É nas crises que se avalia a qualidade dos líderes políticos. Lugo não passou pelo crivo da crise. O estadista paraguaio reagiu de modo ambíguo ao “impeachment expresso”. Após o voto da Câmara, disse que respeitaria a deliberação final, do Senado, e enviou advogados para fazer a sua defesa. Depois de tudo, pronunciou um discurso de despedida no qual afirmou que a democracia paraguaia foi “golpeada” – e retirou-se sugerindo que apoiaria “protestos pacíficos” contra a decisão. A oscilação confundiu seus partidários – mas, de qualquer modo, apenas 5 mil pessoas protestavam em Assunção.
O legalismo da maioria parlamentar foi manchado pela celeridade do processo: como registrou Lugo, seu afastamento demorou menos que o tempo de análise de um recurso contra multa de trânsito, destruindo o direito à defesa. Em editorial, “O Globo” minimizou a importância do caráter sumário do impeachment, enquanto o colunista Merval Pereira qualificou o diagnóstico de que se violou o “devido processo legal” como “questão de interpretação”.
Há algo de errado quando os princípios gerais do direito são tratados como adornos dispensáveis, quase fúteis. A violação permanente de tais princípios é o método empregado pelos governos de Vladimir Putin e de Hugo Chávez para, “legalmente”, asfixiar as liberdades políticas e fraudar a democracia. Nota oportuna: na Rússia e na Venezuela, a cúpula do Judiciário também avaliza, docilmente, a “legalidade” dos atos dos donos do poder.
O episódio paraguaio deve ser caracterizado como um golpe parlamentar vestido nos andrajos das leis de uma democracia oligárquica. A Constituição do país permite a deposição de um presidente com base em “acusações” de ordem exclusivamente política. O texto constitucional funciona como ferramenta crucial de controle do poder pela elite política tradicional, cuja representação é a maioria parlamentar. Há diferenças significativas entre a deposição de Lugo e a de Manuel Zelaya, em 2009. Contudo, no Paraguai, como em Honduras, o sistema de poder oligárquico faz do presidente eleito um mero despachante dos interesses da elite tradicional organizada no parlamento.
É nas crises que se avalia a qualidade dos líderes políticos
O regime ditatorial, que se estendeu por 35 anos, exprimia a hegemonia do partido Colorado. Na longa transição ainda em curso, a elite política molda um sistema pluripartidário de revezamento no poder. O componente dissonante é a emergência de movimentos sociais, especialmente dos sem-terra, num país de grandes propriedades rurais em trajetórias desiguais de modernização.
Uma estranha aliança entre os movimentos sociais e o Partido Liberal, de centro-direita, propiciou o triunfo de Lugo, em 2008, e a ruptura de 61 anos de hegemonia colorada. O presidente de esquerda equilibrava-se entre os movimentos sociais e a coalizão de governo, carecendo quase totalmente de base parlamentar própria.
No Congresso, dependia do apoio inconstante do Partido Liberal e dos humores mutáveis da União dos Cidadãos Éticos (Unace), nome improvável de uma dissidência colorada reunida em torno do ex-general golpista Lino Oviedo.
O golpe parlamentar do impeachment decorreu da cisão da aliança entre os liberais e o presidente, nas circunstâncias traumáticas criadas pelo tiroteio entre os sem-terra e policiais. As eleições presidenciais estão marcadas para abril de 2013. O Partido Liberal, do agora presidente Federico Franco, calcula que o exercício direto do poder lhe propiciará a vitória, possivelmente em coligação com Oviedo. Os colorados imaginam que o estilhaçamento definitivo da aliança entre a esquerda e os liberais assegurará o seu próprio triunfo.
As reações latino-americanas ao “impeachment expresso” traduzem a desunião da Unasul. Sob o influxo da Venezuela, o “bloco bolivariano” almeja promover o isolamento completo do governo de Franco – mas os países da Alba têm escassa influência sobre o Paraguai.
A Argentina, esquecida de seus próprios interesses nacionais, opera quase como um peão de Chávez, o que complica o cenário do Mercosul, no qual deve agir o Brasil. As reticências brasileiras refletem um realismo geopolítico que escapa à compreensão de Cristina Kirchner.
No episódio da destituição de Zelaya, o governo Lula participou, com disfarçada relutância, da aventura tragicômica conduzida por Chávez. A irrelevância do Brasil no tabuleiro do istmo centro-americano propiciou o exercício da irresponsabilidade, que rendeu frutos junto às correntes petistas seduzidas pelo brilho falso do “socialismo bolivariano”.
O Paraguai, porém, não é Honduras: a história, a fronteira, Itaipu e os “brasiguaios” não permitem a transformação do país em campo de folguedos ideológicos. O governo Dilma transita na vereda estreita que passa entre os abismos das sanções econômicas, que provocariam perigosa instabilidade no vizinho estratégico, e da condescendência passiva, que desmoralizaria a cláusula democrática do Mercosul consagrada no Protocolo de Ushuaia.
O imperativo do realismo diplomático é um problema do governo. Por outro lado, a defesa das liberdades e da democracia exige que se chame as coisas pelo nome delas, sem duplicidade ou eufemismos. Hoje, é Assunção; amanhã, Caracas.
Demétrio Magnol
Fonte: O Globo
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