"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sábado, 2 de junho de 2012

RAZÃO PRÁTICA, DIREITO E POLÍTICA

A diferença entre o direito e a política, segundo a razão prática, é uma diferença de cunho instrumental, já que tanto o campo jurídico quanto o político atuam para um fim comum.

Uma noção geral da racionalidade prática deve levar em conta um rol de bens básicos relativos ao ser humano. Toda pessoa humana possui um apetite natural para o conhecimento. Das três espécies básicas de racionalidade, a saber, a racionalidade técnica, a racionalidade prática e a racionalidade teórica, a primeira condiz com a arte, com um “fazer”; a segunda, com um agir voltado para uma espécie de conhecimento, o conhecimento do bem; e a última, com o próprio conhecer teórico, correspondente a intelecção dos entes. A ciência jurídica, ainda que abranja de forma coerente as três espécies de racionalidade, enquadra-se melhor na segunda, já que abarca não apenas o conjunto doutrinário dos diplomas normativos, que nem sempre coincidem com o mundo da realidade existencial, assim como também as formas básicas de bem que fundamentam o campo da moralidade.

Uma autêntica teoria do direito não pode partir da moral em seu campo metodológico. Antes, deve buscar um fundamento anterior à própria moral, encontrando no universo dos princípios pré-morais sua fundamentação mais rigorosa. Sendo assim, a redenção do edifício normativo deve se basear, juntamente com a moral, naquilo que condiciona o quadro maior das experiências humanas concretas.
Ora, é sabido que a experiência humana possui sempre uma finalidade que, como nos ensina Aristóteles, é o próprio bem. Tal bem, anterior à própria ação, vai fundamentando a ação na medida de sua realização. Ademais, o bem se mostra, em diversos casos, como o próprio elemento constitutivo da ação.

Portanto, fica evidente que o bem é anterior a própria moral e, por sua vez, ao próprio direito que lhe é correspondente. Mas, como tal bem é inteligido pelo ser humano?
Voltamos à razão prática. É pela inteligência prática que a razão alcança o conhecimento do bem devido. Então, a captação inteligível da forma apropriada do bem devido às ações humanas concretas pressupõe: (1º) que o bem básico seja anterior à moral; (2º) que o bem básico condicione a experiência humana; e (3º) que sua percepção não se pode dar de forma sensível, senão de modo inteligível, pois é pelo intelecto e não pelos sentidos que percebemos formas básicas de bem próprios dos entes singulares e reais.

Por exemplo, como percebemos a dignidade de um ser humano? Pelo aspecto sensível apenas? Não. O aspecto sensível será importante para detectar o ente concreto, a unidade de matéria e forma correspondente. Mas, apenas do ponto de vista das sensações não me é permitido verificar o bem devido a qualquer ente em particular.
 Portanto, será necessário que a inteligência capte a forma básica e adequada de bem correspondente ao ente. E tal é possível pela racionalidade prática, que capta tal bem. Ora, o bem aí não se subsume da moral, senão que é anterior à própria moral, já que esta nasce daquele. A moralidade decorre dos princípios que lhe são anteriores e que correspondem às formas básicas de bem relativas à realidade concreta.

John Finnis denomina tais formas de “princípios básicos da racionalidade prática”. Infere o autor, com base em Santo Tomás, que o conhecimento dessas formas básicas de bem pressupõe um critério de razoabilidade, já que não há uma fórmula universal e infalível de percepção exata. Antes, por conta de nossa falibilidade intelectiva, precisamos do auxílio das virtudes para alcançar a captação adequada do bem. Ou seja, se há um apetite natural para conhecer, precisamos das virtudes para guiar-nos na percepção da forma básica de bem.

Portanto, tal como deduz Francisco Suarez, se Deus é o Supremo Legislador da realidade, necessário é que o legislador humano, através da lei natural, possa captar o bem comum, isto é, o bem concreto participado em todos os seres humanos e que é anterior à moral, constituindo e promulgando leis ordenadas pela razão prática. Ainda que o próprio Suarez confunda o plano do intelecto com o plano da consciência, entendendo que a vontade do legislador humano justifica a lei promulgada por uma analogia com o legislador universal, sua constatação analógica nos serve para dizer que, tal qual Deus é o autor da lei eterna, o legislador humano – a autoridade política – capta a forma básica de bem da comunidade e a ordena racionalmente mediante leis positivas à imagem e semelhança da lei eterna. E pode fazê-lo porque a lei natural participa nele, na constituição de sua inteligência.

O bem comum aparece como bem devido da comunidade, captado pela inteligência prática do legislador que delibera sobre os meios adequados para sua realização. Portanto, o bem básico do poder é o bem comum, bem identificado com os fins elementares e próprios da comunidade política.
Por sua vez, a lei natural, a participação da lei eterna na inteligência humana, é percebida pela razão natural, de onde é inferida e projetada para a promulgação da lei humana positiva.
A autoridade política, a saber, o legislador humano, concebe a lei humana, como aduz Santo Tomás, como uma “ordem da razão em direção ao bem comum”.

O bem comum aqui, captado pela racionalidade prática, isto é, pela inteligência prática, exprime a finalidade própria do direito e da política. Portanto, se é assim, a razão prática pode ser entendida como a racionalidade própria do direito e do poder, sendo o ponto de conexão entre esses dois âmbitos da realidade social.
A diferença entre o direito e a política, segundo a razão prática, é uma diferença de cunho instrumental, já que tanto o campo jurídico quanto o político atuam para um fim comum, qual seja, o bem da comunidade de seres humanos.

Sendo o mundo político e o mundo jurídico um mesmo mundo, é a racionalidade da ação e sua perspectiva teleológica os elementos que condicionam estas duas dimensões, e às confere uma estatura ontológica cuja natureza se subsume de um único ponto.
Marcus Boeira
02 de junho de 2012

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