Ceticismo, perplexidade e ansiedade. Essa talvez seja a sequência de sentimentos da maioria das pessoas a respeito do julgamento da Ação Penal 470. No início, de serventes a banqueiros, todos ou quase todos tinham a mais profunda certeza de que o julgamento, se houvesse, não chegaria a lugar nenhum. Não se tratava de um ceticismo filosófico, mas de uma certeza sociológica baseada na constatação de que no Brasil a lei não se aplica de forma igual a todos.
Afinal, aqui a lei sempre foi algo para inglês ver. Como se sabe, essa expressão surgiu no século 19, por ocasião do tratado firmado entre o Brasil e a Inglaterra com o objetivo de proibir o tráfico de escravos. Dada a absoluta falta de disposição do governo brasileiro de criar mecanismos de fiscalização do tráfico, logo se chegou à conclusão, para felicidade de traficantes e latifundiários, de que a proibição não passava de uma lei para inglês ver.
A cordialidade, característica fundamental de nossa identidade, também nos impeliria a uma relação ambígua com a lei. Os amigos não ficariam expostos ao seu rigor, os inimigos não encontrariam abrigo nas suas garantias. Aqui para tudo se dá um jeito e não seria diferente com o caso do mensalão.
Com o desenrolar do julgamento as pessoas passaram do ceticismo à perplexidade. A falta de cordialidade nos primeiros dias de debates no Supremo Tribunal já deixava claro que algo estava fora da "ordem". Que o senso comum estava sendo posto em xeque. Com as primeiras condenações, surgiu a percepção de que seria apenas mais uma estratégia em nossa longa tradição conciliatória, pela qual os operadores seriam entregues para que os poderosos pudessem ser salvos.
Não foi isso, porém, o que aconteceu. Cada um foi sendo julgado. Suas responsabilidades foram apuradas. Alguns absolvidos e muitos condenados. Com a determinação das penas, a perplexidade aumentou. Não se trata apenas de uma repreensão moral ou política, mas de uma sanção visceral: a prisão - com todas as consequências que isso traz a um ser humano.
À medida que o julgamento vai chegando ao fim, a perplexidade transforma-se em ansiedade. O que está por vir? Afinal, o que muda a partir desse julgamento? Foi ele uma ruptura com nossa velha tradição patrimonialista? Terá a capacidade de desestabilizar uma cultura secular de desrespeito à lei? Ou estamos apenas diante de mais uma das escaramuças do teatro político, em que se alvejou um inimigo sem que isso traga maiores consequências do ponto de vista da relação do brasileiro com as instituições jurídicas?
Antes de acharmos que o processo do mensalão seja uma espécie de elixir misterioso e milagroso que veio dos céus e resolverá todos os nossos problemas, é necessário compreender que esse julgamento é um fenômeno conectado e decorrente de uma longa cadeia de transformações por que o Brasil vem passando nas últimas duas décadas. Somos hoje uma sociedade mais complexa, afluente e educada do que éramos há 20 anos. Há agora maior consciência dos nossos direitos, como o demonstram as pesquisas realizadas pelo Latinobarometro na última década.
A Ação Penal 470 é também uma consequência do amadurecimento das instituições brasileiras, que foram remodeladas em 1988 com a nova Constituição. A autonomia do Ministério Público, a profissionalização da Polícia Federal, a criação do Conselho Nacional de Justiça e a crescente responsabilidade assumida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento de casos da maior importância política e social, tudo isso foi indispensável para que um caso dessas dimensão e complexidade pudesse ser julgado sem gerar nenhuma crise institucional.
Mesmo não sendo visto como um fenômeno inexplicável da natureza, mas como resultado de um processo de amadurecimento da nossa sociedade, o julgamento do mensalão traz algo de novo e de inesperado, que está associado à forma como ele se deu na esfera pública. Para alguns, essa espetacularização da Justiça pôs em risco a sua imparcialidade, a sua capacidade de não transigir ante a pressão pública. Para outros, foi exatamente essa exacerbação da transparência que impediu que as pressões dos poderosos viessem a prevalecer.
O fato é que a sociedade brasileira tem assistido, como nunca antes em sua História, a um julgamento público, que teve um desfecho absolutamente inesperado e no qual todas as expectativas de que a lei não seria aplicada foram frustradas. Isso não significa assumir um alinhamento imediato e completo com todas as decisões do Supremo. Exige, sim, que não entremos em negação em relação ao ocorrido. Os fatos foram apurados e a lei, aplicada. Isso não é trivial no Brasil, especialmente quando falamos de pessoas que detêm o poder.
Muitos são os desafios que se apresentam hoje, tanto à sociedade como à Justiça brasileira, para que esse julgamento catártico não caia no vazio. Assim, a ansiedade se justifica.
Em primeiro lugar, não podemos incorrer na atitude ingênua e conservadora de achar que o Direito e as instituições jurídicas possam substituir a política. A democracia pressupõe que a prerrogativa de escolher e julgar a qualidade das políticas e dos políticos é dos cidadãos.
Nesse sentido, a judicialização da política pode ser uma perigosa armadilha, em que os cidadãos imaginem poder abrir mão de suas responsabilidades, transferindo-as para uma corporação que tem seus próprios interesses e idiossincrasias. A participação na formulação de propostas para a solução de nossos problemas, o debate público, a fiscalização são tarefas indispensáveis dos cidadãos. Não há juiz ou promotor que possa substituí-los. Cidadãos e juízes precisam ter essa consciência.
Por sua vez, os magistrados não podem imaginar que com esse julgamento a missão esteja cumprida. A aplicação rigorosa da lei é uma exigência cotidiana do Estado de Direito. Há outros mensalões a apurar. Há outros Carandirus a julgar.
28 de outubro de 2012
Oscar Vilhena Vieira, O Estado de S.Paulo
Afinal, aqui a lei sempre foi algo para inglês ver. Como se sabe, essa expressão surgiu no século 19, por ocasião do tratado firmado entre o Brasil e a Inglaterra com o objetivo de proibir o tráfico de escravos. Dada a absoluta falta de disposição do governo brasileiro de criar mecanismos de fiscalização do tráfico, logo se chegou à conclusão, para felicidade de traficantes e latifundiários, de que a proibição não passava de uma lei para inglês ver.
A cordialidade, característica fundamental de nossa identidade, também nos impeliria a uma relação ambígua com a lei. Os amigos não ficariam expostos ao seu rigor, os inimigos não encontrariam abrigo nas suas garantias. Aqui para tudo se dá um jeito e não seria diferente com o caso do mensalão.
Com o desenrolar do julgamento as pessoas passaram do ceticismo à perplexidade. A falta de cordialidade nos primeiros dias de debates no Supremo Tribunal já deixava claro que algo estava fora da "ordem". Que o senso comum estava sendo posto em xeque. Com as primeiras condenações, surgiu a percepção de que seria apenas mais uma estratégia em nossa longa tradição conciliatória, pela qual os operadores seriam entregues para que os poderosos pudessem ser salvos.
Não foi isso, porém, o que aconteceu. Cada um foi sendo julgado. Suas responsabilidades foram apuradas. Alguns absolvidos e muitos condenados. Com a determinação das penas, a perplexidade aumentou. Não se trata apenas de uma repreensão moral ou política, mas de uma sanção visceral: a prisão - com todas as consequências que isso traz a um ser humano.
À medida que o julgamento vai chegando ao fim, a perplexidade transforma-se em ansiedade. O que está por vir? Afinal, o que muda a partir desse julgamento? Foi ele uma ruptura com nossa velha tradição patrimonialista? Terá a capacidade de desestabilizar uma cultura secular de desrespeito à lei? Ou estamos apenas diante de mais uma das escaramuças do teatro político, em que se alvejou um inimigo sem que isso traga maiores consequências do ponto de vista da relação do brasileiro com as instituições jurídicas?
Antes de acharmos que o processo do mensalão seja uma espécie de elixir misterioso e milagroso que veio dos céus e resolverá todos os nossos problemas, é necessário compreender que esse julgamento é um fenômeno conectado e decorrente de uma longa cadeia de transformações por que o Brasil vem passando nas últimas duas décadas. Somos hoje uma sociedade mais complexa, afluente e educada do que éramos há 20 anos. Há agora maior consciência dos nossos direitos, como o demonstram as pesquisas realizadas pelo Latinobarometro na última década.
A Ação Penal 470 é também uma consequência do amadurecimento das instituições brasileiras, que foram remodeladas em 1988 com a nova Constituição. A autonomia do Ministério Público, a profissionalização da Polícia Federal, a criação do Conselho Nacional de Justiça e a crescente responsabilidade assumida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento de casos da maior importância política e social, tudo isso foi indispensável para que um caso dessas dimensão e complexidade pudesse ser julgado sem gerar nenhuma crise institucional.
Mesmo não sendo visto como um fenômeno inexplicável da natureza, mas como resultado de um processo de amadurecimento da nossa sociedade, o julgamento do mensalão traz algo de novo e de inesperado, que está associado à forma como ele se deu na esfera pública. Para alguns, essa espetacularização da Justiça pôs em risco a sua imparcialidade, a sua capacidade de não transigir ante a pressão pública. Para outros, foi exatamente essa exacerbação da transparência que impediu que as pressões dos poderosos viessem a prevalecer.
O fato é que a sociedade brasileira tem assistido, como nunca antes em sua História, a um julgamento público, que teve um desfecho absolutamente inesperado e no qual todas as expectativas de que a lei não seria aplicada foram frustradas. Isso não significa assumir um alinhamento imediato e completo com todas as decisões do Supremo. Exige, sim, que não entremos em negação em relação ao ocorrido. Os fatos foram apurados e a lei, aplicada. Isso não é trivial no Brasil, especialmente quando falamos de pessoas que detêm o poder.
Muitos são os desafios que se apresentam hoje, tanto à sociedade como à Justiça brasileira, para que esse julgamento catártico não caia no vazio. Assim, a ansiedade se justifica.
Em primeiro lugar, não podemos incorrer na atitude ingênua e conservadora de achar que o Direito e as instituições jurídicas possam substituir a política. A democracia pressupõe que a prerrogativa de escolher e julgar a qualidade das políticas e dos políticos é dos cidadãos.
Nesse sentido, a judicialização da política pode ser uma perigosa armadilha, em que os cidadãos imaginem poder abrir mão de suas responsabilidades, transferindo-as para uma corporação que tem seus próprios interesses e idiossincrasias. A participação na formulação de propostas para a solução de nossos problemas, o debate público, a fiscalização são tarefas indispensáveis dos cidadãos. Não há juiz ou promotor que possa substituí-los. Cidadãos e juízes precisam ter essa consciência.
Por sua vez, os magistrados não podem imaginar que com esse julgamento a missão esteja cumprida. A aplicação rigorosa da lei é uma exigência cotidiana do Estado de Direito. Há outros mensalões a apurar. Há outros Carandirus a julgar.
28 de outubro de 2012
Oscar Vilhena Vieira, O Estado de S.Paulo
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