Essa foi a vaia mais estrondosa e demorada de toda a história da Amazônia.
Começou no dia 4 de abril de 1654, em São Luís do Maranhão, com a conjugação do verbo furtar, e continuou ressoando em Belém, num auditório da Universidade Federal do Pará, na última quinta-feira, 6 de outubro, quando estudantes hostilizaram dois deputados federais que defendiam a criação dos Estados de Tapajós e Carajás.
A vaia, que atravessou os séculos, só será interrompida no dia 11 de dezembro próximo, quando quase 5 milhões de eleitores paraenses irão às urnas para votar, num plebiscito, se querem ou não a criação dos dois Estados desmembrados do Pará, que ficará reduzido a apenas 17% de seu atual território caso a resposta dos eleitores seja afirmativa.
A proposta de divisão territorial não é nova. Embora o fato não seja ensinado nas escolas, o certo é que Portugal manteve dois estados na América: o Estado do Brasil e o Estado do Maranhão e Grão-Pará, cada um com governador próprio, leis próprias e seu corpo de funcionários. Somente um ano depois da Independência do Brasil, em agosto de 1823, é que o Grão-Pará aderiu ao estado independente, com ele se unificando.
Pois bem, no século XVII, a proposta era criar mais estados. Os colonos começaram a pressionar o rei de Portugal, D. João IV, para que as capitanias da região norte fossem transformadas em entidades autônomas. O padre Antônio Vieira, conselheiro do rei de Portugal, D. João IV, convenceu o monarca a fazer exatamente o contrário, criando um governo único do Estado do Maranhão e Grão-Pará sediado inicialmente em São Luís e depois em Belém.
Para isso, o missionário jesuíta usou um argumento singular. Ele alegava que se o rei criasse outros estados na Amazônia, teria que nomear mais governadores, o que dificultaria o controle sobre eles. "É mais fácil vigiar um ladrão do que dois", escreveu Vieira em carta ao rei, de 4 de abril de 1654: “Digo, Senhor, que menos mal será um ladrão que dois, e que mais dificultoso será de achar dois homens de bem que um só”.
Num sermão que pregou na sexta-feira santa, já em Lisboa, perante um auditório onde estavam membros da corte, juízes, ministros e conselheiros da Coroa, o padre Vieira, recém-chegado do Maranhão, acusou os governadores, nomeados por três anos, de enriquecerem durante o triênio, juntamente com seus amigos e apaniguados, dizendo que eles conjugavam o verbo furtar em todos os tempos, modos e pessoas. Vale a pena transcrever um trecho do seu sermão:
- “Furtam pelo modo infinitivo, porque não tem fim o furtar com o fim do governo, e sempre lá deixam raízes em que se vão continuando os furtos. Esses mesmos modos conjugam por todas as pessoas: porque a primeira pessoa do verbo é a sua, as segundas os seus criados, e as terceiras quantos para isso têm indústria e consciência”.
Segundo Vieira, os governadores "furtam juntamente por todos os tempos". Roubam no tempo presente , "que é o seu tempo" durante o triênio em que governam, e roubam ainda "no pretérito e no futuro". Roubam no passado perdoando dívidas antigas com o Estado em troca de propinas, "vendendo perdões" e roubam no futuro quando "empenham as rendas e antecipam os contrato, com que tudo, o caído e não caído, lhe vem a cair nas mãos".
O missionário jesuíta, conselheiro e confessor do rei, prosseguiu:
"Finalmente, nos mesmos tempos não lhe escapam os imperfeitos, perfeitos, mais-que-perfeitos, e quaisquer outros, porque furtam, furtavam, furtaram, furtariam e haveriam de furtar mais se mais houvesse. Em suma, que o resumo de toda esta rapante conjugação vem a ser o supino do mesmo verbo: a furtar, para furtar. E quando eles têm conjugado assim toda a voz ativa, e as miseráveis províncias suportado toda a passiva, eles como se tiveram feito grandes serviços tornam carregados de despojos e ricos; e elas ficam roubadas e consumidas".
Numa atitude audaciosa, Padre Vieira chama o próprio rei às suas responsabilidades, concluindo:
"Em qualquer parte do mundo se pode verificar o que Isaías diz dos príncipes de Jerusalém: os teus príncipes são companheiros dos ladrões. E por quê? São companheiros dos ladrões, porque os dissimulam; são companheiros dos ladrões, porque os consentem; são companheiros dos ladrões, porque lhes dão os postos e os poderes; são companheiros dos ladrões, porque talvez os defendem; e são finalmente, seus companheiros, porque os acompanham e hão de acompanhar ao inferno, onde os mesmos ladrões os levam consigo".
Os dois novos Estados – Carajás e Tapajós – se criados, significa mais governadores, mais deputados, mais juízes, mais tribunais de contas, mais mordomias, mais assaltos aos cofres públicos.
José Ribamar Bessa Freire
09/10/2011 - Diário do Amazonas
UPEC
Um painel político do momento histórico em que vivem o país e o mundo. Pretende ser um observatório dos principais acontecimentos que dominam o cenário político nacional e internacional, e um canal de denúncias da corrupção e da violência, que afrontam a cidadania. Este não é um blog partidário, visto que partidos não representam idéias, mas interesses de grupos, e servem apenas para encobrir o oportunismo político de bandidos. Não obstante, seguimos o caminho da direita. Semitam rectam.
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"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)
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