicação por cianeto não são tão frequentes no Brasil. Na Europa, por exemplo, o veneno é muito utilizado em tentativas de suicídio, o que não acontece aqui. E nos EUA existe uma preocupação maior com armas químicas - o gás é uma delas. Mas, para Wong, o risco de exposição é o mesmo, não só pelo cultivo da mandioca, mas também pela frequência de acidentes em indústrias.
Banco de antídotos
Segundo o médico Carlos Augusto da Silva, do Centro de Informação Toxicológica (CIT) de Porto Alegre, a falta de interesse comercial na produção de hidroxicobalamina não justifica sua falta no país. "Na França, é o governo quem fabrica a substância", diz o especialista. De acordo com Franke, nos EUA a realidade é a mesma.
Silva aponta a necessidade de um banco de antídotos, até porque faltam no país várias outras substâncias usadas para tratar casos específicos de intoxicação. "Essa é uma reivindicação antiga nossa", enfatiza o médico, que já presidiu a Sociedade Brasileira de Toxicologia (SBTox).
O toxicologista Sérgio Graff, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), concorda com a necessidade do banco, mas lembra que o país é grande e algumas regiões seriam prejudicadas pela demora para transportar o antídoto. "Se a intoxicação ocorrer em uma fazenda ou em outro local de difícil acesso, por exemplo, levará horas para a substância chegar ao destino", comenta.
Para os especialistas, o esperado é que a tragédia de Santa Maria faça o governo brasileiro buscar uma solução para essa deficiência. Questionado pelo UOL, o Ministério da Saúde informou que já discute a aprovação da hidroxicobalamina na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e o protocolo de uso do medicamento no país.
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Incêndio em boate de Santa Maria (RS)200 fotos

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7.fev.2013 - A presidente Dilma Rousseff, o governador do Distrito Federal, Agnelo Queiroz (PT), e ministros participam de ato ecumênico em memória das vítimas do incêndio de Santa Maria (RS), na Catedral Metropolitana de Brasília, na noite desta quinta-feira. A tragédia deixou mais de 230 mortos
Vítimas de Santa Maria
A demora na administração da hidroxicobalamina nas vítimas de Santa Maria foi alvo de críticas por parte de muitos especialistas ouvidos pela imprensa nos últimos dias -os kits chegaram no sábado (2), uma semana após o incêndio. O Ministério da Saúde explica que a decisão de submeter os pacientes ao exame que detecta a exposição ao cianeto coube a cada hospital, e dependeu da condição clínica e evolução das vítimas.
Sérgio Baldisserotto, diretor clínico do Hospital São Francisco de Assis e médico intensivista do Hospital Universitário, em Santa Maria, conta que o exame não é feito em Santa Maria e foi preciso acionar um laboratório de Porto Alegre, por isso a detecção ocorreu apenas 80 horas após o incidente. Ele diz que nem todos os pacientes internados apresentaram sintomas típicos de intoxicação por cianeto. Mas a maior parte tinha níveis elevados do veneno no sangue - não em quantidades letais, mas acima do normal.
  • Edilson Silva / Agência RBS
    O antídoto para cianeto - gás tóxico inalado pelas vítimas do incêndio na Boate Kiss, em Santa Maria - chegou ao Rio Grande do Sul no sábado (2); Questionado pelo UOL, o Ministério da Saúde informou que já discute a aprovação e o protocolo de uso do medicamento no país
Os técnicos do Ministério da Saúde e os médicos envolvidos no atendimentosabiam que não havia garantia de sucesso. Tanto que apenas 30 pacientes receberam a hidroxicobalamina. "Ainda não é possível avaliar se houve alguma melhora especificamente por causa do tratamento", informa Baldisserotto. "Mas é preciso deixar claro que nós sabíamos que o uso do antídoto era tardio. Mesmo assim optamos por usar, como qualquer pessoa de bom senso faria", frisa o médico, que diz não ter queixa alguma em relação ao suporte recebido pelo governo.
Os especialistas também reforçam que o cianeto não pode ser considerado o único vilão do caso de Santa Maria. "Todo incêndio gera um coquetel de gases tóxicos", esclarece o médico do Centro de Informação Toxicológica (CIT) de Porto Alegre. O monóxido de carbono produzido pela queima também pode levar à morte em poucos minutos, já que se liga facilmente à hemoglobina, estrutura do sangue responsável por levar o oxigênio para o corpo inteiro. Além disso, produtos queimados podem gerar amônia e acroleína, entre outros compostos de alta toxicidade.
Treino para catástrofes
Garantir os primeiros socorros, providenciar leitos e ventilação mecânica para todos os pacientes em uma cidade pequena é um desafio até para países desenvolvidos. Mas a verdade é que o Brasil não está preparado para agir em tragédias de grandes proporções. "Uma coisa é atender três ou quatro queimados; já atender 100 ao mesmo tempo requer um preparo específico", ressalta o médico intensivista Ricardo Lima, diretor da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib).
A Amib espera implantar, aqui, o curso americano de catástrofe e desastres, até porque o preparo seria importante para um país prestes a sediar a Copa do Mundo. Para viabilizar a iniciativa em nível nacional, no entanto, a associação espera uma parceria com o Ministério da Saúde.
  • Arte UOL
08 de fevereiro de 2013
Tatiana Pronin
Do UOL, em São Paulo

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