"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quinta-feira, 14 de junho de 2012

EDUCAÇÃO, IDEOLOGIA E DIREITOS HUMANOS


          Artigos - Governo do PT
Althusser, discípulo de Gramsci, criou a teoria dos aparelhos ideológicos de Estado (AIEs), instituições sociais cuja função seria reproduzir a ideologia hegemônica da classe que detém o poder estatal. Dentre os AIEs, o mais importante, para Althusser, é o escolar.

Na famosa distopia “1984”, célebre obra de George Orwell, o governo da Oceania, comandado pelo Partido – único receptáculo legítimo do Ingsoc (socialismo inglês) –, possuía apenas quatro ministérios: Ministério da Verdade (Miniver, em novilíngua), Ministério da Paz (Minipaz), Ministério da Fartura (Minifarto) e Ministério do Amor (Miniamo). Não é difícil adivinhar a área de atuação de cada ministério: o Miniver cuida da falsificação de informações, o Minipaz promove a guerra, o Minifarto é responsável pela manutenção da miséria e o Miniamo tem por incumbência perseguir qualquer ameaça ao Partido.
Uma das ferramentas utilizadas pelo Ministério do Amor para efetivar essa perseguição é a espionagem. Outra ferramenta imprescindível é a lavagem cerebral. Àqueles que pensam que“1984” é apenas uma obra de ficção baseada por alto em alguns fatos políticos recentes do século XX, é preciso estar atento à nossa própria realidade. O pesadelo distópico descrito por Orwell é muito mais real, tangível e aterrador do que a ficção supõe. E temos um exemplo bastante próximo.
O ministro da Educação, Aluízio Mercadante, participou de uma cerimônia no dia 29 de maio passado em que homologava o Parecer CNE/CP nº 8/2012, de 6 de março de 2012, que estabelece as Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos. A cerimônia contou também com a participação da ministra Maria do Rosário, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.
O conteúdo do parecer em questão é tão profundamente aterrador que, se vivêssemos efetivamente na Oceania de Orwell, certamente teria sido fruto de uma força-tarefa conjunta entre o Ministério da Verdade e o Ministério do Amor. É tamanha a coleção de insanidades – convido o leitor a ler o documento na íntegra e conferir por si mesmo – que, por ora, focaremos na questão central do parecer; realizaremos uma análise mais pormenorizada e melhor embasada em breve.
O parecer homologado afirma que os direitos humanos “são frutos da luta pelo reconhecimento, realização e universalização da dignidade humana” – ainda que não fique claro no texto o que é a dignidade humana – e são “histórica e socialmente construídos”. Mais adiante, afirma-se (grifos nossos):

Constituindo os princípios fundadores de uma sociedade moderna, os Direitos Humanos têm se convertido em formas de luta contra as situações de desigualdades de acesso aos bens materiais e imateriais, as discriminações praticadas sobre as diversidades socioculturais, de identidade de gênero, de etnia, de raça, de orientação sexual, de deficiências, dentre outras e, de modo geral, as opressões vinculadas ao controle do poder por minorias sociais.

A conversão dessas lutas e de suas conquistas em normas regulatórias mais sistematizadas, expressas numa Cultura de Direitos, inicia-se ainda no bojo dos movimentos contrários ao Antigo Regime.
Desses movimentos surgiram marcos históricos que assinalam a institucionalização de direitos: o Bill of Rights das Revoluções Inglesas (1640 e 1688-89); a Declaração de Virgínia (1776) no processo da independência das 13 colônias frente à sua metrópole inglesa, do qual surgiram os Estados Unidos como nação; a Declaração do Homem e do Cidadão (1791), no âmbito da Revolução Francesa. Nesses três documentos foram afirmados direitos civis e políticos, sintetizados nos princípios da liberdade, igualdade e fraternidade.

A ignorância histórico-filosófica daqueles que elaboraram o documento é indisfarçável nesse trecho do documento. Além de instrumentalizar a ideia de direitos humanos, procede-se a uma mistura confusa de conceitos e motivações para movimentos essencialmente distintos entre si – estabelecer um paralelo entre a Revolução Francesa e a Revolução Americana é tão despropositado quanto comparar Dilma Rousseff e Margaret Thatcher. Mas a ignorância transforma-se em mau-caratismo puro mais adiante (grifos nossos):

No século XX, com as atrocidades da 1ª Guerra Mundial e, posteriormente, do Holocausto e das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, na 2ª grande guerra, os impactos e a grandiosa dimensão do genocídio humano abalaram a consciência crítica internacional. Logo também entram em curso vários processos descolonizadores de países asiáticos e africanos (anos 1940-1970), que geraram guerras localizadas. Além das guerras e demais conflitos, este momento trouxe para a agenda internacional a questão do desenvolvimento dos países do chamado Terceiro Mundo. [...]

Não obstante tal orientação universalizante de direitos, novos processos históricos apontaram para outras situações de violações dos Direitos Humanos. Nos anos de 1960-1970, por exemplo, o amplo processo de implantação de ditaduras militares na América Latina, mediante fortíssima repressão, censura, prisões, desaparecimento e assassinatos de milhares de opositores/opositoras aos regimes ditatoriais, representou um retrocesso nas lutas por direitos civis, sociais e políticos.

Vejamos que coisa curiosa: entre a Primeira Guerra e a Segunda Guerra, o governo bolchevique havia dado cabo da vida de mais de 10 milhões de seres humanos através de uma perseguição étnico-política sistemática.
Podemos citar como exemplo o trágico Holodomor na Ucrânia, em que mais de 5 milhões de pessoas morreram no inverno de 1932-33 (um período de três meses) graças ao desejo de Stálin de dobrar os ucranianos à sua vontade. Além disso, havia aproximadamente 500 campos de concentração e trabalhos forçados gulag na União Soviética – cujo modelo de construção e gestão foi exportado para a Alemanha nazista em acordos oficiais. Curiosamente, o ataque nuclear legítimo dos Estados Unidos contra o Japão é tido como pior do que o triturador humano soviético.
Os “processos descolonizadores de países asiáticos e africanos (anos 1940-1970)” ao qual o texto faz referência foram, em ampla maioria, processos revolucionários de inspiração marxista e, não raro, apoiados financeira e militarmente pela União Soviética. Dois exemplos patentes são a Revolução Chinesa, que depôs o governo nacionalista de Chiang Kai-shek e instaurou o regime comunista no país, liderado por Mao Tse-tung, e a Revolução de Agosto, comandada pelo revolucionário vietnamita Ho Chih Minh, que fundou a República Democrática do Vietnã.
Em ambos os casos, opositores políticos, militares e intelectuais foram assassinados não apenas durante os levantes, mas sobretudo após implantado o regime comunista nesses países. No caso da China, o governo maoísta provocou, em virtude do programa Grande Salto (1958 – 1961), a morte de 40 milhões de pessoas; em um período seis vezes menor do que todo o governo de Adolf Hitler, Mao exterminou quase 7 vezes mais pessoas do que o Holocausto.

Quanto aos “novos processos históricos apontaram para outras situações de violações dos Direitos Humanos” dos anos 1960 e 1970, o parecer faz questão de lembrar apenas “o amplo processo de implantação de ditaduras militares na América Latina”.
Chega a ser pueril como ignora-se solenemente a Revolução Cubana: seu governo revolucionário – comandado por Fidel Castro e Che Guevara – foi responsável pela execução sumária de 10 mil opositores somente nos anos 1960, e 30 mil presos políticos foram encarcerados nos primeiros anos pós-revolução em campos de concentração que objetivavam a “reeducação pelo trabalho”. Necessário também lembrar que o governo castrista criou a maior máquina de perseguição política do continente americano – maior e mais eficiente do que qualquer órgão congênere dos governos militares –, o Departamento de Segurança do Estado (DSE), batizada gentilmente de Gestapo Vermelha.
Por que é importante apegar-se a algo que, no âmbito desse parecer, assemelha-se a um mero detalhe? Porque, uma vez que esse documento foi homologado pelo Executivo através de um de seus ministérios, essas informações demonstram o posicionamento oficial do governo brasileiro com relação às questões abordadas.
A mensagem é clara: por mais que os governos comunistas tenham perseguido, torturado, exilado e executado mais pessoas do que todos os outros regimes totalitários e autoritários da história humana, nenhuma dessas ações são consideradas violações dos direitos humanos. No entanto, ações contrarrevolucionárias que buscaram salvaguardar as nações latinoamericanas do totalitarismo comunista – como o Movimento Cívico-Militar de 1964 – são, de per si, graves violações dos direitos humanos pelo único fato de terem retardado uma hecatombe marxista.
Aquilo que se chama direitos humanos no linguajar do governo e da intelligentsia do Brasil não tem absolutamente nada que ver com os verdadeiros direitos humanos; estes partem de uma concepção profunda acerca da verdade sobre a natureza humana – concepção imprescindível para qualquer reflexão acerca dos fundamentos da dignidade do homem –, enquanto aqueles são um amontoado confuso de gostismos e achismos “histórica e socialmente construídos” vertidos em direitos autênticos.

No livro “Fundamentos de Antropologia”, Ricardo Yepes e Javier Echevarría advogam que o discurso de defesa intransigente do pluralismo e da diversidade é algo próprio do permissivismo, ou ideologia tolerante:

A ideologia tolerante, com efeito, é o desenvolvimento lógico do ideal da “escolha” e da visão liberal do homem e da sociedade, arraigada principalmente no mundo anglo-saxão e germânico. Segundo essa visão, a liberdade consiste sobretudo em emancipação, ou seja, independência, autonomia com relação a qualquer autoridade: cada um é a única autoridade legisladora sobre si mesmo; a autoridade civil não passa de um simples arbítrio que organiza os interesses de indivíduos que elegem livremente o que querem. [...]

O específico e típico da tolerância compreendida dessa forma é que pretende excluir qualquer forma de reprovação a condutas que desaprovamos pelo fato de serem distintas das que praticamos. Isso se chama political correctness, politicamente correto. Consiste em não reprovar a conduta de ninguém e evitar qualquer sinal ou palavra que possa ser interpretado como discriminatório. O feminismo tem algumas reivindicações típicas a esse respeito: a palavra “woman” (mulher) seria machista por conter o sufixo “man” (homem). Seria discriminatória qualquer relutância frente aos “gays”, e desde já a Igreja Católica é “super-discriminatória” por excluir as mulheres do sacerdócio.

Enquanto as ideologias marxistas (socialismo, comunismo, nazismo, fascismo, progressismo) buscam primariamente o nivelamento material da sociedade, a ideologia tolerante – uma das características fundamentais do chamado pós-modernismo – busca o nivelamento cognitivo-comportamental dos indivíduos, transformando-os em uma massa amorfa altamente fragmentada em que a verdade nada mais é do que uma questão de ponto de vista.
A tolerância é sagrada, menos para aqueles que não a enxerguem como sagrada – e que, portanto, merecem a morte em todos os seus matizes. O patrulhamento não é mais feito de maneira explícita, não são mais tão necessários os organismos de espionagem e as polícias secretas: toda a sociedade é transformada num imenso órgão de espionagem – exatamente como ocorre em “1984”.
O parecer homologado lembra com propriedade que “a educação vem sendo entendida como uma das mediações fundamentais tanto para o acesso ao legado histórico dos Direitos Humanos, quanto para a compreensão de que a cultura dos Direitos Humanos é um dos alicerces para a mudança social”. O que concede tamanha importância à educação em direitos humanos, e por que tanta ênfase no protagonismo do sistema público de ensino?
A resposta encontra-se em Louis Althusser, um dos maiores discípulos de Gramsci. Althusser criou a teoria dos aparelhos ideológicos de Estado (AIEs), instituições sociais cuja função seria reproduzir a ideologia hegemônica da classe que detém o poder estatal. Dentre os AIEs, o mais importante, para Althusser, é o escolar: é nesse AIE que se devem concentrar inicialmente os esforços revolucionários, contaminando-o desde dentro de modo a solapar a ideologia dominante e, assim, conquistar o poder. E é exatamente isso o que a esquerda brasileira faz incessantemente há décadas.

O professor Olavo de Carvalho, em artigo recente, lembrou, com a agudeza que lhe é peculiar, sobre como a apropriação da linguagem corrente e a deturpação dos significados contribui enormemente para o nivelamento mental da sociedade brasileira.
É por esse processo que passou o termo “direitos humanos”: seu significado essencial se transformou exatamente no que a casta intelectual e a nomenklatura querem que ele seja. Em nome de um conceito particularmente idílico, mas essencialmente perverso – assim como, por exemplo, “igualdade” e “democracia” –, uma verdadeira barbaridade está tomando corpo, como um câncer, devorando com afã voraz a mente e o coração da sociedade, abrindo um importante espaço para preenchê-lo com sua ideologia abjeta.
Felipe Melo
14 de junho de 2012

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