A procuradora do Distrito Federal, Roberta Fragoso Kaufmann, está convicta de que a Justiça poderá exercer o seu papel na plenitude, bastando apenas combater a ideia de impunidade, que é o sentimento geral do brasileiro. É preciso que a população volte a acreditar no Poder Judiciário, não sendo admissível “esperar vinte, quinze anos para que um réu confesso comece a executar a pena”.
Ela acrescenta que a lentidão é, em parte, causa desse sentimento de impunidade, que considera muito mais grave do que, “eventualmente, alguma lesão a um direito individual”. Na entrevista, também afirma que algumas leis no Brasil são simbólicas, representando apenas o interesse de transmitir para a população uma imagem positiva, citando como exemplo a implementação de cotas raciais no país, “que tem a função de passar para a população a imagem de que aquele governador é um governador politicamente correto, engajado com as minorias, mas que, na verdade, não se apercebe dos danos que essa norma pode ocasionar”.
Professora de Direito Constitucional e da Escola do Ministério Público, ela está sempre pronta para debater sobre a impunidade, um tema que a empolga.
Por Marcone Formiga
É possível julgar com a sobrecarga de trabalho a que os juízes estão expostos?
Roberta Fragoso Kaufmann: Sobrecarga de processo de juízes dificulta bastante, sem dúvida nenhuma. Hoje, o grande problema do Judiciário, em termos de morosidade e em termos de impunidade, é a sobrecarga que acontece no Supremo Tribunal Federal. Talvez, se houvesse uma diminuição nas competências originárias no STF, a situação judiciária, como um todo, ficasse melhor, no sentido de que a Corte teria que julgar grandes temas, e os temas de varejo, ou seja, os temas que não têm importância nacional, ficariam a cargo apenas dos juízes. O problema é que hoje o Supremo tem muitas competências originárias.
Por exemplo.
Kaufmann: Habeas-corpus, recursos extraordinários, ações diretas de inconstitucionalidade, reclamações, mandados de injunção… Isso termina inviabilizando todo o Judiciário, porque a pessoa só vai ser condenada depois que o último recurso for julgado, e isso significa, na prática, mais de uma década após o julgamento inicial. Inclusive se desprestigia o julgamento que um juiz de primeira instância realizou, e ele se sente um pouco intimidado, porque a decisão que ele teve, por mais primorosa que tenha sido, nem sequer é considerada, quando a questão chega ao Supremo.
Por que a Constituição de 1988 é alvo de tantas críticas?
Kaufmann: Porque é uma Constituição muito analítica, ela diz demais. E, nesse sentido, termina sendo uma Constituição apenas simbólica, passando uma imagem para a população, que foi feita muito mais “para inglês ver” do que efetivamente para ser cumprida. O que ela protege, protege de uma maneira excessiva, e não tem condições materiais de ser concretizada. Nesse sentido, lembro-me de uma frase do Roberto Campos, quando ele afirmou que a Constituição brasileira prometeu uma seguridade social da Suécia, com recursos de Moçambique. Não adianta apenas colocar a norma, sem ter condições de concretizar aquilo que a norma prevê. E isso é pernicioso para todo mundo, porque, no final, dá aquela sensação e sentimento que as normas existem, mas que elas são cumpridas ao sabor da ocasião.
Como assim?
Kaufmann: Para mim, isso revela, muitas vezes, uma falha de caráter da pessoa, dela não ser capaz de fazer uma escolha e assumir a responsabilidade que aquela escolha ocasionar. Nesse sentido, eu acho que a Constituição demonstra isso também, uma vontade de garantir sempre direitos e direitos, e ficam faltando os deveres. O cidadão acha que até a felicidade dele é um dever do Estado. Tudo é dever do Estado, como se nada ele pudesse conseguir. Se ele, infelizmente, nasceu pobre, se não consegue um bom emprego, a culpa é do Estado! Existe uma cultura de sempre atribuir a um terceiro a responsabilidade pelas suas escolhas malfeitas.
O que fazer, então?
Kaufmann: Por que não sai de frente da televisão e vai estudar e tentar um emprego melhor? Por que não batalha? Por que não consegue se esforçar para poder contar melhor as consequências dessa sua escolha e conseguir uma vida melhor? Existe uma cultura aqui de que todo mundo é responsável pela vida de todo mundo, essa diluição de responsabilidades individuais faz com que as pessoas se alienem e se acomodem. Esse é um problema sério no Brasil.
O que falta para a Justiça exercer o seu papel na sua plenitude?
Kaufmann: Inicialmente, o que falta é combater essa ideia de impunidade, que é o sentimento geral do brasileiro. As pessoas não acreditam mais na Justiça, acham que ela é lenta demais. Acredito particularmente na PEC que o ministro Cezar Peluso, presidente do STF, apresentou: que os recursos que cheguem, não possam impedir a execução do julgado, as condenações têm que ser realizadas e têm que ser executadas logo após a decisão do Tribunal de Justiça. Com isso, a gente prestigia a atuação do juiz de primeiro grau, que certamente é o que está mais perto do povo. Prestigia-se também o julgamento do Tribunal de Justiça. Na verdade, a gente faz com que a população volte a acreditar no Poder Judiciário, porque esperar vinte, quinze anos para que um réu confesso comece a executar a pena, como é agora, causa um sentimento de impunidade perante todos e, isso, do meu ponto de vista, é muito mais grave do que, eventualmente, alguma lesão a um direito individual.
Qual é a sua conclusão desse gesto?
Kaufmann: Essa postura do Supremo é muito garantista, prevalece hoje a ideia de que a pessoa tem a presunção de inocência até que o último recurso seja julgado. Entretanto, ao agir assim, o STF, de fato, protege ao máximo os direitos individuais, mas se esquece da própria ideia de interesse público, que é a ideia de diminuir e combater a impunidade no Brasil.
A senhora concorda que as leis brasileiras são malfeitas, como afirmou o ex-ministro Francisco Rezek?
Kaufmann: Concordo, porque as leis no Brasil são muito simbólicas, então não existe nenhuma preocupação com o cumprimento e com a resolução do problema efetivo. O que se quer, muitas vezes, é passar uma imagem para a população. Por exemplo, eu poderia citar a que implementa cotas raciais no Brasil, que tem a função de passar para a população a imagem de que aquele governador é um governador politicamente correto, engajado com as minorias, mas, na verdade, eles é que não se apercebem dos danos que essa norma pode ocasionar. E não só isso! Por exemplo, todos nós sabemos o caos que é a educação pública no Brasil.
Mas o que falta é ensino público eficiente no país…
Kaufmann: Então, em vez de se preocupar em realizar um ensino público de qualidade para poder dar condições iguais para que todos possam passar no vestibular, ou almejar um concurso público melhor, quando você faz uma norma simbólica, o que você diz, na verdade é: eu não estou nem um pouco preocupado com a resolução do problema, estou preocupado é com as próximas eleições. Esse é o grande problema do Brasil! Por exemplo, essa política de cotas em universidades, elas não ampliam o número de vagas existentes. O número de vagas vai continuar rigorosamente o mesmo. Vamos supor, se fossem 100 vagas, reservaríamos 20 vagas para negros e 80 vagas para os demais.
Mas qual é o grande problema?
Kaufmann: O problema que se coloca é o seguinte: por que você não amplia o número de vagas, se você quer um grupo minoritário? Ou então, por que não melhora as condições de um ensino público de qualidade, para que todos tenham condições de concorrer na mesma situação? Mas isso não é interessante, o que eu quero dizer é que a legislação, hoje, no Brasil, apenas quer passar uma imagem. Dou outro exemplo, o de um decreto da governadora do Pará, à época em que foi descoberto que uma menina ficou na cadeia junto com dezenas de homens. Na mesma hora em que a notícia veio a público, que essa menina tinha ficado na cadeia de uma maneira totalmente ofensiva à dignidade dela, obviamente, sendo estuprada diuturnamente, ela baixou um decreto dizendo que mulheres e homens não podem ficar juntos na mesma cela.
Ou seja, descobriram a roda?
Kaufmann: Nada mais simbólico, porque é obvio que não podem ficar juntos. Já existe a lei de execução penal que diz a mesma coisa. Mas qual é a preocupação dela? A preocupação dela, quando fez o decreto, não foi de resolver o problema, mas de passar uma imagem para a população de que ela era uma pessoa que não tinha nada a ver com aquilo, que não estava nem sabendo o que estava acontecendo na sua delegacia, o que é totalmente falso!.
Qual é a sua visão de tudo isso?
Kaufmann: O que a gente vê é a lei sendo utilizada como massa de manobra para poder convencer a população ignorante de que alguma coisa está sendo feita em prol dos direitos dela, mas na prática não passa de um jogo de palavras, porque nada daquilo é implementado. Cada vez mais, existe uma nova emenda constitucional para inserir um novo direito ao salário mínimo. Mas se o salário mínimo não consegue sequer cuidar da alimentação e da moradia, então, como pode colocar inúmeros outros direitos dentro do salário, se nem o primeiro deles consegue ser implementado?
Faz sentido afirmar que no Brasil só vai para a cadeia preto, pobre e prostituta?
Kaufmann: O que eu concordo, é que no Brasil só vai para a cadeia pobre, mas, infelizmente, a maioria pobre do Brasil é negra, então, por isso, o negro se legitima dentro dessa frase, mas não por conta da cor da pele, e sim porque no Brasil, lamentavelmente, ainda existe uma correlação entre a pobreza e a cor da pele. A prostituta a que você se refere está relacionada à pobreza, e não à profissão mais antiga que se tem conhecimento no mundo.
Na sua opinião, o que é preciso para se aprimorar a democracia no Brasil?
Kaufmann: A democracia precisa ser aprimorada a partir de uma reforma política. Especialmente, eu sou super favorável à ideia do voto distrital – fazer com que a população consiga cobrar mais efetivamente dos seus representantes. O modelo atual é um modelo péssimo. É um modelo que faz com que a pessoa depois se esqueça em quem votou e não cobre de seus representantes. O próprio representante não se sente cobrado. Essas passeatas contra a corrupção, sem ter um ponto específico de combate, representam apenas grandes festas em que se protesta de uma maneira niilista, ou seja, contra tudo e contra o nada, visto que hoje em dia existe de fato uma indignação geral quanto à política no Brasil, quanto à esses resquícios de estado patrimonial que nós ainda temos.
24 de outubro de 2011
Roberta Kaufmann
Fonte: Brasília em Dia
Um painel político do momento histórico em que vivem o país e o mundo. Pretende ser um observatório dos principais acontecimentos que dominam o cenário político nacional e internacional, e um canal de denúncias da corrupção e da violência, que afrontam a cidadania. Este não é um blog partidário, visto que partidos não representam idéias, mas interesses de grupos, e servem apenas para encobrir o oportunismo político de bandidos. Não obstante, seguimos o caminho da direita. Semitam rectam.
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A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)
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