No dia em que o STF condenou os mensaleiros, a Comissão do Planalto encampou a Bolsa-Consultoria de Pimentel
JOSÉ PAULO Sepúlveda Pertence tem 74 anos, ralou durante a ditadura, foi nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal em 1985 e lá ficou até 2007, quando Lula colocou-o na direção da Comissão de Ética Pública da Presidência da República. Repetindo: Comissão de Ética Pública da Presidência da República.
Enquanto o país assiste inebriado ao julgamento da quadrilha do mensalão, Pertence disse o seguinte ao repórter Fernando Rodrigues:
"Não creio que isso vá transformar a história do Brasil. O que se passa para o leitor de jornal, o telespectador ou o leitor de revistas, é que é histórico porque se está condenando. Mas isso é relativo".
Põe relativo nisso. No final de setembro Pertence demitiu-se da presidência da Comissão de Ética. Por falta de quorum, ela não se reunia desde julho, pois a doutora Dilma não preenchia quatro vagas abertas. Quando a doutora nomeou dois conselheiros desconsiderando as sugestões de Pertence, ele foi-se embora. (Fica por conta da sua proximidade com os comissários o fato de terem-no passado na máquina de moer carne, atribuindo sua contrariedade a um pedido frustrado de nomeação de um filho.)
No mesmo dia em que o Supremo Tribunal Federal condenou 25 réus do mensalão, a nova Comissão de Ética reuniu-se e, por unanimidade, arquivou dois processos que tramitavam contra o ministro do Desenvolvimento, Fernando Pimentel.
Numa denúncia mostrava-se que a partir de 2009, pouco depois de deixar a Prefeitura de Belo Horizonte, Pimentel recebera R$ 2 milhões ao longo de dois anos por serviços de consultoria. Um de seus clientes, a construtora Convap, desembolsou R$ 514 mil por sete meses de serviços contratados. (R$ 73,4 mil mensais). Outro freguês, a Federação da Indústrias de Minas Gerais, pagou-lhe R$ 1 milhão por nove meses de trabalho, ou R$ 111 mil mensais. Pimentel explicou que, descontados os impostos, sua Bolsa-Consultoria rendera-lhe R$ 50 mil mensais, "remuneração compatível com o mercado de executivos". O doutor faturou cerca de US$ 550 mil da Fiemg. (A mais famosa consultoria do mundo, chefiada pelo ex-secretário de Estado Henry Kissinger, em 1986 cobrava US$ 420 mil anuais aos seus maiores clientes.)
A segunda denúncia era mequetrefe. Em outubro do ano passado Pimentel viajou na comitiva da doutora Dilma para a Bulgária e precisava comparecer a um seminário privado em Roma. À falta de um avião de carreira, recorreu ao empresário que patrocinava o evento e descolou um jatinho.
A Comissão de Ética justificou os dois arquivamentos. Quanto ao avião, o doutor Américo Lacombe, seu presidente e relator do processo, disse o seguinte à repórter Luiza Damé:
- Ele não tinha outra opção. Ou ia no avião ou não ia, faltava ao compromisso. Temos uma resolução da comissão dizendo que a autoridade pode usar aviões dos patrocinadores dos eventos, desde que eles não tenham interesse sob julgamento dessa autoridade. No caso, não havia. Então, arquivamos.
Com a Bolsa-Consultoria, Lacombe foi mais radical:
- A quantia que ele recebeu foi pequena, em dois anos, R$ 50 mil ao mês. Qualquer profissional liberal ganha isso.
Não foram R$ 50 mil, e Lacombe sabe disso. Essa cifra, como diria o ministro Joaquim Barbosa, é advocacia da defesa. Nas palavras de Pimentel: "Não embolsei R$ 2 milhões. Entrou mesmo R$ 1,2 milhão, R$ 1,3 milhão que, dividido por 24 (meses), equivale a R$ 50 mil mensais. Estamos falando de uma remuneração absolutamente compatível com o mercado de executivos hoje no Brasil." Pimentel subtraiu os impostos pagos. Que o acusado se defenda assim, tudo bem, mas o presidente da Comissão de Ética Pública da Presidência da República só pode endossar esse raciocínio se acha que o imposto devido não sai da renda.
Isso é pouco diante do outro argumento. R$ 50 mil mensais não são uma "quantia pequena", muito menos "qualquer profissional liberal ganha isso". O doutor Lacombe é juiz aposentado. Enquanto trabalhou para a Viúva jamais viu um contracheque desse tamanho. Um advogado "qualquer" batalha para fechar o mês com R$ 5.000, um décimo da Bolsa-Consultoria líquida de Pimentel.
O destino da quadrilha do mensalão só transformará o país se for o início de um processo de moralização. A conduta da Comissão de Ética mostrou que o espetáculo do mensalão pode vir a ser apenas um suspiro.
Em 1969 três jovens queriam transformar o país. Américo Lacombe era um juiz federal de 32 anos. Passou um ano na cadeia e foi demitido por ter acolhido em sua casa militantes da Ação Libertadora Nacional. Um deles fora baleado durante um assalto a banco em São Paulo. (Esta informação está no livro "Marighella - O guerrilheiro que incendiou o mundo", do repórter Mário Magalhães, que começou a chegar às livrarias.) Outro jovem, "Jorge", tinha 19 anos. Militava na VAR-Palmares e, em abril de 1970, tentou sequestrar o cônsul americano em Porto Alegre. A operação fracassou, mas num aparelho da organização havia um manifesto no qual narrava-se a confissão feita pelo diplomata no cativeiro que não houve.
Em Belo Horizonte, "Jorge" era colega de movimento estudantil de "Vanda", que também militara na VAR até ser presa três meses antes do sequestro fracassado. Se a operação tivesse dado certo, "Vanda", aos 23 anos, talvez tivesse entrado na lista dos presos a serem libertados em troca do cônsul. Nesse caso, Dilma Rousseff só teria voltado ao Brasil em 1979, com a anistia. Sua carreira política teria sido outra, "Jorge" não seria ministro do Desenvolvimento e jamais conseguiria uma Bolsa-Consultoria de R$ 2 milhões, pois até 2009 seu patrimônio não chegava a R$ 1 milhão.
Queriam mudar o Brasil e deu no que deu. Ou melhor: deu no que está dando.
28 de outubro de 2012
Elio Gaspari, Folha de São Paulo
Enquanto o país assiste inebriado ao julgamento da quadrilha do mensalão, Pertence disse o seguinte ao repórter Fernando Rodrigues:
"Não creio que isso vá transformar a história do Brasil. O que se passa para o leitor de jornal, o telespectador ou o leitor de revistas, é que é histórico porque se está condenando. Mas isso é relativo".
Põe relativo nisso. No final de setembro Pertence demitiu-se da presidência da Comissão de Ética. Por falta de quorum, ela não se reunia desde julho, pois a doutora Dilma não preenchia quatro vagas abertas. Quando a doutora nomeou dois conselheiros desconsiderando as sugestões de Pertence, ele foi-se embora. (Fica por conta da sua proximidade com os comissários o fato de terem-no passado na máquina de moer carne, atribuindo sua contrariedade a um pedido frustrado de nomeação de um filho.)
No mesmo dia em que o Supremo Tribunal Federal condenou 25 réus do mensalão, a nova Comissão de Ética reuniu-se e, por unanimidade, arquivou dois processos que tramitavam contra o ministro do Desenvolvimento, Fernando Pimentel.
Numa denúncia mostrava-se que a partir de 2009, pouco depois de deixar a Prefeitura de Belo Horizonte, Pimentel recebera R$ 2 milhões ao longo de dois anos por serviços de consultoria. Um de seus clientes, a construtora Convap, desembolsou R$ 514 mil por sete meses de serviços contratados. (R$ 73,4 mil mensais). Outro freguês, a Federação da Indústrias de Minas Gerais, pagou-lhe R$ 1 milhão por nove meses de trabalho, ou R$ 111 mil mensais. Pimentel explicou que, descontados os impostos, sua Bolsa-Consultoria rendera-lhe R$ 50 mil mensais, "remuneração compatível com o mercado de executivos". O doutor faturou cerca de US$ 550 mil da Fiemg. (A mais famosa consultoria do mundo, chefiada pelo ex-secretário de Estado Henry Kissinger, em 1986 cobrava US$ 420 mil anuais aos seus maiores clientes.)
A segunda denúncia era mequetrefe. Em outubro do ano passado Pimentel viajou na comitiva da doutora Dilma para a Bulgária e precisava comparecer a um seminário privado em Roma. À falta de um avião de carreira, recorreu ao empresário que patrocinava o evento e descolou um jatinho.
A Comissão de Ética justificou os dois arquivamentos. Quanto ao avião, o doutor Américo Lacombe, seu presidente e relator do processo, disse o seguinte à repórter Luiza Damé:
- Ele não tinha outra opção. Ou ia no avião ou não ia, faltava ao compromisso. Temos uma resolução da comissão dizendo que a autoridade pode usar aviões dos patrocinadores dos eventos, desde que eles não tenham interesse sob julgamento dessa autoridade. No caso, não havia. Então, arquivamos.
Com a Bolsa-Consultoria, Lacombe foi mais radical:
- A quantia que ele recebeu foi pequena, em dois anos, R$ 50 mil ao mês. Qualquer profissional liberal ganha isso.
Não foram R$ 50 mil, e Lacombe sabe disso. Essa cifra, como diria o ministro Joaquim Barbosa, é advocacia da defesa. Nas palavras de Pimentel: "Não embolsei R$ 2 milhões. Entrou mesmo R$ 1,2 milhão, R$ 1,3 milhão que, dividido por 24 (meses), equivale a R$ 50 mil mensais. Estamos falando de uma remuneração absolutamente compatível com o mercado de executivos hoje no Brasil." Pimentel subtraiu os impostos pagos. Que o acusado se defenda assim, tudo bem, mas o presidente da Comissão de Ética Pública da Presidência da República só pode endossar esse raciocínio se acha que o imposto devido não sai da renda.
Isso é pouco diante do outro argumento. R$ 50 mil mensais não são uma "quantia pequena", muito menos "qualquer profissional liberal ganha isso". O doutor Lacombe é juiz aposentado. Enquanto trabalhou para a Viúva jamais viu um contracheque desse tamanho. Um advogado "qualquer" batalha para fechar o mês com R$ 5.000, um décimo da Bolsa-Consultoria líquida de Pimentel.
O destino da quadrilha do mensalão só transformará o país se for o início de um processo de moralização. A conduta da Comissão de Ética mostrou que o espetáculo do mensalão pode vir a ser apenas um suspiro.
Em 1969 três jovens queriam transformar o país. Américo Lacombe era um juiz federal de 32 anos. Passou um ano na cadeia e foi demitido por ter acolhido em sua casa militantes da Ação Libertadora Nacional. Um deles fora baleado durante um assalto a banco em São Paulo. (Esta informação está no livro "Marighella - O guerrilheiro que incendiou o mundo", do repórter Mário Magalhães, que começou a chegar às livrarias.) Outro jovem, "Jorge", tinha 19 anos. Militava na VAR-Palmares e, em abril de 1970, tentou sequestrar o cônsul americano em Porto Alegre. A operação fracassou, mas num aparelho da organização havia um manifesto no qual narrava-se a confissão feita pelo diplomata no cativeiro que não houve.
Em Belo Horizonte, "Jorge" era colega de movimento estudantil de "Vanda", que também militara na VAR até ser presa três meses antes do sequestro fracassado. Se a operação tivesse dado certo, "Vanda", aos 23 anos, talvez tivesse entrado na lista dos presos a serem libertados em troca do cônsul. Nesse caso, Dilma Rousseff só teria voltado ao Brasil em 1979, com a anistia. Sua carreira política teria sido outra, "Jorge" não seria ministro do Desenvolvimento e jamais conseguiria uma Bolsa-Consultoria de R$ 2 milhões, pois até 2009 seu patrimônio não chegava a R$ 1 milhão.
Queriam mudar o Brasil e deu no que deu. Ou melhor: deu no que está dando.
28 de outubro de 2012
Elio Gaspari, Folha de São Paulo
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