Artigos - Movimento Revolucionário
A violenta ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas faz a repressão do regime militar de 1964 parecer castigo de normalista quando existia disciplina nas escolas.
Somente uma completa subversão da lógica, da história, do bom senso e dos próprios fatos foi capaz de transformar os tucanos em neoliberais da direita nacional, quando em qualquer verdadeira democracia do mundo eles seriam considerados de esquerda.
A cidade de São Paulo não tem rua, avenida ou praça pública com o nome de Getúlio Vargas. A informação é do jornal Valor Econômico, de 5 de novembro de 2010, ao relatar a inauguração de um busto em homenagem ao condutor da Revolução de 30, que mudou a face do Brasil.
Ao que parece, as duas únicas menções públicas ao ditador na maior cidade brasileira (onde não faltam logradouros públicos para homenagear gente) é a Rua Getúlio Vargas Filho, em Jabaquara, e a praça de mesmo nome em São Miguel Paulista. Mas são homenagens a Getulinho, um dos filhos de Vargas, que morreu em 1943, aos 26 anos de idade. Ele era químico industrial e, segundo Fernando Morais, em Chatô, o Rei do Brasil, trabalhou (sem ordenado) na Nitro Química, em São Paulo — um pedido do próprio Vargas, que a empresa interpretou como uma ordem.
Getulinho era boêmio e levava uma vida agitada em São Miguel Paulista (um bairro paulistano). Segundo boatos que circulavam no bairro, onde era benquisto, ele pode ter sido vítima de sífilis. Oficialmente, morreu de neurite infecciosa, em consequência da poliomielite.
O presidente norte-americano Frank Delano Roosevelt (1882-1945), que também sofria de poliomielite, quando se encontrou com Vargas em Natal, em janeiro de 1943, na volta de um encontro com Winston Churchill (1874-1965) na Inglaterra, ofereceu-se para tentar tratamento para Getulinho nos Estados Unidos, mas não houve tempo.
A morte precoce lhe garantiu a homenagem na capital de um Estado em que a principal data cívica é 9 de julho — celebrando a Revolução Constitucionalista de 1932, uma guerra civil justamente contra o governo Vargas, que envolveu cerca de 135 mil homens.
Por isso, o busto de Vargas inaugurado na cidade não está num espaço público, mas na sede do Sindicato dos Trabalhadores em Processamento de Dados e Tecnologia da Informação de São Paulo.
A homenagem a Vargas se deu por ocasião dos 80 anos da Revolução de 30 e contou com a presença do pedetista Carlos Lupi, então ministro do Trabalho do governo Lula, herdado pela presidente Dilma Rousseff.
Por ocasião da inauguração do busto, o ministro Lupi, que ainda estava longe de deixar o governo por suspeitas de corrupção, fez uma comparação elogiosa entre os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Getúlio Vargas, enfatizando o protagonismo social e econômico do Estado comandado por eles. E a própria direção do sindicato cobriu Lula de elogios por considerá-lo um herdeiro de Vargas.
Historiografia canhestra
O paralelo entre a Era Lula e a Era Vargas é inevitável. E foi insinuada — quando não explicitada — pelo próprio Lula, até como contraponto ao governo de Fernando Henrique Cardoso.
O Plano Real, liderado pelo sociólogo uspiano, quando ainda era ministro da Fazenda do presidente Itamar Franco (1930-2011), foi uma espécie de ponto final no Estado forte implantado por Getúlio Vargas e continuado pelos governos militares, especialmente pelo general Ernesto Geisel (1907-1996).
O golpe de estado de 24 de outubro de 1930 — corretamente registrado na história como Revolução de 30 — reconstruiu o Estado brasileiro, que havia sido praticamente destruído pela Proclamação da República, quando o poder se fragmentou entre as oligarquias locais.
Uma transformação de mesmo vulto só voltaria a ocorrer com o regime militar de 1964 — este injustamente reduzido ao golpe de estado que lhe deu origem, por força de uma historiografia canhestra, produzida por militantes de esquerda disfarçados de historiadores.
Getúlio Vargas foi um filho de sua época, marcada por uma acentuada expansão do papel do Estado que levou ao totalitarismo comunista, fascista e nazista.
Isso se refletiu diretamente na Constituição de 1934, que, por sinal, teve vida efêmera, durando somente até 1937, quando foi imposta a ditadura do Estado Novo.
Mas a Constituição de 1891 — a primeira Constituição republicana — já estava praticamente revogada desde 11 de novembro de 1930, quando o governo provisório comandado por Vargas (que havia assumido a Presidência em 3 de novembro) baixou o Decreto 19.398, que dissolveu o Congresso Nacional, as Assembleias Legislativas dos Estados e as Câmaras Municipais. Por meio deste decreto, também foram nomeados interventores para os Estados (no caso de Goiás, Pedro Ludovico Teixeira), que, por sua vez, nomeavam interventores nos municípios.
A Primeira Guerra e a Revolução Soviética, seguidas pela crise econômica de 1929, levaram o mundo a uma espécie de convulsão social, em que a predominância dos valores individuais deu lugar aos direitos coletivos.
Foi a época dos grandes movimentos operários, movidos pelo ideal da revolução socialista, influenciando inclusive a cultura, ao inspirar escritores, músicos e artistas plásticos.
Os anseios desse movimento foram além dos conselhos de fábrica e repercutiram no campo do direito, inclusive nas Constituições do período.
O protótipo desse novo constitucionalismo, segundo a maioria dos juristas, foi a Constituição de Weimar, que vigorou na Alemanha durante a efêmera República de Weimar, entre 1919 (após o fim da Primeira Guerra) e 1933 (com a ascensão do nazismo).
Entre outros direitos sociais, ela reconheceu os conselhos de fábrica, sob a insígnia ideológica da “comunidade de trabalho”, segundo o sociólogo italiano Massimo Follis, professor da Universidade de Turim e colaborador do Dicionário de Política, de Norberto Bobbio.
Ditadura republicana positivista
A Constituição de 34 teve forte influência da Constituição Mexicana de 1917 e da Constituição de Weimar, de 1919, criando a representação corporativa, que abriu o parlamento para representantes classistas.
Era uma forma de contrapor a suposta imparcialidade da técnica ao viés passional da política. Vargas era discípulo do positivista gaúcho Júlio de Castilhos (1860-1903), que presidiu o Rio Grande do Sul por duas vezes, escreveu praticamente sozinho a Constituição do Estado e, como jornalista, difundiu o pensamento de Augusto Comte em todo o País.
Os positivistas defendiam uma República ditatorial, com um governo técnico e não político, capaz de incorporar o proletariado à sociedade moderna. Qualquer semelhança com o stalinismo não é mera coincidência, pois marxismo e positivismo são filhos siameses da mesma fé cega na ciência que permeou o século 19 e influenciou profundamente o Brasil, a ponto de seu lema — “Ordem e Progresso” — inscrever-se na própria bandeira nacional.
Para Benedito Heloiz Nascimento, autor de A Ordem Nacionalista Brasileira (Editora Humanistas/USP, 2002), o Estado Novo, mais do que uma importação do positivismo francês, foi uma transposição para o plano nacional da ditadura republicana de Júlio de Castilhos, associado ao nacionalismo e ao militarismo.
O conturbado cenário das primeiras décadas da República (em que uma massa de analfabetos se deixava encabrestar por coronéis locais) acirrou a crença de que só seria possível tirar o Brasil do atraso a partir das ações vanguardistas de uma elite iluminada.
O populacho, segundo esse pensamento, não reunia as condições mínimas para ter autonomia. A própria Constituinte refletiu essa tese, sendo formada não somente por representantes diretamente eleitos pelo povo, mas também por delegados classistas, que ficaram conhecidos como “deputados das profissões”. Como se vê, o controle corporativo que o PT tenta impor às instituições tem raízes antigas.
“Dos 254 constituintes, 40 foram indicados: 20 pelos sindicatos (na verdade foram impostos pelo Ministério do Trabalho) e outros 20 por entidades representativas do empresariado”, escreve o historiador Marco Antonio Villa n’A História das Constituições Brasileiras (Editora Leya, 2011).
Além da interferência por meio dos representantes classistas, o governo agiu diretamente na Constituinte por meio de seus ministros, que só não tinham direito a voto, mas podiam comparecer às sessões e participar dos debates. Osvaldo Aranha, ministro da Fazenda, foi eleito líder da maioria na Constituinte, o que mostra a total dependência do Legislativo em relação ao Executivo. Também pudera: os revolucionários de 1930, como diz Villa, acharam necessário “refundar o Brasil”, não deixando “pedra sobre pedra da estrutura legal do regime anterior”.
O Legislativo foi extinto e Vargas, por decreto, aposentou seis ministros do Supremo Tribunal Federal.
Violência explícita na Constituição
Marco Antonio Villa faz uma síntese pouco favorável da primeira Constituição da Era Vargas e segunda da República: “A Constituição de 1934 inaugurou a minúcia e o pormenor, a indistinção entre legislação ordinária e constitucional. Isso fica evidenciado pelo número e abrangência dos artigos. Enquanto a Constituição de 1891 tinha 91, a de 1934 mais do que dobrou: 187 artigos.
No caso das disposições transitórias, o crescimento foi ainda maior: saltou de oito para 26 artigos”. Além disso, a Constituição de 34, dando prosseguimento aos decretos discricionários que inauguraram a Revolução de 30, restringiu os direitos fundamentais, introduzindo o conceito de segurança nacional, que teve especial destaque na Carta getulista.
O Executivo passou a contar com o instrumento do estado de sítio e a censura se tornou ampla, geral e irrestrita. Consultado por um constituinte a respeito dos critérios da censura, o ministro da Justiça, Antunes Maciel, foi muito além do “nada a declarar” do ministro Armando Falcão (durante o regime militar de 64) e elencou sete situações passíveis de proibição por parte do governo.
Mas não se limitou a isso. O ministro de Vargas, censor-mor do regime, chegou a alertar o constituinte que lhe fez a consulta sobre a censura: “Devo frisar que, por dever de cortesia respeitosa, responderei a este primeiro pedido de informações; mas julgo-me desobrigado de responder a outros”. E ai de quem não ouvisse o alerta. “O ministro não brincava em serviço. Um ano antes, o Diário Carioca, jornal crítico do governo, teve suas instalações destruídas, atacado por mais de 150 homens, dos quais 50 eram oficiais do Exército”, conta Marco Antonio Villa.
Mais grave era o total desprezo da ditadura varguista pelo Judiciário. O artigo 18 das disposições transitórias da Constituição de 34 estabeleceu que todos os atos do governo provisório e dos interventores federais nos Estados e demais delegados do mesmo governo estariam automaticamente aprovados e fora de qualquer apreciação judicial. “A violência é explícita. Todas as medidas discricionárias dos governos federal e estaduais estavam aprovadas constitucionalmente, sem que os prejudicados pudessem acionar a Justiça”, observa Marco Antonio Villa.
A despeito de todo esse poder que concentrou em suas mãos, o ditador não estava contente. “A Constituição de 1934 era uma espécie de pedra no caminho de Getúlio Vargas”, diz Villa.
O historiador observa que a Constituinte só foi convocada devido à Revolução Constitucionalista de 32, quando São Paulo pegou em armas contra o governo federal, numa verdadeira guerra civil, em que o Estado sofreu forte bombardeio e morreram centenas de pessoas.
Para Villa, “Getúlio Vargas era mais do que um adversário dos valores democráticos”, pois tinha o poder de presidente da República e, ao mesmo tempo em que tramava para se perpetuar no poder, contou com um pretexto vindo da oposição: os comunistas e o capitão Luís Carlos Prestes, “sedentos para, por meio de um golpe de mão, chegar também ao poder”.
Vargas e seus aliados já vinham dizendo que a totalitária Constituição de 34 “era liberal demais”, então a Intentona Comunista de 35 forneceu o pretexto para que ele atirasse o País nas trevas, com uma nova Constituição ainda mais dura, a de 1937.
Ditadura totalitária de 37
Escrita pelo “constituinte solitário” Francisco Campos (1891-1968), a Constituição de 37 tem um perfil cubano, concentrando todos os poderes no Executivo.
Ela previa a existência do Poder Legislativo, formado pelo Parlamento (Câmara Federal e Conselho Federal — uma espécie de Senado), além do Conselho Nacional de Economia e do próprio presidente da República. Ou seja, o Executivo, na pessoa do próprio ditador Getúlio Vargas, tinha um pé dentro do Legislativo. E com uma vantagem: a prerrogativa de apresentar projetos de lei era do Executivo. Nenhum deputado podia apresentar um projeto sozinho — precisava do apoio de um terço dos parlamentares.
Mesmo garantindo na própria Constituição a servidão total do Legislativo, Vargas achou por bem mantê-lo fechado e o Parlamento não se reuniu uma vez sequer.
O jurista José Afonso da Silva, no Curso de Direito Constitucional Positivo (Malheiros Editores, 2005), afirma: “A Carta de 1937 não teve, porém aplicação regular. Muitos de seus dispositivos permaneceram letra morta. Houve ditadura pura e simples, com todo o Poder Executivo e Legislativo concentrado nas mãos do presidente da República, que legislava por via de decretos-leis que ele próprio depois aplicava, como órgão do Executivo”.
A violenta ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas faz a repressão do regime militar de 1964 parecer castigo de normalista quando existia disciplina nas escolas.
Enquanto os militares só reprimiram para valer quem se envolveu com a luta armada (salvo uma ou outra exceção), Vargas pôs na cadeia até escritores pacíficos e simpáticos ao regime, como Graciliano Ramos e Monteiro Lobato.
Ainda sob a vigência da Constituição de 34, entre novembro de 1935 e maio de 1937, foram presas 7.056 pessoas. E, após a Constituição do Estado Novo, mais de 4 mil pessoas foram condenadas pelo Tribunal de Segurança Nacional. Vargas não hesitou nem mesmo em entregar Olga Benário, grávida de Luís Carlos Prestes, para os campos de concentração de Hitler. Perversidade que o próprio Prestes — com a ética de esquerda louvada pela filósofa Marilena Chauí — tratou de perdoar, subindo no palanque de Vargas em 1945, quando o movimento “queremista” tencionava perpetuá-lo no poder.
Adocicando o arbítrio
Para compensar o pior arbítrio de toda a história brasileira, a Constituinte de 33 introduziu o voto feminino no País, enquanto a Constituição de 37 criou uma série de direitos trabalhistas, ao mesmo tempo em que encabrestou os sindicatos de trabalhadores ao Estado. Foi esse o pretexto usado pelas esquerdas para perdoar os crimes de Vargas, chegando ao ponto de considerá-lo como uma espécie de ancestral político de Lula.
O historiador Marco Antonio Villa observa: “A memória repressiva do Estado Novo foi logo esquecida. As tentativas de levar para o banco dos réus os torturadores fracassaram”.
E afirma que foi esquerda comunista, no calor da hora, com o sangue de Olga Benário ainda quente, quem inocentou Vargas. “Falar dos crimes políticos do antigo regime passou a ser considerado revanchismo, recordações inapropriadas e com viés conservador. No maior deslocamento ideológico da história do Brasil, o ditador virou democrata”.
Mas, nesse ponto, discordo do historiador. O maior deslocamento ideológico de nossa história se dá no presente, com o embate entre o PT de Lula e o PSDB de Fernando Henrique Cardoso.
Somente uma completa subversão da lógica, da história, do bom senso e dos próprios fatos foi capaz de transformar os tucanos em neoliberais da direita nacional, quando em qualquer verdadeira democracia do mundo eles seriam considerados de esquerda.
Graças a essa completa deturpação dos fatos, que anula qualquer possibilidade de oposição à nova Era Vargas (a Era Lula), a esquerda se sente à vontade para atacar as instituições, começando pela imprensa.
E o faz com absoluta facilidade, pois detém total hegemonia na educação do País, da pré-escola à pós-graduação.
Formalmente somos uma democracia, mas a sociedade está submetida a uma ditadura ideológica. Por isso, a liberdade de expressão no País — como já está ocorrendo na Argentina — ainda corre um sério risco de ser letra morta — por meios sutis, é certo, mas não menos perigosos.
José Maria e Silva, 24 Janeiro 2012
Publicado no Jornal Opção.
Um painel político do momento histórico em que vivem o país e o mundo. Pretende ser um observatório dos principais acontecimentos que dominam o cenário político nacional e internacional, e um canal de denúncias da corrupção e da violência, que afrontam a cidadania. Este não é um blog partidário, visto que partidos não representam idéias, mas interesses de grupos, e servem apenas para encobrir o oportunismo político de bandidos. Não obstante, seguimos o caminho da direita. Semitam rectam.
"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)
"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário