Para Rory Carroll, ex-correspondente em Caracas, Hugo Chávez perdeu a chance de fazer uma verdadeira revolução na Venezuela ao se deixar levar pela sede de poder
Por seis anos, o jornalista irlandês Rory Carroll acompanhou de perto a política venezuelana. Como correspondente para a América Latina do jornal britânico The Guardian, baseado na capital da Venezuela, Rory viu a revolução bolivariana comandada por Hugo Chávez crescer e se transformar. “Caracas deveria me servir de base para a América Latina, mas a melhor das histórias estava bem à minha porta”, escreve Carroll na introdução de seu livro Comandante (Editora Intrínseca, 312 páginas, R$ 29,90), recém-lançado no Brasil. Em entrevista a ÉPOCA, Carroll fala sobre as dificuldades da oposição para vencer as primeiras eleições presidenciais na Venezuela depois da morte de Chávez, marcadas para este domingo, dia 14. Ele ainda afirma que a democracia venezuelana não é plena, e crava: “O chavismo vai sobreviver por muitas décadas”.
ÉPOCA: A oposição tem alguma chance de ganhar as eleições na Venezuela?
Rory Carroll: Sem Chávez, as coisas ficaram melhores e piores para a oposição. Isso é contraditório, mas é verdade. Eles não têm mais de enfrentar os factoides criados por Chávez, nem ele mesmo, que era um ótimo político em campanha. Agora que ele se foi, a oposição não precisará enfrentar seu carisma e seus apoiadores e certamente terá mais espaço para fazer campanha, algo que não tinha. Ao mesmo tempo, pela mesma razão, a repressão e a intimidação aos oposicionistas pode piorar. Porque Maduro, por mais que seja um aprendiz de Chávez e tão popular quanto ele, pode não se sentir tão confortável no poder como Chávez. E então, ele passaria a usar repressão e intimidação para controlar os opositores.
ÉPOCA: Por que a oposição tem tanta dificuldade para vencer as eleições desde que Chávez chegou ao poder?
Carroll: Nos primeiros sete anos de Chávez, a oposição foi tomada por radicais e proselitistas que eram afeitos ao golpismo. Eles tentavam convencer os venezuelanos que eles eram alienados e não sabiam como votar. Esses dinossauros políticos da oposição não tinham uma mensagem nem ofereciam uma perspectiva para os venezuelanos. Eles atacavam Chávez e tentavam dividir o país – e tinham uma mentalidade liliputiana a respeito do poder. Não captaram o tamanho e a importância da figura de Chávez na política venezuelana e perderam a população. Nem todos, claro, mas a grande maioria. Ao oposição melhorou muito de seis anos para cá. Ele ficaram moderados na mensagem, focados nos problemas dos venezuelanos comuns e na economia do país, mais profissionais no ato de fazer política. Mas o problema é que eles têm pouco espaço e perderam ainda mais espaço com as ações de Chávez contra a imprensa livre e privada. O Estado tem um império midiático que dá visibilidade excessiva aos chavistas e faz minguar a oposição. As instituições que deveriam garantir a democracia se tornaram cada vez mais chavistas e excluíram a oposição. Então, as regras do jogo são cada vez mais duras contra a oposição na Venezuela. Hoje eles têm melhores candidatos, melhor estrutura, mais organização, metas mais realistas, mas têm ainda menos chances e espaços nas eleições venezuelanas.
ÉPOCA: Como o senhor avalia o candidato de oposição, Henrique Capriles?
Carroll: Ele faz parte dessa nova safra opositora, mais moderada, inteligente. Capriles é enérgico, um político impressionante quando está em campanha. Sem dúvida é o melhor candidato da oposição. No entanto, duvido que ele consiga sobrepujar Nicolas Maduro nas eleições. Maduro tem uma vantagem arraigada na popularidade de Chávez, o que aliado a suas fortes emoções toda vez que ele fala na morte de Chávez o tornam um candidato imbatível. Se Capriles perder novamente, ele terá de lutar muito para continuar encabeçando a lista de candidatos da oposição, porque seus rivais vão querer tomar seu lugar. Isso é um problema, porque pode rachar a oposição, que se unificou de certa maneira nos últimos anos.
ÉPOCA: A Venezuela pode ser considerada uma democracia plena?
Carroll: A Venezuela ainda tem aspectos de uma democracia: partidos de oposição são legais, têm voz, concorrem nas eleições, têm voz na mídia, ao menos na mídia privada. No dia da eleição, a Venezuela é uma democracia plena, porque as eleições são livres, e as pessoas votam em quem querem. Mas há ressalvas sérias. O governo, de forma cada vez mais explícita, usa seu poder e as instituições para reforçar seu poder e ganhar as eleições. Há abusos de poder e intimidação de opositores. Então, não é uma democracia justa. As eleições na Venezuela são livres, há liberdade de expressão, mas não há justiça na competição entre governo e opositores. Por isso a Venezuela é um sistema híbrido: tem características de democracia, mas não tem as instituições que garantem o bom funcionamento da democracia.
ÉPOCA: Alguém pode preencher o vácuo deixado por Chávez?
Carroll: Não. Chávez era único: seu carisma, sua energia, sua originalidade são insubstituíveis. Nicolas Maduro tenta imitar ao máximo Chávez, faz mímicas de seus gestos, de sua maneira de andar, de falar, de seus discursos. Mas, a cada vez que Maduro faz isso, fica mais nítido que Maduro não é Chávez. E ninguém, conseguirá sê-lo. Ninguém pode reproduzir a conexão quase mística que Chávez tinha com os pobres. Tudo que Maduro pode desejar é que o controle institucional e o nível de patronato que Chávez deixou sejam suficientes para o chavismo se manter no poder.
ÉPOCA: Qual legado Chávez deixou para o país?
Carroll: São três legados bem diferentes. O primeiro é maior atenção à pobreza e aos pobres. Chávez colocou a pobreza no coração do debate político, em um país historicamente dominado por oligarquias. Ninguém conseguirá governar a Venezuela novamente sem dar a atenção necessária às pessoas mais carentes. O segundo legado é a polarização extrema. A Venezuela se tornou um país dividido em três: chavistas, anti-chavistas e a turma do meio, que flutua de acordo com a circusntância. Mas o embate enmtre chavistas e anti-chavistas emperra a política do país. O terceiro legado é o que chamo de petrodisfunção: uma excessiva dependência do petróleo que causa uma disfunção profunda na economia venezuelana. Esse último legado fez os anos de Chávez serem um desperdício.
ÉPOCA: Como assim?
Carroll: Costumo dizer que se Chávez governasse como fazia campanhas, a Venezuela seria uma potência. Chávez teve uma oportunidade extraordinária. Ele tinha o dom da política: era um comunicador hábil e charmoso e um estrategista político inigualável. Ele poderia ter feito muito com os bilhões de dólares derivados do boom petrolífero da Venezuela que durou uma década. As pessoas estavam famintas por algo novo, por uma maneira nova de fazer as coisas. Havia esperança de que Chávez pudesse produzir algo novo diante desse cenário, mas ele entregou um país com uma economia em ruínas. Por isso digo que os anos Chávez foram um desperdício.
ÉPOCA: O senhor diz em seu livro que Chávez era um “ilusionista”. Por quê?
Carroll: Ele era um ilusionista porque ele controlava de forma direta os lucros que vinham do petróleo para produzir truques e pequenos milagres. Isso o permitia patrocinar uma série de benfeitorias sociais que o transformavam em uma espécie de Deus, que podia fazer qualquer coisa, quando quisesse. E de certa forma podia mesmo, mas isso era uma ilusão, porque ele não criou um sistema de governo em que os venezuelanos podem aproveitar os benefícios sociais do Estado a longo prazo, de maneira sustentável e prolongada. Além disso, ele era um mestre da mídia. Suas aparições na televisão e no rádio eram um verdadeiro show. Ele podia atrair atenção as suas palavras e assim criar distrações, em uma espécie de circo chavista, em que todos prestavam atenção a ele, mesmo os oposicionistas. Com o tempo, o teatro se tornou o foco e suplantou as discussões mais sérias e as reais necessidades do país. Chávez transformou sua presidência em uma performance.
ÉPOCA: O chavismo vai sobreviver sem Chávez?
Carroll: Nicolas Maduro não tem a desenvoltura e o molejo de Chávez, mas ele é um bom aprendiz. Basta ver seus discursos. Sim, o chavismo vai sobreviver – e por muitas décadas. Haverá várias versões do chavismo. Porque o chavismo é ideologicamente amorfo. Ele nunca foi propriamente definido, como ideologia, por Chávez. Então, vai se criar um sistema como o peronismo, na Argentina, em que não há uma ideologia pura por trás daquilo. Os chavistas têm enormes fatores a seu favor. Apesar de não contarem mais com seu carisma, eles ainda têm o fantasma de Chávez, e em curto prazo esse fantasma terá o mesmo efeito do seu carisma. Em médio e longo prazos, a manutenção desse Estado tutelador e patronal pode ser suficiente para manter os chavistas no poder.
ÉPOCA: Quais os maiores desafios da Venezuela em um futuro próximo?
Carroll: A economia. A Venezuela hoje é uma economia devastada, que importa quase tudo e não produz nada além de petróleo. O país caiu em uma armadilha populista do chavismo. Parte da população se sente bem e está feliz, porque sua vida melhorou, as pessoas têm acesso a bens de consumo e melhoraram de vida. Por outro lado, a infraestrutura da Venezuela piorou em dez anos. Os preços, a moeda, os produtos, toda a vida econômica é controlada pelo Estado e pela burocracia, o que estrangula a produtividade do país e mantém as pessoas atreladas e dependentes do governo e do petróleo. Isso é muito difícil de resolver em curto prazo. Não acho que a Venezuela seja capaz de se livrar desses problemas em um futuro próximo.
ÉPOCA: Há risco de ocorrer um golpe, como o de 2002, caso o chavismo continue ganhando as eleições?
Carroll: Dado o histórico de golpes militares da Venezuela e da América Latina, um golpe de Estado nunca pode ser descartado. Mas, em curto prazo, é improvável. Se os problemas econômicos se tornarem mais sérios, a questão da violência piorar e os políticos não conseguirem reverter a situação, isso pode deixar a população insatisfeita. Isso seria um cenário propício para se aventar um golpe militar par derrubar o chavismo. Mas isso seria péssimo para os venezuelanos. A história prova que golpes de Estado são sempre um erro, nunca uma solução, e trazem mais problemas.
ÉPOCA: O senhor esteve com Chávez algumas vezes. Como ele era?
Carroll: Chávez era um comediante. Pessoalmente, ele era charmoso, carismático, assim como era em frente às câmeras. Mas, de repente, do nada, ele se transformava em um valentão intimidador, uma figura pouco atrativa. É difícil dizer quem ele era, na verdade. Ele tinha uma energia infindável, trabalhava 18, 19 horas por dia. Falava com todos os ministros. Com as pessoas, era capaz de grande sutileza e sofisticação, tinha um talento didático para falar sobre as coisas. Mas era capaz de humilhar e devastar pessoas. Eu diria que ele tinha boas intenções, queria melhorar a vida dos pobres e aumentar a inclusão das pessoas. Mas, com o tempo, seu desejo de poder e seu ego sabotaram suas boas intenções. Ele se tornou insaciável pelo poder e quis sufocar a oposição para se perpetuar no poder e fortalecer seu governo. Essa foi a tragédia de Chávez.
ÉPOCA:Hugo Chávez exerceu uma liderança na esquerda latino-americana na última década. Alguém pode ocupar seu lugar?
Carroll: Não acho que haja ninguém a altura de Chávez na América Latina para comandar a esquerda. Chávez foi o pioneiro da maré de esquerda que invadiu a América Latina na última década. Trata-se de uma esquerda peculiar, mais nacionalista e populista do que propriamente de esquerda. Sem eles, provavelmente teriam surgido outros líderes de esquerda, mas talvez não tão cedo ou com tanta força. Sua estratégia de reescrever a Constituição, criar referendos e abolir os limites de mandato deu um modelo para Evo Morales, Rafael Correa e Daniel Ortega. Ele também encorajou Lula e os Kirchners a tomar fortes posições nacionalistas. Chávez foi causa e sintoma dessa tendência regional. No entanto, em muitos aspectos os alunos foram mais inteligentes do que o mestre. Rafael Correa e Daniel Ortega têm sido muito mais pragmáticos e evitam sua arrogância. Eles estão buscando modelos mais sustentáveis.
13 de abril de 2013
RODRIGO TURRER - Epoca
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