"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



segunda-feira, 26 de março de 2012

HISTÓRIAS DO JORNALISTA SEBASTIÃO NERY

Quem ficou de fora
J.J. Seabra, depois de Rui Barbosa, foi o político que melhor ficou morando no coração dos baianos no século passado. Duas vezes governador, deputado, senador, ministro da Justiça, candidato à vice-Presidência da República pela oposição, líder da resistência da Bahia diante das arbitrariedades do tenente interventor Juracy Magalhães, contra o qual escreveu um livro famoso, Seabra continuou no plantão da democracia como constituinte de 1934 e deputado até 1937.

Quando Getúlio deu o golpe do Estado Novo, em 1937, Seabra pegou o navio no Rio e voltou para Salvador. A cidade estava no cais para esperar seu grande líder. Cosme de Farias, rábula dos pobres e porta-voz de Seabra no Estado, chegou atrasado ao porto e não conseguiu vencer a multidão para atingir a escada, subir ao convés e abraçar Seabra a bordo.

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SEABRA

Cosme de Farias não teve dúvidas. Foi à janela do edifício mais próximo e gritou emocionado:

– Baianos, vai descer J.J. Seabra, o santíssimo sacramento da democracia! Fiquem todos de joelhos, porque diante do santíssimo sacramento os homens se ajoelham!

Cosme de Farias passou, subiu a escada, abraçou Seabra lá em cima e desceu com ele para serem levados, os dois, na frente do povo.

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VELÓRIO

Durante muitos anos principal líder político do Estado (nome da rua mais popular de Salvador, a Baixa do Sapateiro), Seabra, nascido em 1855, morreu em 1942, aos 87 anos, na ditadura de Vargas. Renato Onofre Pinto Aleixo, general, interventor, ficou com medo das manifestações populares.

Levaram o corpo para o auditório da Faculdade de Medicina da Bahia, no Terreiro de Jesus, e começou o velório. Lá estavam Simões Filho, Luís Viana, Nestor Duarte, Orlando Gomes, Aliomar Baleeiro, Aluisio de Carvalho Filho, Josafá Marinho, a resistência liberal e democrática baiana. Desde 1937 Octavio Mangabeira estava no exílio.

O interventor, fardado, com toda a sua pose e medalhas, mantinha o ambiente em um clima duro, tenso, à beira da explosão. O povo chegando, o salão enchendo e aquele sufoco no ar. Todo mundo esperando o grito que ia arrebentar o turvo silêncio, as almas e a repressão.

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PIXOXÓ

Meu amigo Nilson de Oliva César, o Pixoxó, 18 anos, um dos líderes dos estudantes mobilizados contra a ditadura, parente do sinuoso e estranho ministro paulista Aloísio Mercadante de Oliva, estava na entrada do salão e sentiu que o momento era aquele (“Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”). Encheu os pulmões e gritou estrepitosamente:

– Viva Seaaaaaabra!

O salão explodiu em um “viva!” interminável. O general percebeu o começo da reação, deu dois murros na mesa e berrou:

– Respeitem o morto!

Houve um segundo de total silêncio.

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SIMÕES

De repente, lá de trás, um velho magro, de cavanhaque, colete e bengala, gritou com sua voz fanhosa, mas inconfundível:

– Querem enterrar o Seabra como se uma beata fôra. Viva Seabra!

Era Simões Filho, jornalista, diretor de A Tarde. Ninguém segurou mais. A multidão avançou sobre o caixão, pegou-o, levantou-o e saiu carregando pela Praça da Sé, Rua Chile, Avenida Sete, Campo Grande, até o Cemitério do Campo Santo. A cada 500 metros, um discurso.

O enterro de Seabra foi o maior comício da Bahia contra a ditadura.

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LULA

Os verdadeiros homens públicos entram na História naturalmente. Por força de suas atitudes diante dos acontecimentos, que criam e alimentam suas lideranças. Não precisam da fraude para arrombar as portas. O filme sobre Lula, por exemplo, ninguém sabe se é um documentário ou uma minissérie da Globo. Amigos de Lula me dizem que, se o filme é um documentário, é uma fraude. E se é uma ficção, é um desastre.

Uma pena. Lula tem uma bela história, das mais fascinantes da política brasileira. Como diria Darcy Ribeiro, sua vida é uma lança cravada na lua. Para contá-la, bastava ser fiel à verdade. E apareceu na tela toda fraudada. Talvez nenhum filme brasileiro tenha sido tão censurado durante a ditadura quanto o filme sobre Lula foi em pleno governo dele.

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CENSURA

A censura não veio dos Barreto. Eles queriam contar tudo, com a maior naturalidade. A censura saiu de dentro do palácio do Planalto, do Palacio da Alvorada e de São Bernardo. Por que raspar a primeira filha? Por que matar Frei Beto, o maior amigo, se nem a ditadura teve coragem? No Globo, o indignado Ancelmo Gois se escandalizou:

“Quem ficou de fora do filme Lula, o Filho do Brasil foi Frei Betto, companheiro do presidente, que virou quase ‘persona non grata’ no governo. Betto estava na casa de Lula quando o sindicalista foi preso”.

Sebastião Nery
26 de março de 2012

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