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A extrema esquerda se distingue da esquerda por uma questão de grau. Já a extrema direita e a direita acabam se revelando incompatíveis em essência.
A patologia depende da fisiologia. Não é possível saber se um órgão está doente quando não se tem ideia de como ele deveria funcionar normalmente. O mesmo princípio vigora na análise política. Não se pode falar de uma doença política da democracia quando não se tem uma ideia clara do que é uma democracia normal.
Felizmente para o estudioso, as democracias normais não somente existem, mas são mesmo as nações mais visíveis e influentes do mundo. Malgrado as forças patológicas que permanentemente as assaltam desde dentro e desde fora, e malgrado a inabilidade com que por vezes se defendem, essas democracias ainda exibem uma vitalidade invejável.
A Inglaterra e os EUA são as mais antigas. Alguns países escandinavos consolidaram-se como democracias normais desde a segunda metade do século 19. A Alemanha, a Itália e a França, após várias tentativas falhadas, só conseguiram se estabilizar nessa condição após o término da II Guerra Mundial. A democracia israelense nasceu junto com o próprio Estado de Israel, em 1947.
As democracias normais mais novas são a Espanha, Portugal e alguns países do Leste Europeu libertados do jugo comunista no começo dos anos 90. Material para estudo e comparação, portanto, não falta. Só um cretino ou alguém interessado em confundir propositadamente as coisas pode ignorar o que é normalidade democrática, ou chamar por esse nome algo que não é nem democracia nem muito menos normal.
Que é, no período histórico nascido desde a Revolução Americana, uma democracia política normal no Ocidente? Se o conceito genérico de "democracia" pode ser definido por traços meramente jurídico-formais, como a existência de uma ordem constitucional, partidos políticos, liberdade de imprensa etc., a mera presença desses traços é comum às democracias saudáveis e as doentes. A normalidade do sistema democrático tem de ser aferida por diferenças substantivas que o mero formalismo não apreende.
Normalidade democrática é a concorrência efetiva, livre, aberta, legal e ordenada de duas ideologias que pretendem representar os melhores interesses da população: de um lado, a "esquerda", que favorece o controle estatal da economia e a interferência ativa do governo em todos os setores da vida social, colocando o ideal igualitário acima de outras considerações de ordem moral, cultural, patriótica ou religiosa. De outro, a "direita", que favorece a liberdade de mercado, defende os direitos individuais e os poderes sociais intermediários contra a intervenção do Estado e coloca o patriotismo e os valores religiosos e culturais tradicionais acima de quaisquer projetos de reforma da sociedade.
Representadas por dois ou mais partidos e amparadas nos seus respectivos mentores intelectuais e órgãos de mídia, essas forças se alternam no governo conforme o resultado de eleições livres e periódicas, de modo que os sucessos e fracassos de cada uma, na sua passagem pelo poder, sejam mutuamente compensados e tudo concorra, enfim, para o benefício da população.
Entre a esquerda e a direita estende-se uma zona indecisa de mesclagens e transigências, que podem assumir a forma de partidos menores independentes ou consolidar-se como política permanente de concessões mútuas entre as duas facções maiores. É o "centro", que se define precisamente por não ser nada além da própria forma geral do sistema indevidamente transmutada, às vezes em arremedo de facção política, como se numa partida de futebol o manual de instruções pretendesse ser um terceiro time em campo.
Nas beiradas do quadro legítimo, florescendo em zonas fronteiriças entre a política e o crime, há os "extremismos" de parte a parte: a extrema esquerda prega a submissão integral da sociedade a uma ideologia revolucionária personificada num Partido-Estado, a extinção completa dos valores morais e religiosos tradicionais, o igualitarismo forçado por meio da intervenção fiscal, judiciária e policial.
A extrema direita propõe a criminalização de toda a esquerda, a imposição da uniformidade moral e religiosa sob a bandeira de valores tradicionais, a transmutação de toda a sociedade numa militância patriótica obediente e disciplinada. Não é o apelo à violência que define, ostensivamente e em primeira instância, os dois extremismos: tanto um quanto o outro admitem alternar os meios violentos e pacíficos de luta conforme as exigências do momento, submetendo a frias considerações de mera oportunidade, com notável amoralismo e não sem uma ponta de orgulho maquiavélico, a escolha entre o morticínio e a sedução.
Isso permite que forjem alianças, alternadamente ou ao mesmo tempo, com gangues de delinquentes e com os partidos legítimos, às vezes desfrutando de uma espécie de direito ao crime. Não é uma coincidência que, quando sobem ao poder ou se apropriam de uma parte dele, os dois favoreçam uma economia de intervenção estatista. Isso não se deve ao slogan de que "os extremos se tocam”" mas à simples razão de que nenhuma política de transformação forçada da sociedade se pode realizar sem o controle estatal da atividade econômica, pouco importando que seja imposto em nome do igualitarismo ou do nacionalismo, do futurismo utópico ou do tradicionalismo mais obstinado.
Por essa razão, ambos os extremismos são sempre inimigos da direita, mas, da esquerda, só de vez em quando. A extrema esquerda se distingue da esquerda por uma questão de grau (ou de pressa relativa), pois ambas visam em última instância ao mesmo objetivo. Já a extrema direita e a direita, mesmo quando os discursos convergem no tópico dos valores morais ou do anti-esquerdismo programático, acabam se revelando incompatíveis em essência: é impossível praticar ao mesmo tempo a liberdade de mercado e o controle estatal da economia, a preservação dos direitos individuais e a militarização da sociedade.
Isso é uma vantagem permanente a favor da esquerda: alianças transnacionais da esquerda com a extrema esquerda sempre existiram, como a Internacional Comunista, o Front Popular da França e, hoje, o Foro de São Paulo. Uma "internacional de direita" é uma impossibilidade pura e simples. Essa desvantagem da direita é compensada no campo econômico, em parte, pela inviabilidade intrínseca do estatismo integral, que obriga a esquerda a fazer periódicas concessões ao capitalismo.
Embora essas noções sejam óbvias e facilmente comprováveis pela observação do que se passa no mundo, você não pode adquiri-las em nenhuma universidade brasileira nem na leitura dos comentários políticos usuais, pois praticamente todo mundo que abre a boca para falar de política nesse país, com exceções tão minguadas quanto inaudíveis, é parte interessada e beneficiária da confusão geral, a começar pelos professores universitários e comentaristas de mídia.
No próximo artigo, aplicarei os conceitos aqui resumidos à análise da democracia brasileira.
Publicado no Diário do Comércio.
Escrito por Olavo de Carvalho, 05 Outubro 2011
Um painel político do momento histórico em que vivem o país e o mundo. Pretende ser um observatório dos principais acontecimentos que dominam o cenário político nacional e internacional, e um canal de denúncias da corrupção e da violência, que afrontam a cidadania. Este não é um blog partidário, visto que partidos não representam idéias, mas interesses de grupos, e servem apenas para encobrir o oportunismo político de bandidos. Não obstante, seguimos o caminho da direita. Semitam rectam.
"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)
"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)
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