"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quinta-feira, 6 de outubro de 2011

SAUDADES DO DOUTOR ULYSSES


Político que a mulher chama por um nome e o eleitorado por outro não tem futuro, me disse uma vez o doutor Ulysses. Doutor Ulysses, assim mesmo, sem necessidade de sobrenome. O Brasil inteiro o conhece assim.


Moderado por formação, radical quando necessário, irônico, charmoso, bom papo, dono de um finíssimo senso de humor, grande parlamentar.

Formado na mais fina escola de políticos que o país já produziu, o velho PSD (o verdadeiro) de Amaral Peixoto, Juscelino, Tancredo e Alkmin, o doutor Ulysses não acreditava em políticos improvisados. “No PSD”, dizia ele, “todos eram do ramo”. O doutor Ulysses certamente era.

Deputado estadual em 1947, desde 1950 estava na Câmara dos Deputados. Em 1955 integrou a Ala Moça do PSD, junto com Renato Archer, João Pacheco e Chaves, Cid Carvalho, Nestor Jost, Leoberto Leal, José Joffily, Vieira de Melo e Oliveira Brito.

Este grupo viabilizou a campanha e o governo de Juscelino, atuando dentro da Câmara dos Deputados. O doutor Ulysses presidiu a Câmara entre 1956 e 1957, contribuindo decisivamente para a aprovação do programa do governo JK. Já era moderno naquela época.

Concentrou sua atividade política na Câmara. Como ele mesmo dizia, casou-se com a Câmara. Ministro no primeiro gabinete parlamentarista, não acreditava no parlamentarismo. Só mais tarde veio a se render ao sistema, tornando-se um entusiasta do governo de gabinete.

Durante os anos da ditadura, o doutor Ulysses falava por todos nós, exilados fora e dentro do país, amordaçados pela censura e pelo medo.

Só ele não tinha medo. Enfrentou os tanques da ditadura com a mesma dignidade com que enfrentou os cães da polícia: “Respeitem o presidente da oposição!”

Grande doutor Ulysses!

Em 74 aceitou a “anticandidatura” à presidência contra o candidato da ditadura, o general Geisel. Saiu pelo Brasil a pregar a redemocratização e a Constituinte.

Com isso, impôs à ditadura uma fragorosa derrota, com a eleição de 16 senadores do MDB – um dele, o ex- presidente Itamar Franco. Foi o início do fim.

Obra do doutor Ulysses.

Eu o conheci em Brasília, pelas mãos do senador Amaral Peixoto, quando preparava minha tese sobre o PSD.

O doutor Ulysses me “adotou” e acompanhou durante todo o processo da tese, falou horas sobre o PSD, sobre a política, relembrou pessoas

Ficamos amigos desde então. Gostava de falar dos velhos tempos, mas não era saudosista. Acreditava no país, no fim da ditadura, num Brasil democrático.

Liderou a campanha pelas eleições diretas para presidente, lançando-se candidato numa entrevista em Nova York.

Mas no final, o prêmio escapuliu-lhe das mãos; teve que ceder o lugar a Tancredo Neves, seu velho companheiro.

“Muitas vezes o bombocado não é para quem o faz, mas para quem o come”, disse resignado o doutor Ulysses.

Na morte de Tancredo, não faltou quem o tentasse seduzir para assumir a presidência da República.

O doutor Ulysses não pestanejou e indicou o caminho constitucional: a posse do vice-presidente.

Perdeu uma presidência, mas ganhou duas. Presidente do PMDB, tornou-se presidente da Constituinte em 1987 e presidente da Câmara dos Deputados em 1988.

Promulgou a nova Constituição, resultado de uma batalha na qual empenhou toda a sua experiência e vitalidade.

Levado a concorrer à presidência da República em 89 pelas indecisões de caciques paroquiais do PMDB, o doutor Ulysses perdeu as eleições.

Vítima de ambições desmedidas – mas de fôlego curto dentro do próprio PMDB –, perdeu também a presidência do partido.

Parecia caminhar para a aposentadoria, o “ócio com dignidade”.

Mas estourou a crise do governo Collor. E os políticos se dirigiram em romaria ao velho doutor Ulysses, que ressurgiu lépido, olhos azuis brilhando, e mais uma vez ajudou o país, aconselhando, ponderando, colocando ordem na casa.

No meio do tumulto, enfrentou uma operação para extrair o apêndice, coisa complicada quando se tem 75 anos.

Quando reapareceu, recuperado, diziam que ele não tinha extraído o apêndice, tinha trocado as pilhas, tão revigorado estava.

Conhecia o Congresso como ninguém. Na campanha das diretas, uma vez ele me disse que a emenda Dante de Oliveira não passaria na Câmara, porque conhecia a casa.

Mas não desanimou. Sabia que a mobilização popular era importante para enterrar de vez o Colégio Eleitoral. Depois, ele me disse que só a mobilização das ruas conseguiria pressionar a Câmara a aprovar o afastamento de Collor.

Estava certo mais uma vez.

Quando sentia crescer a radicalização na Câmara, o doutor Ulysses se tornava o mais radical de todos. Fixava, assim, os limites da radicalização.

A última demonstração desta tática ocorreu quando sentiu que o plenário da Câmara queria desobedecer a uma eventual decisão do Supremo a favor do voto secreto na votação do impeachment de Collor.

O doutor Ulysses lançou o brado de desobediência, transformou-se no mais radical dos radicais. Imediatamente os “bombeiros” se apresentaram, todos moderaram o tom, e o doutor Ulysses conseguiu acalmar os ânimos, fazendo com que todos confiassem no Supremo.

Acertou de novo.

Respondeu aos insultos lançados por Fernando Collor com frases curtas e adequadas: “Velho sim, velhaco não”, “Meus remédios eu compro na farmácia”.

E foi, altaneiro, conduzir seu povo na batalha final pelo impeachment. Aplaudido de pé pelo plenário da Câmara – e pelo Brasil inteiro – ao proferir seu voto, o doutor Ulysses era a imagem da nação.

Almocei com ele em Brasília, uns domingos antes de seu desaparecimento. Fui tomar-lhe a bênção.

Quando lhe agradeci por ter-se recuperado tão rápido da operação e ter regressado a tempo de comandar os acontecimentos, ele me olhou com aqueles olhos azuis irresistíveis e disse: “Milha filha” – sempre me chamou assim – “na minha idade, não tenho tempo para ficar doente. Ainda tenho muito o que fazer”.

E agora, que seu corpo repousa desde 1992 no fundo da baía de Angra?

Estamos diante da necessidade de prosseguir sem ter o doutor Ulysses para nos ajudar, nos mostrar o caminho, nos dar o exemplo.

O doutor Ulysses foi um mágico. Fez amigos em todas as áreas, teve adversários cordiais, conspirou pela democracia, conversou até com poste para chegar a um entendimento a favor do Brasil.

Hoje estamos órfãos e desnorteados.

A articulação política do país está entregue a caciques de jaquetão, políticos paroquiais sustentados por caixas dois de variadas procedências.

Mediocriades mensaleiras e bolcheviques fracassados.

Mas não podemos desistir.

Em homenagem ao aniversariante.

O doutor Ulysses sempre soube extrair o melhor de nós.

Lúcia Hipólito, 06/10/11

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