"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



domingo, 19 de agosto de 2012

UMA QUEDA PARA O ALTO - UM LIVRO PARA COMPRAR HOJE, AGORA!

 

Diogo Mainardi está no Brasil. Participamos, diga-se, de um evento no Clube Hebraica, em São Paulo, neste domingo (veja post a respeito). Acaba de chegar às livrarias A Queda – Memórias de Um Pai em 424 Passos, publicado pela Editora Record.

É o melhor livro de Diogo, um grande, um estupendo escritor! É o melhor porque é obra vivida? Sim, a gente poderia sustentar isso. E também é o melhor porque é invenção rigorosa — mas aí há um porém que põe esse livro num grupo muito restrito: sem o que Diogo viveu e vive, esse texto jamais teria sido escrito. Ainda voltarei a ele.

Reproduzo abaixo trechos da resenha escrita por Mario Sabino na VEJA desta semana. Acreditem: há muitos anos não se publica no país um livro com tal força, com tal qualidade, com tal… dureza! Volto para encerrar.

*

Um dos desenhos mais célebres do mundo faz pane do acervo da Accademia de Veneza. Trata-se do Homem Vitruviano, de Leonardo da Vinci, em que a única figura humana é retratada em duas posições, como se houvesse fotogramas sobrepostos — dentro de um círculo (com os braços esticados à altura da cabeça e as pernas afastadas) e dentro de um quadrado (com os braços abertos na altura dos ombros e as pernas juntas), círculo e quadrado porque tidos como as formas geométricas perfeitas.
O “Homem Vitruviano” parece fazer um polichinelo, aquele exercício físico banido da ginástica escolar depois de arrebentar os joelhos das gerações com mais de 40 anos. Da Vinci concebeu o desenho em tomo de 1490, a partir das considerações do arquiteto romano Vitrúvio. Um milênio e meio antes, em seu tratado De Architectura, Vitrúvio estabelecera quais seriam as proporções exatas do corpo humano, por meio de uma série de correspondências matemáticas entre as suas diversas partes.

O desenho de Da Vinci é acompanhado, na parte superior e inferior, de explicações sobre tais correspondências, a demonstrar com mais ênfase a intenção do artista de apresentar o modelo de harmonia que deveria servir de base a pintores, escultores e arquitetos.

O Homem Vitruviano é raramente exposto. A última vez foi em 2009. Já sua antítese está em exposição permanente pelas vias e pontes de Veneza: Tito Mainardi, hoje com quase 12 anos, primogênito de Diogo Mainardi. Portador de paralisia cerebral, é como uma espécie de “Menino Antivitruviano” que ele protagoniza A Queda — As Memórias de um Pai em 424 Passos (Record: 152 páginas; 29,90 reais), de autoria do ex-colunista de VEJA. O livro, que chega às livrarias com uma tiragem inicial de 20.000 exemplares, é comovente pelo tema, extraordinário na forma e esplêndido como reflexão sobre a arrogância humana.

Tito é personagem conhecido dos leitores que acompanhavam semanalmente a coluna de Diogo, a mais lida da revista de 1999 a 2010, quando o escritor e jornalista resolveu encerrar espontaneamente a sua colaboração. Ele começou a pensar em escrever o livro sobre a paralisia cerebral de seu primogênito em 2008, ainda no Rio de Janeiro, para onde se mudara quatro anos antes, a conselho de médicos americanos.
O veneziano Tito deveria viver num ambiente quente, onde pudesse exercitar mais as pernas. As areias de Ipanema foram seu primeiro — e ideal para quedas — campo de provas, complementadas pelas garagens térreas dos prédios da orla, nas quais o menino se esbaldava com seu andador, observado do carrinho por Nico, seu irmão carioca, hoje com 7 anos.
Depois que Tito, em férias na cidade natal, alcançou 359 passos sozinho, Diogo decidiu concretizar seu projeto. Diz ele: “Só consegui, contudo, dedicar-me seriamente ao livro a partir de setembro de 2010, na volta definitiva a Veneza. Tive de renunciar à coluna em VEJA, por causa da minha cabeça limitada: sou incapaz de pensar num José Dirceu e, ao mesmo tempo, num Tintoretto. O José Dirceu emporcalha o Tintoretto”. Uma das glórias de Veneza, o pintor é um dos artistas abordados por Diogo em A Queda.

A paralisia cerebral de Tito foi causada por uma obstetra que apressou o parto de maneira desastrada. O dia em que ele veio à luz — 30 de setembro de 2000 — caiu num sábado, e a médica encarregada do procedimento queria terminar seu turno de trabalho mais rápido. Para tanto, decidiu estourar a bolsa com líquido amniótico que protege o bebê. Só que, ao fazê-lo, contrariando todos os manuais de obstetrícia, Tito teve o cordão umbilical esmagado e ficou sem oxigênio.
A saída, nesse caso, era realizar uma cesárea de urgência. A obstetra outra vez errou ao demorar demais para abrir o ventre de Anna, mulher de Diogo, e Tito permaneceu asfixiado por 45 minutos. O resultado foi uma lesão no cérebro que o impede de falar, andar e pegar objetos com as mãos como se faz normalmente. A lesão é tão pequena que é invisível aos exames de imagem mais modernos. Assim, não comprometeu a capacidade intelectual de Tito (…)

Em torno da paralisia cerebral de seu filho, orbitam duas narrativas que se imbricam uma na outra: a do drama familiar e a da história das ideias e de seu corolário, a arte que se quer ex­pressão da Verdade — com “v” maiús­culo —, seja filosófica, religiosa ou ideológica.

(…)

Diogo só poderia escrever esse livro em Veneza, ainda que José Dirceu não emporcalhasse Tintoretto. Foi nessa cidade sem paralelo, que coroa a vaidade do pensamento e da arte, que Diogo se refugiou para escrever seus quatro romances. Foi nessa cidade diferente de todas as outras que ele conheceu a sua queda particular — e, nela, reconheceu as nossas aspirações evanescentes que insistem em sobreviver em quaisquer latitudes.
No livro, Veneza continua a ser extraordinária, como na época de Goldoni, mas não como um tributo ao engenho humano, e sim à sua prepotência, da qual Diogo se despiu existencialmente.

Diz ele a VEJA: “O nascimento de Tito me fez deixar os romances de lado porque mudou o narrador. Em meus romances, eu era o narrador onisciente, que comandava o destino de um bando de personagens idiotas. Depois de Tito, eu me tornei o personagem idiota, e meu destino passou a ser narrado por um menininho de pernas tortas que nem sabia falar. Morreu a minha soberba autoral e, sem ela, era impensável continuar a escrever romances.
Dito de outra maneira: eu sempre imaginei que saberia manter um razoável controle sobre os fatos de minha vida. Tito me mostrou, porém, que eu nunca controlei porcaria nenhuma, e que a única possibilidade de livre-arbítrio ao meu alcance estava na leitura dos fatos, e não nos fatos em si”.

(…)

Voltei

Caros, encerro por aqui a transcrição de trechos da resenha de Sabino. Leiam a íntegra na revista. Transcrevo o passo 82 e assim encerro este post.
Passei o dia na UTI.
Acariciei o rosto de Tito. Ele permaneceu morto. Acariciei o peito de Tito. Ele permaneceu morto. Acariciei a perna de Tito. Ele permaneceu morto. Acariciei as costas de Tito. No momento em que acariciei suas costas, deu-se o inesperado. Subitamente, ele contorceu o corpo e arqueou a coluna.
Tito ressuscitou.
Chorei por meia hora. Depois de ter chorado por meia hora, chorei por uma hora. Depois de ter chorado por uma hora, chorei por duas horas.

19 de agosto de 2012
Por Reinaldo Azevedo

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