Se a metodologia não for modernizada e unificada em um mesmo padrão nacional, a confiabilidade da contagem de votos no país que se gaba de exportar democracia ficará cada vez mais capenga
A eventualidade de esse sistema vir a ser substituído pelo voto direto, se é que algum dia isso ocorrerá, envolve um debate bem mais profundo, complexo e difícil do que a eterna reforma política prometida no Brasil. Pode esperar mais uma geração.
É a forma neurastênica, insatisfatória, incompreensível e inviável na qual se transformou o ato de votar nos Estados Unidos que exige uma reforma imediata.
No início da madrugada de quarta-feira, quando Barack Obama emergiu em Chicago para seu primeiro pronunciamento como presidente reeleito, eleitores da Flórida ainda faziam fila de muitas horas para depositar uma cédula já desprovida de peso.
Quase dois séculos atrás, ao ser instituído, o dia de votação para presidente dos Estados Unidos seguiu um critério. A nação de então comungava de uma mesma fé cristã e a ideia de um compromisso não religioso aos domingos era imprópria.
Votar numa segunda-feira, logo no início da semana, seria perfeito não fossem as distâncias e dificuldades de locomoção da época. Reservou-se então a segunda-feira para chegar até uma urna, e a data oficial de exercer o direito ao voto passou a ser uma terça-feira. A primeira terça-feira de novembro.
Isso não faz mais sentido. O voto não sendo obrigatório, nenhum empregador dispensa os funcionários que queiram votar. As filas começam a se formar de madrugada, à espera da abertura dos postos eleitorais às 6 da manhã, e terminam noite adentro, com eleitores que encerraram sua jornada de trabalho.
Na Flórida, as cédulas tinham 10 páginas, para comportar escolhas para presidente, deputado, senador e referendos locais.
Em vários estados, decisões judiciais conflitantes sobre a obrigatoriedade ou não da apresentação de documentos com foto levaram eleitores e mesários à beira de ataques de nervos. Manobras para tentativas de fraude não faltaram.
A seção eleitoral 04 de Nova York foi exemplar dessa barafunda. Ela estava instalada num dos prédios da City University, nas esquinas da Rua 80 com East End Avenue.
No abastado Upper East Side, portanto. Neste naco da cidade, que vai do Central Park até o Rio East e da Rua 59 até a 96, residem 200 mil pessoas. É a única zona de Manhattan onde os republicanos constituem mais de 20% do eleitorado e é tida como a de maior concentração de fortuna pessoal.
No passado, ali se instalaram dinastias como os Carnegie, os Frick, os Vanderbilt, os Kennedy, os Whitney e seu corolário de museus.
Afixados nas paredes da 04 e espalhados por toda parte da sala havia folhetos explicativos dos Direitos do Eleitor. Além do texto em inglês, uma versão em espanhol, é claro.
Mas havia também, do mesmo tamanho e com destaque igual, uma versão em chinês, outra em coreano e uma última em bengalês, a sexta língua mais falada do mundo porém oficial só em Bangladesh e parte da Índia.
Só que os residentes do Upper East Side são 88% brancos. Asiáticos, apenas 6,1%; hispânicos 5,6%; e a população negra não passa de 2,3%. Desperdício de falso multiculturalismo, portanto.
Até porque, à medida que chegavam para votar, os eleitores iam sendo informados da situação real apenas em curto e bom inglês: “All the machines are down.” Equivalente ao nosso “o sistema está fora do ar”, o aviso se referia a duas scanners plantadas no fundo da sala e essenciais para a votação.
O ato de votar, ali, se dava em várias etapas. A primeira fila desembocava num mesário, a quem o eleitor enunciava o nome sem precisar mostrar qualquer documento de identidade. Uma segunda fila para receber a cédula, do tamanho de uma folha de papel A4. Nova fila de espera até vagar uma das cabines para preencher manualmente a cédula.
Feito isso, com todas as filas se enroscando na mesma saleta, última fila para inserir a cédula preenchida na scanner, para o registro oficial do voto.
Dado que as scanners ficaram fora do ar das 6 às dez da manhã, a alternativa foi dobrar a cédula, colocá-la num envelope, fechá-lo passando saliva na dobra e entregá-lo a um dos mesários. Ou então insurgir-se contra tudo aquilo e bater em retirada sem votar.
“É uma indignidade. Sequer posso ter certeza de que meu voto será efetivamente computado. Parece eleição de 70 anos atrás”, irritou-se Emma Firtsch, de 86 anos, que se locomovia de andador. Os idosos eram os mais decididos a não desistir.
John Mete, o inspetor da seção 04, se declarou desolado. “Montamos um esquema que ao invés de simplificar problemas parece estar criando outros tantos”, desabafou durante uma pausa para fumar na rua.
O próprio Barack Obama, ao fazer o discurso da vitória para seu público em júbilo na madrugada de quarta-feira, fez referência à crescente paralisia do sistema atual. “Precisamos consertar isso, e rápido”, prometeu.
Ele sabe que, se a metodologia não for modernizada e unificada em um mesmo padrão nacional, a confiabilidade da contagem de votos no país que se gaba de exportar democracia ficará cada vez mais capenga. E 2016 está logo ali.
Pelo menos esse problema ele não tem desculpa para não consertar. Já o abismo fiscal, o crescimento econômico, a muralha do antagonismo ultraconservador...
Em tempo: a notícia boa é que perdeu quem apostou na vitória do dinheiro sobre o voto.
Os bilhões investidos na campanha de Mitt Romney foram para o ralo.
11 de novembro de 2012
Dorrit Harazim é jornalista, O Globo
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