A Guerra Fria, o 'terceiro mundo', Cuba, China, tudo nos dava a sensação de que a 'revolução' estava próxima.
“Não! Aí eu não entro!”, gemiam as namoradas, empacando na porta do apartamento. Nós, sordidamente, usávamos argumentos assim: “Mas, meu bem... Deixa de ser ‘alienada’... A sexualidade é um ato de liberdade contra a direita.”
Éramos assim nos anos 1960. A Guerra Fria, o “terceiro mundo”, Cuba, China, tudo nos dava a sensação de que a “revolução” estava próxima. “Revolução” era uma varinha de condão, uma mudança radical em tudo, desde nossos “pintinhos” até as relações de produção.
Havia os radicais de cervejaria, os radicais de enfermaria e os radicais de estrebaria. Os frívolos, os burros e os loucos. Nas minhas cervejarias filosóficas do passado, o radical (que nunca havia feito nada pelo povo) enchia a cara e gritava: “Viva a Luta Armada! E, garçom, me traz um chopinho!”
Claro que havia também os grandes homens intrépidos, os guerreiros que morreram por seus ideais, com bala na agulha e coragem heroica, arrasados por militares treinados pelos americanos; foi um massacre.
Mas, na verdade, nunca houve bases concretas para o socialismo utópico que praticávamos, mesmo morrendo. Nós odiávamos os “meios” e só amávamos os “fins”. Os fracassos nos emprestavam uma aura de martírio que nos enobrecia.
Era uma vingança contra traumas familiares, humilhações, pequenos fracassos. Era também uma mão-na-roda para a justificar nossa ignorância — não, pois não precisávamos estudar nada profundamente, por sermos a “favor” do bem e da justiça. A desgraça dos miseráveis nos doía como um problema existencial nosso. A democracia nos repugnava, com suas fragilidades, sua lentidão, sua obra sempre aberta. A parte chata da revolução, deixávamos para a liderança ao presidente da República, na melhor tradição de dependência ao Estado. Jango, coitado, teria de orquestrar as forças delirantes, feitas de restos de um getulismo tardio, oportunismo de pelegos e sonhos generosos da juventude imatura. Valeu-nos vinte anos de bode preto.
Os radicais rotulavam as pessoas como: sectários, aventureiros, obreiristas, desviacionistas de direita, revisionistas, hesitantes, liberais. Ninguém mencionava outras categorias psicológicas: paranoicos, histéricos, babacas, caretas e até filhos da p...
Qualquer argumento mais sofisticado, qualquer sombra de complexidade era traição. O bolchevique espetava o dedo na cara do intelectual e fuzilava: ”O companheiro está sendo muito liberal, pequeno burguês revisionista”. E o “pequeno burguês” revisionista ia vomitar atrás da porta. Um “camarada” me disse: “O marxismo supera a morte! “Como?” — disse eu, espantado. “Claro” — me responde ele, iluminado de certeza — “uma vez dissolvido no social, o mito do indivíduo se desfaz, e a ilusão de que ele existe como pessoa. Ele só existe como espécie. E não morre. O marxista não morre!” E eu, fascinado, sonhei com a vida eterna...
Por que escrevo essas coisas antigas, estimado leitor? Porque li o espantoso manifesto do PC do B em apoio aos psicóticos crimes contra a Humanidade e seu povo que os Kims vêm cometendo. Defendem um dos regimes mais brutais da historia.
Vejam o PC do B:
“Sr. Embaixador da Republica da Coreia o Norte: A campanha de uma guerra nuclear desenvolvida pelos Estados Unidos contra a República Democrática Popular da Coreia passou dos limites e chegou à perigosa fase de combate real. Apesar de repetidos avisos da RDP da Coreia, os Estados Unidos têm enviado para a Coreia do Sul os bombardeios nucleares estratégicos B-52. Os exercícios com esses bombardeios contra a RDP da Coreia são ações que servem para desafiar e provocar uma reação nunca antes vista, e torna a situação intolerável.
As atuais situações criadas na península coreana e as maquinações de guerra nuclear dos EUA e sua fantoche aliada Coreia do Sul, além de seus parceiros que ameaçam a paz no mundo e da região, nos levam a afirmar:
1. Nosso total, irrestrito e absoluto apoio e solidariedade à luta do povo coreano para defender a soberania e a dignidade nacional do país;
2. Lutaremos para que o mundo se mobilize para que os Estados Unidos e Coreia do Sul cessem imediatamente os exercícios de guerra nuclear contra a RDP da Coreia;
3. Incentivaremos a Humanidade e os povos progressistas de todo o mundo e que se opõem à guerra que se manifestem com o objetivo de manter a Paz contra a coerção e as arbitrariedades do terrorismo dos EUA.
Brasília, 02 de abril de 2013.”
Não é impressionante o atraso mental do país? Só o hospício.
Milhares de inocentes estão sendo levados a concluir que voltou a hora do “comunismo”, mesmo depois dos milhões de assassinados e do fracasso politico e econômico. Milhares de jovens desinformados enchem as faculdades de “coreanos” em defesa da morte, da repressão e da fome. E saibam que o PC do B controla o esporte e a cultura nacionais.
Quase todos que gritam slogans como patéticos escravos coreanos não haviam nascido nos tempos de Goulart. Muita gente sem idade e sem memória ignora que o caminho para o crescimento é o progressivo aperfeiçoamento do que chamávamos de democracia “burguesa”, minando aos poucos, com reformas, a nossa doença fatal: tradição oligárquica e patrimonialista.
Há 40 anos, eu não sabia nada disso. Tanto que para levar meu primeiro amor ao apartamento, lembro de lhe ter dito, entre beijos: “Nosso amor também é uma forma de luta contra o imperialismo norte- americano”. E ela foi.
30 de maio de 2013
Arnaldo Jabor
O Globo
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