Nada do que acontece na Argentina, hoje, na economia e na política, é como foi no passado, claro. Mas tudo aponta para riscos futuros. É como se fosse o primeiro passo na estrada que já levou o país ao desastre. Empresários amigos do governo recebem publicidade estatal e são incentivados a comprar jornais; os outros são asfixiados. Na economia, a inflação é tratada com descaso.
A tragédia política e o colapso econômico foram visitados até o fundo do poço no país vizinho, onde tudo parece sempre mais exagerado aos nossos olhos. Eles estão aceitando que se mine devagar a liberdade de expressão e deixando crescer a inflação, depois de terem vivido o que viveram. Duas temeridades.
— Ah, nesta luta vocês, brasileiros, estão nos vencendo de dez a zero — afirmou Ceferino Reato, jornalista argentino que entrevistei na semana passada, pela Globonews.
Ele se referia à luta contra a inflação. Eu dera a ele de presente um exemplar do meu livro que conta a vitória do Brasil na busca da estabilização.
— Lula esteve na Argentina e disse que a inflação não pode subir de maneira alguma porque isso afeta exatamente os mais pobres — contou.
Outro argentino me disse, dias atrás, que nós aprendemos sobre os riscos inflacionários, e eles, não. Aqui também há problemas, mas a população reage mais cedo. No Brasil, quando a inflação sobe, a popularidade dos presidentes tende a cair. O brasileiro ficou com uma saudável alergia à alta de preços.
Oferta excessiva de crédito e aumentos salariais podem atenuar o desconforto econômico, mas é difícil imaginar o Brasil vivendo uma inflação de 25%, mascarada por um instituto de preços sob intervenção, e os institutos privados sendo ameaçados na Justiça caso divulguem o número certo. É isso que se vive lá.
Reato conta que não há uma censura à imprensa como no passado, do tipo “você não pode publicar isso”. Admite que, como em qualquer país, a imprensa argentina se equivoca e publica coisas “de maneira injustificável e apressada”.
Mas acha perigosa a reação do governo de Cristina Kirchner, que ele considera preocupante, mesmo sendo diferente do que era no regime autoritário.
— Este governo tem formas mais sutis de pressão, por meio da publicidade estatal, que é dada aos amigos e negada aos meios independentes; ou através de leis que são aplicadas apenas aos veículos que não são do governo. Às vezes, eles favorecem empresários amigos que nem são desse ramo de negócios e que ganham vantagens na telefonia, no setor bancário, ou em outro setor, se comprarem jornais ou canais de televisão, tendo a garantia da publicidade governamental.
Os outros grupos são forçados a vender as empresas. Assim, estão se formando veículos afinados com o governo. Isso é perigoso. Para nós jornalistas e para as pessoas em geral. Em uma democracia deve haver opiniões divergentes — disse o jornalista.
Ele veio ao Brasil divulgar seu livro, ainda não traduzido, “Disposición Final”, sobre os crimes da ditadura segundo a confissão que conseguiu do general Jorge Videla na prisão. Escrevi sobre isso na coluna de ontem.
Na conversa e na entrevista, Reato mostrou que a Argentina tem esses dois perigos à frente. O risco, evidentemente, não tem qualquer comparação possível com a dimensão do passado.
Mas quem já viveu uma ditadura e uma hiperinflação sabe que o caminho é buscar a estabilidade econômica mais sólida e a democracia mais ampla, para evitar qualquer risco de repetição das velhas tragédias, porque o preço a pagar é alto demais.
A moeda e a liberdade não aceitam descuidos. Na economia e na política é preciso evitar o primeiro erro.
28 de outubro de 2012
Miriam Leitão, O Globo
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